Electro na Bastilha
Do fim dos anos 90, quando ganhou fama mundial com o Daft Punk e o French Touch, até a produção atual, conheça a importância e as novidades da música eletrônica francesa
A música eletrônica francesa é tão relevante e influente no mundo todo que até ganhou um termo próprio para identificá-la: French Touch. Ainda que nem todos os artistas se encaixem perfeitamente no rótulo, essa denominação serve para designar uma estética e um certo toque de classe que distingue essa música de qualquer outra.
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A influência do French Touch muitas vezes transcende fronteiras e chega ao pop internacional – seja com o Daft Punk trabalhando com Pharrell, Nile Rodgers (Chic) e Giorgio Moroder, ou mesmo sendo sampleado pelo Kanye West; seja com Philippe Zdar (dos duos Cassius e Motorbass) produzindo The Rapture, Beastie Boys, Hot Chip e Cat Power. Há ainda Mirwais, que assinou a produção de álbuns da Madonna no começo dos anos 2000 (“Ray of Light” e “Madame X”). Com seu auge entre a segunda metade dos anos 90 até o início dos 2000, essa “mão francesa” na hora de produzir música continua a render frutos até hoje.
Mas, afinal, o que determina essa sonoridade do chamado French Touch? “Os franceses encontraram um novo jeito de mixar a disco music e o funk com a house e o techno”, define o narrador do documentário francês “French Waves”, de Julian Starke, lançado em 2017. É o caso de “Supernature”, de Cerrone, superstar da disco francesa. “Toco muito Cerrone, é muito atemporal. Mundialmente falando, acho que ele foi um marco na história da música”, diz a DJ Bárbara Boeing, mostrando a importância desse ícone da disco na música eletrônica até hoje.
Em termos de construção, há alguns pontos em comum, como a repetição da melodia e de samples (trechos de outras músicas) curtos e os vocais com filtros ou vocoder (programa que digitaliza a voz humana). “Embora tudo o que foi produzido naquela época, mesmo que com personalidades diferentes, tenha entrado nesse guarda-chuva do French Touch, ainda assim é elogioso, porque isso virou um holofote em cima da música francesa daquele momento”, acredita o produtor musical parisiense Alex Gopher.
Os ícones
Impossível falar de French Touch sem pensar imediatamente em Daft Punk. Thomas Bangalter e Guy-Manuel de Homem-Christo, dois músicos parisienses de capacete e ar robótico, ainda são os representantes mais populares do estilo que deu à música francesa prestígio internacional e influenciou artistas do mundo todo. Para chegar até esse ponto de partida em 1997, quando o Daft Punk lançou seu primeiro disco, “Homework” (que venderia milhões de exemplares e faria a música eletrônica francesa ser admirada mundialmente), é preciso andar algumas casas para trás no tabuleiro e chegar ao techno tocado na França no início dos anos 1990, quando surgiram muitos nomes que estabeleceram a reputação da música eletrônica, e que são relevantes até hoje no mercado. É o caso do DJ e produtor musical Laurent Garnier.
Daft Punk Divulgação
“Nós construímos as bases, mas permanecemos na cena mais underground, sem fazer tanto barulho. É inegável que foi com a chegada do Daft Punk que o gênero se popularizou na França”, diz o artista no documentário “French Waves”. E completa. “O Daft conseguiu ao mesmo tempo ser underground e vender muito, mantendo sua integridade artística. Tiro o chapéu para isso. Eles foram os que realmente transformaram a cena musical.”
Pioneiro do techno na França, Laurent Garnier não só acompanhou como participou dessa transformação. Ele faz parte da primeira turma que, influenciada pelas sonoridades vindas de Detroit (pai do techno) e Chicago (mãe da house), iniciou a virada da então reinante disco music para a música dos sintetizadores na noite francesa.
O Daft conseguiu ao mesmo tempo ser underground e vender muito, mantendo sua integridade artística
Mas não foi tão fácil assim. “O techno não era considerado uma cultura, um gênero musical. Nenhum clube em Paris queria deixar a gente tocar”, conta, numa entrevista para a televisão francesa, Bob Sinclar, DJ e produtor musical que mais tarde viria a ser um dos símbolos do French Touch. David Guetta, um dos DJs mais populares do mundo, é outro que se iniciou na música eletrônica tocando em raves clandestinas dentro de túneis no então distante bairro de La Défense, em Paris. Um ano mais tarde, em 1992, Laurent Garnier estreava, com Éric Morand (na época diretor artístico do selo de música eletrônica da Fnac), uma noite no Rex, reduto da cena eletrônica e um dos poucos endereços que, desde 1988 (com uma festa inglesa chamada Jungle), tocava o gênero em Paris.
Entre as rádios, além da FG, grande propulsora da música eletrônica na capital, a rádio Nova, instituição de variedades e novidades francesas no ar desde 1981, começou a dar espaço para a cena em sua programação, convidando Laurent Garnier a fazer um programa de algumas horas chamado Paradise Garage, em que ele tocava não só o que havia de mais novo do techno internacional, mas muitos de seus contemporâneos DJs e produtores franceses.
