Maria Ribeiro
O gol 199
Em meio a tantas tristezas, fui ao Maracanã com meu filho e me dei conta, entre gols nossos e também do adversário, de que divido a vida com um cara legal e feminista
Era sábado. Havíamos combinado, meu filho mais velho e eu, de irmos ao Maracanã para a despedida do Fred. Naquele 9 de julho, Frederico Guedes, 38 anos, artilheiro do tricolor carioca, deixaria o Fluminense depois de dez anos de um casamento muitíssimo bem-sucedido (e de uma separação, idem).
Eu não costumo acompanhar futebol, mas, desde pequena, acompanho quem acompanha. Meu pai era torcedor profissional do clube das Laranjeiras, e passou o amor à camisa para mim e meus irmãos naquelas heranças primitivas onde, por mais que se tente, há pouco espaço para Freud.
João, portanto, herdou o time do avô, e, somado a isso, ou melhor, multiplicado por cem, o amor do pai, que, de tão apaixonado pelo esporte, conseguiu a proeza de chegar até aqui mantendo a fidelidade ao seu São Bento da infância, clube de Sorocaba, enquanto conjuga as bandeiras dos filhos, duas flamenguistas e um tricolor (a vida é desafio onde menos se espera).
Ver seu filho ser tomado por uma cultura que inclui sociologia, brasilidade, geografia e história, como o futebol, é um ingresso bonito. Recomendo
Fui feliz nessa arquibancada. Ver alguém ser tomado por uma cultura que inclui sociologia, brasilidade, geografia e história é um ingresso bonito. Recomendo. Paulo e João me deram cenas para sempre, o que se repetiu depois com João e Bento, meu segundo filho, que passou a ensinar para o irmão tudo o que havia aprendido com o pai.
Poucas coisas na vida me fizeram tão feliz quanto ver meu pequeno aprendendo, com o álbum de figurinhas da Copa de 2006, as bandeiras e os jogadores do mundial. Gana, Tunísia, Ucrânia, República Tcheca, cada país era um mundo inteiro na voz do meu então pequeno torcedor. Fecho os olhos e ainda ouço, como se o tempo nunca tivesse passado, a voz do meu primogênito e do meu ex-marido se exibindo, cada um na sua vaidade, a de professor e a de aprendiz, para a câmera da minha enteada Mariana, cineasta já ali.
Mas, deixa eu voltar. Eu estava no Fred, na sua despedida, e na ida ao Maracanã. Faltavam duas horas para o jogo, quando me dei conta de que não faria sentido irmos sem o Paulo. Eram ele e João, os jogadores lá de casa. Eu nunca saí do banco de reserva.
Paulo, vamos ao Maracanã com o João? Nós três? Agora? Aplaudir e agradecer ao Fred?
E assim, ingresso resolvido e no modo emoção, partimos os três para a Tijuca, errando o caminho e discutindo – ora com o Waze, ora entre a gente – mas sempre com a consciência de que veríamos um espetáculo grande. Ver um craque se despedir do seu ofício.
Tudo o que tem vindo à tona, de estupros a direitos negados, sempre aconteceu. A diferença é que agora, com câmeras como extensão dos braços, temos imagens
Estamos passando por meses difíceis, nós, mulheres. Na verdade, tudo o que tem vindo à tona nos últimos tempos, de estupros e abusos a direitos negados, sempre aconteceu. Sempre. A diferença é que agora, com câmeras como extensão dos braços, temos imagens. Imagens e um pouco mais de consciência do abismo criado pelo patriarcado. Mas claro que não pensei em nada disso enquanto chegava no estádio, e nem durante o jogo.
O que eu senti ali, durante todo o tempo, foi uma vontade imensa de chorar. Em meio a tantas tristezas, fui ao Maracanã com meu filho e me dei conta, entre gols nossos e também do adversário, de que divido a vida com um cara legal e feminista.
Era esse o futebol que eu queria.
Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)
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