Quem tem medo de Hilton Als?
Marilene Felinto escreve sobre a experiência de traduzir “Garotas Brancas”, livro do ensaísta e crítico de teatro americano
Traduzir um autor vivo pode dar nisso – encontrar com ele na rua, ou com um amigo dele. Assim conheci por acaso, recentemente, em um jantar nos Estados Unidos, um amigo de Hilton Als, primeiro escritor vivo que traduzi, autor de “Garotas Brancas” (Fósforo, 2023).
O homem do jantar, professor universitário de história da arte, negro e gay como Als, surpreendeu-se quando eu disse que acabara de traduzir um livro do autor americano para o português do Brasil (“o brasilês”, pensei dizer).
“Wow, amazing!”, o professor exclamou. “Amazing”… palavra tão expressiva em inglês, misto de “incrível” com “maravilhoso”.
E então, o amigo de Hilton Als perguntou se eu achava que o autor iria ao Brasil. Eu disse que provavelmente seria convidado em algum momento: “Ele vai adorar!”, tornou a exclamar. “Mas não sei se você vai aguentar o olhar fuzilante dele!” – e riu.
Também ri. Amazing. “Mas, quem tem medo de Hilton Als?” – brinquei, então, com o professor. “Quem tem medo de garotas brancas?” E ele gargalhou.
Traduzi Hilton Als por sugestão de minha editora. Resisti de início, julgando que aquilo não era minha praia (autor vivo, crítico de teatro premiado, ensaísta cultíssimo de ampla gama da cultura dos Estados Unidos – que me interessa, mas nem tanto –, do cinema e da TV à literatura, à música, à alta costura, com ênfase no universo gay-queer de ontem e de hoje etc.).
Sempre traduzi por necessidade profissional, daí raramente ter podido escolher as traduções que faria. Com algumas, no entanto, a identificação foi imediata, e tão profunda como se os originais tivessem sido escritos na minha própria língua. Cito os dois maravilhosos contos de Ralph Ellison (1913-1994) “Não Perguntei o Nome Deles” e “Menino Andando de Trem”, publicados na Folha de S. Paulo, em 1998 (da coletânea “Flying Home and Other Stories”, Random House, 1996).
Embora traduzir seja um mergulho no estilo do outro, no léxico e na sintaxe da linguagem que o outro criou a partir da língua estrangeira, tento não me envolver emocionalmente com o texto. Tento ser técnica o máximo possível, apenas.
Embora traduzir seja um mergulho no estilo do outro, tento não me envolver emocionalmente com o texto
Não faço como Érico Verissimo (1905-1975), excelente tradutor, ele que, a partir da tradução da coletânea de contos “Bliss”, de Katherine Mansfield, viu-se tão envolvido na tarefa que escreveu um conto sobre isso. Chama-se “Conversa com um fantasma”, tem como protagonista um tradutor, Feliciano, e, como o personagem do fantasma, a própria Mansfield. O conto de Verissimo está na coletânea “Fantoches e outros contos e artigos” (Ed. Globo, 1953).
Voltando a Hilton Als, aos poucos fui nadando de braçada no estilo direto de narrar, e atraída pelo inusitado nó que ele dá nas categorizações de gênero, sexualidade e raça da cultura de seu país. A crítica é dura, e parte de sua experiência toda pessoal: “Éramos, em suma, machos americanos de cor, quantidade nada fácil de categorizar, o que incomodava a maioria de nossos compatriotas, negros e brancos, homens e mulheres, já que a América nada mais é do que categorias”.
O primeiro capítulo do livro já começa com uma incógnita nesse parâmetro: “Senhor ou Lady (como vou chamá-lo) está sentado no ponto mais alto de nossa aldeia, profundamente apaixonado por filmes”. Ao longo desse capítulo, intitulado “Tristes tropiques”, Als se refere ao personagem como SL, apenas (Sir ou Lady, e quem quiser que decifre!).
As epígrafes do livro são também pura provocação: 1) “Sei que essas garotas não gostam de mim. Mas sou igual a elas.” 2) “Mas o que exatamente é um negro? Em primeiro lugar, qual é a cor dele?” pergunta Jean Genet.
Mais instigante ainda é o título. Por que um homem negro e gay escreveria sobre garotas brancas? Algo de “garotas brancas”, eu entendo: na minha infância pobre em Recife, garotas brancas eram normalmente sinônimo de “garotas ricas”, para as quais eu olhava com um misto de inveja e desdém. A diferença de classe social foi meu primeiro e mais importante marcador social.
Quebrei minha resistência ao livro de Hilton Als como quem quebra uma onda poderosa no mar, num mergulho para sair do outro lado cheia de sal no corpo revigorado
Alguém também me perguntou, naquele mesmo ambiente do jantar nos EUA, se entrei em contato com Als para esclarecer dúvidas durante a tradução. Não fiz isso: não quis contato com o autor, por certa timidez, e por receio de me envolver emocionalmente.
Mergulhei de cabeça na biografia crítica que Als fez de personalidades artísticas excêntricas, atormentadas e geniais: de Truman Capote a Jean-Michel Basquiat, de Flannery O’Connor a Michael Jackson. Tradução difícil de fazer: mas traduzir não é essencialmente resolver as dificuldades surgidas a partir da afrontosa facilidade com que o outro criou seus textos?
Para decifrar certo linguajar intrincado de alguns aspectos de “Garotas Brancas” (os jargões do rapper Eminem, do universo gay masculino novaiorquino, da pornografia explícita etc.) tive a ajuda fundamental de um jovem na faixa dos trinta e poucos anos, Ignacio Carvajal, professor de literatura norte-americana e latino-americana na Universidade da California em San Diego.
Quebrei minha resistência ao livro de Hilton Als como quem quebra uma onda poderosa no mar, num mergulho para sair do outro lado cheia de sal no corpo revigorado. Senti que, segundo a desconstrução/recriação de padrões identitários promovidas pelo autor, eu também sou uma garota branca. E daí? Eu não tenho medo de ninguém não.
- Garotas Brancas
- Fósforo Editora
- 360 págs
- R$ 74,92
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Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance “As Mulheres de Tijucopapo” (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos “Mulher Feita” (ed. Fósforo, 2022). É colunista da Gama.