Isabelle Moreira Lima
Encha a taça com o líquido do além mar
Em tempos de inflação, para encontrar achados de preço amigável vá à prateleira com a bandeira portuguesa, com certeza
Inflação nas alturas, dólar para lá da estratosfera, fica cada dia mais difícil beber vinho no Brasil. Amigas e amigos me perguntam sempre pela minha última descoberta de bom e barato e, às vezes, eu nem sei o que dizer porque, como me disse um motorista de Uber, hoje, barato só o marido da barata. Curiosamente, eu tenho notado, os principais achados convergem para um mesmo destino, um país que produz vinhos interessantíssimos, de ótimo custo benefício (um termo bem desgastado no mundo do vinho, e muitas vezes usado erroneamente, afinal de contas, não é sinônimo de barato, mas de bom negócio), e que quase sempre fazem muito mais que bonito: Portugal.
Lá, são cultivadas mais de 250 castas autóctones, ou seja, nativas do território português. Os nomes são deliciosamente esquisitos, divertidos especialmente para nós, que compartilhamos do idioma. E talvez por essa proximidade idiomática, é que somos um mercado prioritário para eles – vai tentar vender um Alvarinho (olha esse nh!) ou um Vinhão nos EUA, um Rabigato ou um Donzelinho na China (quem sabe em Macau…). Aqui, a gente entende e ainda dá risada. E por isso recebemos deles, a pedidos de importadores com demandas específicas (vinhos mais baratos que os de entrada) bebidas feitas especialmente para nós (Rapariga da Quinta é um exemplo; Portas do Sol, outro) e por um preço que o brasileiro que voltou a sofrer com a inflação nível era Sarney (isto é, todos nós) consegue pagar.
Em Portugal, são cultivadas mais de 250 castas nativas de nomes deliciosamente esquisitos
Para além das uvas, as regiões são bem marcadas e têm características distintas umas das outras, oferecendo um bom leque de perfis, dos mais discretos aos mais potentes. Entre os mais conhecidos, ao norte, o Douro, com seu sol inclemente e sua altitude sinuosa, com as videiras que sobem os socalcos da encosta do rio, oferece uma concentração elegante, com a alcidez das alturas e a potência de suas uvas amadurecidas por muita luz. Ao sul, o Alentejo, um verdadeiro cenário de Teletubbies, mostra a mais linda expressão de fruta madura e suculenta – você dá um gole e imagina a mordida numa ameixa perfeita, o sumo escorrendo pela garganta. A região dos Vinhos Verdes é conhecida pelos seus levíssimos branquinhos que pinicam a língua com a sua agulha, como são chamadas as microborbulhas. O que pouca gente sabe é que tem vinho feito ali que duram décadas. Se tiver chance, prove os Alvarinhos.
Menos conhecidas como produtora, a região de Lisboa é a que tem mandado para cá ótimos BBBs (Quinta dos Bons Ventos, Confidencial tinto, Porta 6 branco). Os mais baratinhos, os chamados “vinhos de entrada” das vinícolas, têm corpo leve e traz uma fruta mais pra cereja fresca que pra ameixa. De uma quase desconhecida Beira Interior, vêm castas como a Síria, aromática e mineral. Mas é do Dão, nem tão desconhecido assim, que vem a maior elegância, tintos que podem fazer uma noite de alegria, brancos cuja mineralidade é combinada com uma untuosidade inacreditável – como essa união é possível? Grave o nome dessa uva maravilhosa: Encruzado. E olhe que nem falei ainda do frescor insano das uvas Vadio cultivadas na Bairrada. Se você se deparar com os vinhos da Filipa Pato ou do seu pai, Luís Pato, por favor não pense duas vezes.
Isso aqui está meio parecido com um folder da câmara de comércio portuguesa? Eu atesto que não é, não tem jabá, mas tem paixão e alguma litragem. Fui três vezes a Portugal e confesso que bebi. Da primeira vez, fiz um roteiro pelo Douro e participei das celebrações dos 260 anos de sua demarcação de origem controlada, a primeira do mundo. Sabe a história? Ali se fazia vinho do Porto desde que a Inglaterra, historicamente grande bebedora de vinhos, havia entrado em guerra com a França. Sem os vinhos franceses, foram procurar claretes alhures. Amaram o que o Douro produzia, mas a bebida viajava mal. Como era mais distante, o balanço e o tempo no mar entregavam um vinagrão. Alguém teve a ideia de jogar uma aguardente vínica antes da total fermentação das uvas, resultando num vinho muito concentrado (Douro, afinal), doce (porque a fermentação foi interrompida antes do fim) e alcoólico (porque levava a aguardente), que era exatamente o que os ingleses queriam. Nascia assim o vinho do Porto e o Marquês de Pombal achou bem demarcar tudo antes que algum engraçadinho resolvesse tirar vantagem de alguma maneira.
Nos anos 90, uns caras chamados Douro Boys resolveram investir no chamado vinho tranquilo, que é o vinho não fortificado, os tintos normais que tomamos por aqui. E foi o maior sucesso. Hoje, se duvidar, Portugal tem mais dificuldade para vender os Portos fortificados que os tranquilos. Os Douro Boys já são uns vovôs, mas seus descendentes (muitas mulheres) tocam o barco e engarrafam bebidas maravilhosas.
Em uma manhã, provei mais de 200 vinhos. Minha língua virou uma lixa, mas tive a certeza de fazer um curso avançado e intensivo de prazer sensorial
Resolvi falar sobre Portugal também porque essa ideia de que eles oferecem o melhor custo-benefício hoje não é só minha. Nesta semana, ouvi um podcast inglês chamado Wine Blast, produzido por dois Masters of Wine. Era um episódio sobre vinhos de supermercado e eles ouviam três especialistas sobre como fazer as melhores compras. Quando questionados qual o país que fazia a produção mais interessante hoje, os três responderam imediatamente Portugal. Um deles ainda aconselhou: e não olhe só para os baratos, pensamos em bom custo-benefício, mas essa boa relação preço-bebida está em todos os níveis. Você pode comprar então um vinho português excepcional muito mais barato do provavelmente vai comprar um francês ou espanhol excepcional.
Da segunda vez que fui por lá, participei do concurso que elege o melhor vinho do ano entre brancos, tintos e rosés. Em uma manhã, provei mais de 200 vinhos. Minha língua virou uma lixa, meus dentes ficaram pretos, mas eu tive certeza de que estava fazendo um curso avançado e intensivo do que é sentir o prazer sensorial do vinho. Convido você, então, que chegou até aqui comigo, a se aventurar por vinhos quando notar nomes esquisitos nos rótulos: é uma casta portuguesa, com certeza!
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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