Marcello Dantas
Tamanho não é Documenta
Qual será a proposta estética que surgirá depois de uma normalização das injustiças do passado?
Estamos vivendo um processo de decolonização cultural em escala global. Isso é, sem dúvida, uma reparação necessária para fazer justiça a todas as culturas saqueadas e negligenciadas ao longo dos tempos pelas instituições. É também algo presente na sociedade como um todo, mas de forma ainda mais gritante no âmbito cultural.
As práticas decoloniais envolvem uma mudança na narrativa da representação de processos coloniais pela repatriação de objetos saqueados para suas culturas de origem, uma maior representatividade de artistas e a transferência do processo de decisão curatorial para pessoas ou coletivos de origens negligenciadas.
Uma pesquisa da Mellon Foundation apontou que, em 2015, apenas 2% das posições curatoriais nos Estados Unidos eram ocupadas por pessoas afro-americanas. Em 2021, essa mesma pesquisa apontou um número de 11% para as posições de caráter criativo ou intelectual.
As obras ali apresentadas iam muito além de processos decoloniais. Elas traziam para a pauta da arte assuntos estranhos ao meio
A mais importante exposição de arte do mundo, a Documenta, em Kassel, na Alemanha, delegou a curadoria a um coletivo da Indonésia chamado Ruangrupa. Eles convidaram outros 14 coletivos de lugares tão díspares como Quênia, Rojava, Palestina, Bangladesh, entre outros, para participar como artistas. A intenção curatorial parece uma instância realmente inovadora no mundo da arte. O conceito intitulado de “lumbung” se refere a um depósito comum de arroz que a comunidade usufrui e administra coletivamente. Se pensarmos na arte como um acontecimento essencialmente individualizado, esse ato de distribuição soa como algo profundamente disruptivo ao sistema vigente. E realmente é.
As obras ali apresentadas iam muito além de processos decoloniais. Elas traziam para a pauta da arte assuntos estranhos ao meio, tais como creches, o canto como forma de resistência, a cozinha coletiva onde todos podem cozinhar para todos, a criação de brinquedos e a cultura cigana. As verbas foram distribuídas entre os coletivos que, por sua vez, criaram ações comunitárias de engajamento para desenvolver as obras.
A esperança dos curadores da Documenta não era meramente desafiar a definição eurocêntrica do que é arte e o que suas instituições consideram belo, valioso ou significativo. Sua missão também depende da disposição dos visitantes de questionar a autoridade dos sistemas que nos treinaram para desconsiderar os sinais de protesto feitos de papelão e canetas pilot e se alegrar ao ver neons fluorescentes montados nas paredes das galerias.
Por todas as esquinas, fica-se procurando onde está a arte. A resposta é a melhor obra da Documenta: não tem arte
Tudo parecia incrível como conceito. Até que, depois de vasculhar Kassel por todas as esquinas, fica-se procurando onde está a arte. A resposta é a melhor obra da Documenta: não tem arte. Não existe obra. Num processo de inversão da apropriação colonial, os artistas desses coletivos desapropriaram a obra de arte na Documenta. Deixaram a mais impotente quinquenal e a mais cara mostra de arte do mundo como os museus de seus países de origem ficaram após os saques coloniais: vazia.
Alguns vídeos dos processos, cartazes, slogans e documentação apresentam uma diversidade de histórias incompletas, fragmentadas ou descontextualizadas. Ao mesmo tempo, a mostra é absolutamente histórica na inversão de papéis entre quem usurpa e quem é usurpado. Os políticos alemães esbravejaram sobre o mau uso do dinheiro público e sobre a presença de coletivos palestinos com conteudo antissemita. Ou mesmo, por serem barrados na festa de BDSM que marcou a inauguração do evento, onde brancos e heterossexuais não eram exatamente bem-vindos. Conversando com alguns dos artistas participantes, deu para entender que o percurso também pode ter sido bastante traumático para alguns, ao enfrentar a estrutura racial alemã e as condições de trabalho a que foram submetidos.
A Documenta servirá sempre de marco de um processo histórico iniciado alguns anos antes. Porém, a pergunta permanece diante do vazio da mostra: qual será a proposta estética que surgirá depois de uma normalização das injustiças do passado? Qual será o tamanho e a diversidade estética além do protesto simbólico que uma Documenta pode produzir somando esses pontos de vista que ansiamos ver brotar?
Isso ficou como missão para uma próxima instância, talvez a Bienal de São Paulo, curada também por um grupo horizontalmente.
Se o mundo da arte ocidental é, aos olhos de Ruangrupa, um espaço frio, calculado, individualista, capitalista e, em última análise, inacessível, a pesquisa que eles criaram é exatamente o oposto. Independentemente do que os visitantes percebam da “qualidade” da arte, da crítica ao mercado ou da potência de sua mensagem política, Ruangrupa certamente conseguiu deixar claro que “outros caminhos são possíveis”. “E lembre-se!”, escrevem eles no manual da exposição, “Faça amigos, não faça arte!”
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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