Cena parisiense
Não por acaso, Laurent Garnier é chamado de “DJ dos DJs” por muitos artistas de hoje – ou de “papa”, como definiu a DJ Blessed Madonna, uma das mais importantes da sua geração, no documentário “Laurent Garnier: Off the Record”, lançado em dezembro do ano passado.
O DJ e produtor Laurent Garnier, conhecido como o DJ dos DJs WikiCommons
“Ele é um DJ que vai tocar techno, house, breaks, jazz, rock, criando diferentes atmosferas, surpreendendo, mostrando músicas novas e clássicas na hora certa. Poucos DJs hoje em dia sabem contar uma história com começo, meio e fim, com esse nível de conhecimento musical, ao mesmo tempo que tem técnica e uma leitura de pista supersensível. Por isso é o DJ dos DJs, é o cara que outros DJs correm para ver quando está tocando em uma festa”, diz a DJ e empresária Eli Iwasa. Promoter do extinto clube Lov.e, em São Paulo, onde Garnier tocou no início dos anos 2000, Eli acompanhou tanto o furor causado pelo DJ francês no Brasil como os intercâmbios gerados por essa aproximação, que possibilitou que DJs brasileiros como Renato Cohen e Mau Mau, Anderson Noise e Marky tocassem no Rex – onde o francês era residente desde os anos 1990. Garnier lançava ainda novos artistas franceses pelo Fcom, selo que manteve de 1994 a 2008 com Éric Morand.
Sem internet, as trocas aconteciam na noite ou nas lojas de discos ao redor da praça da Bastilha, epicentro parisiense da cena eletrônica noventista
Numa década sem redes sociais, em que a internet ainda era rudimentar, as trocas aconteciam pessoalmente, fosse em viagens, na noite ou nas lojas de discos ao redor da praça da Bastilha, que virou o epicentro parisiense da cena eletrônica noventista. Todos se cruzavam, tocavam uns nas festas dos outros e driblavam as ações da polícia que, por orientação do Ministério do Interior francês, fazia de tudo para o techno não vingar. O governo francês chegou a distribuir folhetos pelas principais cidades do país com o título “Raves: Situações de Alto Risco”. A partir de 1993, quando foi criado, o Daft Punk bebeu dessa fonte para fazer sua própria receita musical, que viraria o sinônimo do que foi batizado de French Touch.
Francês para inglês e o mundo verem
Curiosamente, o termo French Touch não é invenção de qualquer francês, mas da imprensa britânica, ao perceber a produção de uma série de artistas da música eletrônica francesa, que se encontravam na similaridade desse “toque”, ou para usar um termo francês, desse “je ne sais quoi” elegante e cool, mas que tinham suas particularidades.
A dupla Air, abreviação para Amour, Imagination, Rêve Linda Bujoli/Divulgação
Fazem parte do estilo, então, nomes contemporâneos dos anos 1990 mas com linguagens próprias, como a dupla Air (abreviação para Amour, Imagination, Rêve), de Nicolas Godin e Jean-Benoît Dunckel, que lançou seu primeiro disco, “Moon Safari”, em 1998, apenas um ano depois do “Homework”, do Daft Punk. Conviveram, assim, na mesma atmosfera, a musicalidade mais lenta e flutuante do Air; o suingue robotizado do Daft Punk e da a dupla Cassius, de Philippe Zdar e Hubert Boombass; a house com influência da black music americana do duo Motorbass, de Philippe Zdar e Étienne de Crécy; a house com jazz de Dimitri from Paris. Sem esquecer, claro, do Stardust, um trio formado por Thomas Bangalter, Alan Braxe e Benjamin Diamond, criado para lançar uma única música, “Music Sounds Better With You”, considerado o hino do French Touch.
French Touch é invenção da imprensa britânica, ao perceber a produção de artistas com o mesmo ‘je ne sais quoi’ elegante e cool
Saindo dos anos 1990 e entrando nos 2000, surge uma nova geração representada, entre outros, pelo electro da francesa Miss Kittin e, um pouco mais tarde, pelo maximal do Justice, duo formado por Gaspard Augé e Xavier de Rosnay, descoberto por Pedro Winter, DJ, manager do Daft Punk de 1996 a 2008 e dono do selo Ed Banger Records (responsável por lançar muitos clássicos contemporâneos, como SebastiAn e Mr. Oizo).
Hoje, há desde os clássicos franceses que seguem se renovando e garantindo lugar de relevância em grandes festivais, como David Guetta e Laurent Garnier, como uma infinidade de novos artistas criando novas sonoridades a partir – ou não – do French Touch original, como Phoenix, Jennifer Cardini, Cosmo Vitelli e Folamour. “Artistas mais ligados ao lado orgânico da música, que não tocam música eletrônica como regra, sempre me fascinam. Algumas referências francesas neste aspecto são Vidal Benjamin, pela sua coleção de músicas muito próximas do que amo, e também o jovem parisiense Souldade, dono dos edits que mais tenho tocado nos últimos tempos”, diz Bárbara.
Este conteúdo é parte da série “Para conhecer a música francesa”, uma parceria institucional com a iniciativa “What the France”, marca de referência da organização CNM (Centre National de la Musique) criada para promover a diversidade da música produzida na França.