“Succession”, um ritual de rebelião
O processo sucessório, ainda com o pai vivo, é um recorrente ritual onde se encena, jocosamente, um levante dos filhos contra o pai e o chefe
Até que ponto uma família é apenas uma “família”? O que haveria de tão fascinante numa série que aborda um drama sucessório em uma família de super ricos norte-americanos? O que faz de “Succession”, de Jesse Armstrong, um sucesso retumbante? Certamente são muitos os fatores que aí competem.
A série da HBO trata de uma história de família ao mesmo tempo que não é. A Waystar ROYCO, um conglomerado de mídia baseado em Nova Iorque, é um ambiente empresarial saturado pelo poder. As suas salas amplas e transparentes em contraste com cômodos ocultos, corredores, carros pretos e helicópteros privados servem de palcos para repetidos atos e gestos, nem sempre visíveis, de (des)amor e dominação do poderoso pai e chefe – um tipo self-made man – Logan Roy em relação aos filhos Connor, Kendall, Siobhan “Shiv” e Roman. Nessas relações repletas de ambiguidades as ambições pelo poder se confundem facilmente com os ressentimentos dos filhos em relação com o pai: um ausente muito presente. Na história é impossível identificar onde terminam os laços familiares e onde começam os negócios. É uma trama de fronteiras borradas.
Muito tem se dito que a série reencena aspectos da peça Rei Lear, de Shakespeare. A tragédia de poder e amor está, de fato, posta na mesa dos roteiristas da série. No entanto, a jornada vai além da jornada da jornada sucessória linear. Desde o início da segunda temporada eu percebi a história dos Roy como uma tragédia onde o fator trágico está, justamente, na sua eterna conservação. Aceitei, tão logo, se tratar de uma viagem redonda e agoniada. O agonístico grego implica na manutenção constante do conflito e da competição. Eu posso explicar.
Em ‘Succession’, os constantes conflitos e competições pelo poder existem para impedir a revolução
A minha percepção, desde então, esteve colada a um trabalho realizado pelo antropólogo sul-africano Max Gluckman (1911-1975) entre os Bantos do Sudeste, na Zululândia, Suazilândia e Moçambique. Nos resultados da pesquisa publicados em 1954, Gluckman constrói uma teoria na qual as contradições e os conflitos são a base de explicação do poder e da autoridade. Para isso, ele estudou um grande acontecimento no calendário local, quando a massa de súditos, até então silenciosa, se volta ressentida, aos gritos de ódio contra o rei. Como um ritual, a rebelião organiza e exibe conflitos. Há uma demonstração aberta da obscenidade do poder onde o rei parece estar prestes a cair.
Mas o que mais surpreende o antropólogo interessado pela política é que, ao final, o resultado dessa aparente confusão causada pela massa contra o rei é a prosperidade. A rebelião não se converteu em revolução e a Realeza está mais forte do que nunca. A explosão catártica deu-se por dentro, não rompeu o corpo. Trata-se, segundo ele, de um ritual onde o poder e o ódio são institucionalmente encenados. A rebelião paradoxalmente apoia o sistema tradicional, e vai transformar o príncipe em rei.
A história dos Roy é uma tragédia onde o fator trágico está, justamente, na sua eterna conservação
Em “Succession” a lógica é semelhante. Os constantes conflitos e competições pelo poder existem, justamente, para impedir a revolução. O processo sucessório, ainda com o pai vivo, é um recorrente ritual onde se encena, jocosamente, uma rebelião dos filhos contra o pai e o chefe. Mas, ao contrário de causar qualquer fratura ou ruptura definitiva na ordem familiar-empresarial, a revolta parece, a todo tempo, reforçar a dominação do pai e a fragilidade dos filhos. O ódio encenado e a infinita espera pelo poder (e pelo amor do pai) são matéria-prima indispensável à manutenção da ordem efetivo-econômica. E Logan parece saber disso o tempo todo.
Ao final, em ambos os contextos, temos uma desordem muito ordenada. O que fascina na série é a impossibilidade de discriminação entre conflito e cooperação, traição e lealdade, ódio e amor, família e império. E essa é grande fortuna crítica dessa história. Os filhos aceitam essa ordem como correta e até – sempre nas entrelinhas – sagrada. O que querem, nesse grande ritual de morte encenada, é devorar o pai como se assim incorporassem o amor todo poderoso que a eles sempre foi recusado. E sempre será, para o bem do Império.
Paulo Augusto Franco de Alcântara é antropólogo