Maria Homem
Até que ponto falar o que o outro quer ouvir?
Às vezes, demoramos a entender nosso próprio pensamento, pois o inconsciente é mais rápido que o ego
Para mim, uma aula nunca teve como objetivo ser totalmente compreendida. Em uma aula cada um pega o que lhe convém. Mas não podemos dizer que tudo convém a todo mundo. Tem sempre alguém meio dormindo. Por qual mistério a pessoa acorda no momento que lhe diz respeito? E nem é o assunto que lhe interessa propriamente. Uma aula é emoção. Tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção não funciona. Não é uma questão de ouvir e entender tudo, mas de acordar a tempo de captar o que te convém.
Esse é Deleuze, falando sobre o que é dar uma aula ou fazer um curso — ele que foi durante décadas professor de filosofia, e dos mais famosos. Até hoje, seu pensamento, livros e vídeos são replicados à exaustão. E o que ele está dizendo? Que, a rigor, nunca se preocupou muito em agradar ou se fazer compreender totalmente. Ele ia seguindo o fluxo de raciocínio que lhe parecia mais correto, no sentido de mais prolífico e lógico e que despertasse uma hermenêutica, uma nova interpretação de alguma coisa. Como podemos compartilhar com o outro nossa leitura do mundo? Lendo fatos, movimentos, obras. Cruzando leituras e colocando as ideias decantadas na roda do espaço público.
Você não pode querer que o outro goste de você ou do que você diz. Senão, você fica refém do que imagina que o outro quer ouvir
Para isso funcionar, tem que se abrir mão de ser compreendido plenamente. Às vezes nós demoramos a entender nosso próprio pensamento, pois o inconsciente é mais rápido que o ego. E eu juntaria ainda um outro ponto. Para se chegar a algo relevante, há que se abrir mão de duas coisas: ser compreendido e ser amado. Você não pode querer que o outro goste de você ou do que você diz. Senão, você fica refém do que imagina que o outro quer ouvir. E isso não é produzir conhecimento ou verdade. Isso é vender um produto para o outro comprar. Isso é vender pílulas adocicadas para ganhar amor, o que nos dias de hoje chamamos like e engajamento – e hoje temos plataformas especializadas em vender essa métrica.
Faz parte do jogo estar inserido em uma dialética de reconhecimento que, se por um lado é base das relações sociais e dá a liga do famoso “tecido”, por outro não pode nos escravizar. Senão a gente vai ficar falando para a plateia, só buscando aplauso e confirmação dos iguais; amando e sendo amado pelos que já pensam como nós; e odiando todos os outros, que por sua vez estão submetidos ao mesmo mecanismo. Assim chegamos na famosa polarização do mundo em que uma metade não escuta a outra.
Os dias de hoje são curiosos. As regras do jogo nos dizem justamente para 1. agradar e 2. não desagradar. Na prática, você 1. fala o que a massa/o cliente/o grupo quer ouvir e 2. toma muito cuidado para não ser cancelado ou perder o contrato. Assim, ficamos repetindo clichês e espelhando conteúdos que os demais replicam – o que está bombando, os trending topics, o hype… Veja bem as expressões ligadas ao universo quantificável do capitalismo imaterial, que é o nosso. Didático. Talvez chato também. No sentido de ser um plano achatado sem grandes acidentes originais, além da chatice da pancadaria, violenta e previsível.
Você tenta escapar de assuntos delicados, se sua personalidade é cuidadosa. Se é arrojado, já compra uma polêmica e depois vê como resolve eventuais danos
Assim, você tenta escapar de assuntos delicados ou debates reais e complicados. Isso, claro, se sua personalidade é cuidadosa. Se você é do estilo arrojado, já compra logo uma polêmica e sobe no foguete da fama, depois vê como resolve eventuais danos. Como – talvez – o compositor que pegou carona no case da moça que se escora na bandeira da obesidade e na prática reiterada em mover processos por danos morais. Você vai ser cancelado por uns e reincorporado por outros – e quem sabe sairá conhecido por milhões de novas pessoas, afinal, você furou a bolha. A cultura pop brasileira é uma escola da alma humana.
Também as relações pessoais talvez funcionassem melhor se fôssemos mais livres para poder exercer o que somos e desejamos sem nos preocupar tanto em 1. ser entendido 2. ser amado. Como assim? Isso parece ser o oposto do que leio em nove de dez manuais de boas condutas dos afetos contemporâneos. Se estou lutando para fazer meu casamento dar certo, com certeza devo me fazer entender e repetir pacientemente tudo o que penso que sou, que fiz, que pretendi, assim, como tudo o que acho do que o outro é, fez, e pretendeu. DRs infinitas, madrugadas, anos afora. Não é assim que se faz? Aprendi nas revistas, filmes, posts. E como manter uma relação de amor sem pretender ser amado – não seria essa a regra do jogo?
Entendo os argumentos. Mas muitas vezes se fixar na demanda de amor e compreensão é a melhor receita do fracasso. É querer ser visto e amado. E não se exercer no seu melhor, do lado de outros na mesma busca. E isso vale para os mais diversos espaços públicos e privados, como o amor, a escola, os parlamentos, a internet, a arte.
De certa forma, foi também nessa direção que navegou a escritora espanhola Rosa Montero em sua palestra no Fronteiras, há algumas semanas. A autora de “A Louca da Casa”, “A Boa Sorte” e o belíssimo “A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver”, entre muitos outros, fez a defesa da posição do artista: aquele que vê ao mesmo tempo de dentro e de fora. Ou seja, que pode criar e se transportar para outros mundos e perspectivas. Pode sair do eu e encontrar o outro.
Não seria essa a base de uma relação entre singularidades? Poder ser o que se é, em paz, e passear nos territórios em que os outros podem também ser, à vontade, ser o que se é. Algo mais difícil do que parece e, curiosamente, bem distante do que eu suponho que você espera de mim. Pensar? Algo mais difícil do que parece e, curiosamente também, bem distante do que eu suponho que você espera que eu pense.
Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora da FAAP. Possui pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie e Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Foi professora visitante na Harvard University e palestrante no MIT, Universidade de Boston e de Columbia. É autora de “Lupa da Alma” (Todavia, 2020), “Coisa de Menina?” (Papirus, 2019) e coautora de "No Limiar do Silêncio e da Letra" (Boitempo Editorial, 2015), entre outros.
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