Coluna Winnie Bueno: Protejam as crianças negras — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

Protejam as crianças negras

O racismo no cotidiano escolar faz com que elas não queiram participar das atividades e tenham menos oportunidades de desenvolver suas habilidades

19 de Outubro de 2022

Possivelmente você já teve contato com outros escritos de mulheres negras. Também espero que já tenha tido a oportunidade de presenciar espaços onde elas compartilham suas vivências e experiências em palestras, workshops, conferências e coisas do tipo. Se você já esteve na plateia enquanto alguma pessoa negra falava ou se acompanha nas redes sociais criadores de conteúdo negros e negras, em algum momento essas pessoas devem ter compartilhado situações de racismo vivenciadas na escola.

Essas situações são a experiência subjetiva de como se mantém pessoas negras sem o direito à educação. No geral, a gente fala sobre isso quando nota a quase inexistência de escolas de ensino médio em regiões de maioria de população negra ou pelas condições precárias dos colégios nas periferias. Também costumamos relacionar racismo e educação com os currículos escolares há muito tempo. Tanto que, graças às análises sobre educação historicamente promovidas pelo movimento social negro, hoje temos legislações que buscam ampliar e diversificar os currículos inserindo conteúdos sobre a história e a cultura afro-brasileira. Mas, para além dessas questões estruturais, permanecem outras formas de negar a educação para a população negra. Aquelas que transformam a experiência escolar para jovens e crianças negras num trauma, exigindo depois muitas sessões de terapia com as quais a maioria de nós não tem como arcar e que raramente são oferecidas no serviço público de saúde.

Recentemente, descobri que uma parte significativa das experiências de racismo que se deram no ambiente escolar durante minha infância e adolescência eu fiz questão de esconder de mim mesma. Meu cérebro simplesmente colocou essas memórias em lugares que eu não era capaz de acessar com facilidade. Sabia que o racismo esteve presente em cada etapa da minha vida escolar, mas não lembrava detalhes dos episódios nem os nomes dos jovens responsáveis por dores promovidas em palavras e gestos – mas que me atingiam de forma física.

Eis que encontrei meu diário de 2003, quando tinha entre 14 e 15 anos, e parei para ler os relatos daquela garotinha que eu conhecia, mas de quem não mais lembrava. Descobri, lendo atentamente aquelas páginas, que fui exposta ao discurso de ódio muito cedo e lidei com ele da forma que podia: escrevendo. Confiava na minha escrita e nas páginas do diário como um espaço de conforto e análise. Ali havia detalhes das agressões, mas também uma dificuldade de nomeá-las: nas centenas de páginas do meu diário de adolescente, com relatos ardidos de uma jovem vivenciando o terror da violência racial na escola, nenhuma vez a palavra racismo aparece.

Os meninos que me diziam absurdos racistas na sala de aula e no recreio não eram advertidos

Frequentei o ensino médio no ínicio dos anos 2000. Embora já houvesse avanços nessas pautas, a escola particular cristã na qual estudava não ensinava a seus alunos o mínimo sobre relações raciais e racismo. As ações de violência racial às quais fui submetida não foram entendidas dessa forma, embora muitas vezes tenham sido presenciadas por professores e funcionários. Os meninos que me diziam absurdos na sala de aula e no recreio não eram advertidos. E dessa forma, no meu corpo e na minha dor, se naturalizava o racismo como algo que fazia parte do cotidiano escolar. Por mais que soubesse que, naquela escola absolutamente branca, onde a maioria dos colegas e funcionários eram brancos, pouco seria feito mediante qualquer reivindicação minha sobre a violência racial, ao ler meu diário descobri que esperava sim que algo fosse feito. Imaginava ser salva por uma comunidade escolar que me entendesse enquanto indivíduo, ao mesmo tempo que valorizasse meu pertencimento. Meu coração de criança esperava isso das pessoas pelas quais nutria afeto na escola, mas esse acolhimento nunca aconteceu. Não da forma que eu precisava: como proteção.

Assim como eu, muitas crianças negras são violentadas racialmente na escola sem que nada seja feito, isso ainda é uma realidade. Constantemente, recebemos relatos na mídia de jovens negros expostos ao racismo no ambiente escolar que contam apenas com a defesa de seus familiares. As mães negras, quando confrontam a estrutura racista das escolas, são consideradas agressivas e incivilizadas; as crianças, descredibilizadas em seus relatos. A falácia de que nas escolas todos são tratados da mesma forma fomenta a continuidade desse tipo de violência. Crianças negras e brancas recebem tratamento desigual, o que prejudica os processos de aprendizagem das primeiras. O racismo no cotidiano escolar faz com que essas crianças não queiram participar das atividades, não se sintam confortáveis na escola e tenham menos oportunidade de desenvolver suas habilidades. Traumatiza. Uma vez que as instituições escolares não promovem ambientes de acolhimento para os estudantes negros, acabam contribuindo diretamente para a manutenção do racismo. E podem contribuir para algo ainda mais nefasto, a morte dessas crianças.

Romper o silêncio sobre políticas conservadoras e genocidas na educação é central para a proteção das nossas crianças. Seu voto tem tudo a ver com isso

Segundo dados da Organização Mundial de Saúde, o risco de suicídio entre jovens negros é 45% maior que entre brancos, e o racismo potencializa esse risco. A violência racista no ambiente escolar faz com que crianças negras tenham vontade de morrer, e isso infelizmente não é uma metáfora. Essas crianças, assim como eu, esperam ser salvas da dor que o racismo provoca e, uma vez que a escola se mantém como um ambiente tóxico e perverso, a saída muitas vezes é provocar a própria morte. Para promover um ambiente escolar onde crianças e jovens negros não sejam cotidianamente expostos a agressões racistas, precisamos de políticas públicas. Para que essas políticas públicas sejam desenvolvidas, precisamos de governos que não as vejam como mimimi, mas sim levem a questão racial e a proteção de crianças e adolescentes a sério.

Enquanto escrevo essa coluna, recebo a notícia de que uma adolescente negra no estado do Rio de Janeiro cometeu suicídio após meses de violência racial na escola. O que aconteceu com o acolhimento dessa criança? Como a escola reagiu às violências que lhe foram desferidas? Romper o silêncio sobre o impacto de políticas conservadoras e genocidas na educação é central para a proteção das nossas crianças, e o seu voto tem tudo a ver com isso. Não seja cúmplice.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

Quer mais dicas como essas no seu email?

Inscreva-se nas nossas newsletters

  • Todas as newsletters
  • Semana
  • A mais lida
  • Nossas escolhas
  • Achamos que vale
  • Life hacks
  • Obrigada pelo interesse!

    Encaminhamos um e-mail de confirmação