Cercas farpadas entre o mundo e eu
Transitar entre espaços excludentes para pessoas negras e LGBTQ+ implica a constante necessidade de validação
Cercas farpadas habitam entre meu corpo e o mundo. Cercas de não pertencimento. Transitar entre espaços não desenhados para corpos negros e LGBTs implica a constante necessidade de validação para ultrapassar tais cercas farpadas, sejam elas imaginárias ou literais.
Cercas de não pertencimento assumem diversas formas.
Questionamento de pertencimento é uma dessas formas. Em espaços civilizadamente opressores, esse questionamento é sutil. Sutil para quem o pratica, agressivo para quem o percebe.
Elijah Anderson, da Universidade de Yale, nos dá um exemplo claro desta cerca de não pertencimento em seu artigo “This is What it Feels Like to Be Black in White Spaces” (esta é a sensação de ser negro em espaços brancos, em tradução livre). “Vendedores brancos e seguranças abordam repetidamente pessoas negras com uma pergunta insincera: “Posso te ajudar?”. O tom de voz e as circunstâncias desmentem uma verdadeira oferta de ajuda. Um jovem negro ouve a pergunta como “O que você faz aqui?”.
“Este é o nosso professor?”, escutei de relance ao entrar na sala de aula no meu primeiro dia como professor de direito. “Ah, você é o palestrante? Desculpe a confusão”, escutei tantas outras vezes ao chegar para um evento. Em um seminário de direitos humanos, enquanto eu ocupava o cargo de secretário-adjunto na Prefeitura de São Paulo, decidi sentar nas cadeiras reservadas a autoridades. “Quem é você?”, a organizadora me perguntou em tom intimidador.
‘Este é o nosso professor?’, escutei de relance ao entrar na sala de aula no meu primeiro dia como professor de direito
Estranhamento é outra cerca de não pertencimento. Anderson o chama de dissonância cognitiva. Quando corpos negros, LGBTs como o meu adentram um espaço homogeneamente ocupado por pessoas diferentes a mim, inúmeros são os olhares de cima para baixo. Intermináveis são os segundos em que o interlocutor te olha como quem procura uma forma de te encaixar socialmente naquele espaço.
Nada diferencia o meu corpo negro e LGBT, quando nu, de outros corpos negros, LGBTs periféricos, exceto que camadas de privilégio social adquiridas nos últimos anos me permitem caminhar por espaços brancos sem a ameaça constante da cerca de não pertencimento ser materializada por meio da violência física, por vezes, letal. No entanto, basta sair de casa sem documento, com roupas simples, e o mundo reconstrói as cercas. “Será que esse policial vai me parar? E se eu beijar meu namorado, estarei seguro nesta rua, neste bar?”
Condescendência talvez seja a forma de não pertencimento que mais me corta. Quantas vezes não participei de conferências onde me perguntaram: “Como você chegou até aqui?”, como quem pergunta a um urso polar numa floresta tropical. A pergunta pressupõe um distanciamento politicamente correto. Mascara uma preocupação – genuína ou não – de entender o outro, mas sem tirá-lo, sem me tirar da posição de outro, de não igual.
Quantas vezes não me perguntaram: ‘Como você chegou até aqui?’, como quem pergunta a um urso polar numa floresta tropical
“Conte-nos em cinco minutos como você venceu na vida, como aprendeu inglês fluente, como terminou o doutorado?” E a audiência pressupõe uma história triste. Pressupõe uma história com tons de heroísmo. E a posição a que sou reduzido de exceção heroica cansa e limita minhas possibilidades de navegar o mundo, ao mesmo tempo que serve de justificativa politicamente correta para o estado de segregação atual. Pressupõe que existe um aqui (espaços privilegiados) e um ali (onde estou). Pressupõe que apenas histórias excepcionais mereceriam ultrapassar essa cerca. Pressupõe necessidade de validação para que o meu corpo ocupe aquele espaço em posição formalmente não hierarquizada entre tantos outros corpos negros submetidos a posições hierarquizadas. Quantas vezes não fui o único negro sentado em uma mesa de reuniões sobre diversidade racial, onde todos garçons e copeiras ao meu redor – navegando os mesmos espaços – eram negros.
Um dos livros que mais me marcou recentemente foi o “Entre o Mundo e Eu” (Ed. Objetiva, 2015), do escritor Ta-Nehisi Coates. Ao escrever em forma de uma carta ao seu filho pequeno (seguindo a tradição de James Baldwin e outros), Coates ensina sobre como navegar o mundo num corpo negro. “Este é seu país, este é seu mundo, este é seu corpo, e você tem de encontrar algum modo de viver dentro de tudo isso. Estou lhe dizendo agora que a pergunta de como se vive dentro de um corpo negro, dentro de um país perdido no Sonho, é a pergunta da minha vida, e a busca pela resposta a essa pergunta é, afinal, a resposta em si mesma.”
Repito: “Você tem de encontrar algum modo de viver dentro de tudo isso”. Esta frase tem a força de nos chamar à ação. “As ferramentas do senhorio nunca desmantelarão a casa-grande”, como escreveu a autora americana Audre Lorde.
Formas de existir
Precisamos pensar outras formas de existir enquanto corpos negros e LGBTs em espaços privilegiados que não nos reduzam a corpos questionáveis, estranháveis ou reduzidos à uma história heroica.
Primeiro, se ame. Ame e apoie os demais corpos negros, LGBTs em espaços privilegiados. “Coletivamente, pessoas negras e nossos aliados somos empoderados quando praticamos o autoamor como uma intervenção revolucionária que mina as práticas de dominação”, escreveu bell hooks. Navegue por espaços privilegiados com a certeza de que não é um favor que lhe foi dado estar ali.
Não se deixe ser domesticado. É comum estar em espaços privilegiados e ter seu discurso crítico reduzido – intencionalmente ou não – a apenas um recorte. Quantas vezes não participei de debates sobre temas estruturais como o papel do judiciário no Brasil e, depois de apontar a seletividade racial, o moderador agradeceu o recorte racial e perguntou ao próximo colega branco sua visão sobre o judiciário “em geral”. Pensar em termos gerais é um privilégio que não é concedido a corpos negros e LGBTs.
Não se deixe ser domesticado. É comum estar em espaços privilegiados e ter seu discurso crítico reduzido – intencionalmente ou não
Domesticar discursos é reduzí-los a prelúdios necessários em debates politicamente corretos. Prelúdios porque antecedem o debate sobre o que o outro percebe como as questões reais, gerais, pós-identitárias. Como quem diz, “deixa eu colocar aqui uma pessoa negra e uma pessoa LGBT e depois passamos para as reais questões”. Enfatize sempre que olhar para questões raciais, LGBTs, de gênero e outras não é expor apenas uma vivência pessoal ou um recorte, mas dizer algo historicamente negligenciado sobre como a sociedade e suas estruturas devem ser pensadas “em geral”.
Não tenha medo de navegar, a seu modo, entre intersecções. Rio quando em debates sobre diversidade o moderador não sabe se me coloca na caixa LGBT ou negro. Questione as expectativas sobre masculinidade negra em espaços LGBTs, ao mesmo tempo questione expectativas sobre o lugar do LGBT em espaços negros. Assuma a responsabilidade enquanto homem negro de desmantelar estruturas de masculinidade tóxica e use sua identidade LGBT nessa tarefa. Assuma a responsabilidade enquanto aliado do feminismo negro e use os privilégios associados à masculinidade para tanto.
Pratique a solidariedade como forma de construir outros pertencimentos. Encontre outros corpos diferentes do seu, veja se eles questionam ou os estimule a questionar suas posições privilegiadas. Diante da pergunta “como é viver num mundo racista?”, devolva ao interlocutor não uma história triste de sucesso, mas questione “como é se beneficiar estruturalmente de um mundo racista?”
Pratique a solidariedade ao construir pontes com aliados em espaços privilegiados capazes de ultrapassar as cercas farpadas de não pertencimento. Alie-se a corpos privilegiados que te ajudem a construir outras alianças de pertencimento. Alie-se a outros corpos LGBTs, negros onde quer que você esteja, em especial aqueles que ocupem posições hierarquizadas, desiguais. Não reproduza com outros corpos LGBTs, negros estruturas de exclusão. Pratique a solidariedade para queimar as cercas farpadas que dizem “você não pertence aqui”.
Para quem carrega consigo histórias seculares de resistência, viver é inventar outros mundos onde nossos corpos pertençam.
*A fotografia que ilustra esse artigo é um trabalho da série Carnaval, de 1972, de Carlos Vergara, exposta no Masp na mostra Histórias Afro-Atlânticas e disponível no catálogo
Thiago de Souza Amparo é advogado e professor da FGV Direito SP (Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas). Foi secretário-adjunto de Direitos Humanos e Cidadania na Prefeitura de São Paulo em 2017