Padre Julio Lancelotti: 'Não há diálogo quando há desigualdade' — Gama Revista
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Camilo Cassoli / Parece Cinema

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Conversas

‘Todas essas vezes em que eu fui agredido, ameaçado, é porque o diálogo foi rompido’

Em 35 anos de ordenação, o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua de São Paulo, enfrenta autoridades e diz que sempre esteve do mesmo lado, o dos pobres

Isabelle Moreira Lima 20 de Setembro de 2020

‘Todas essas vezes em que eu fui agredido, ameaçado, é porque o diálogo foi rompido’

Isabelle Moreira Lima 20 de Setembro de 2020
Camilo Cassoli / Parece Cinema

Em 35 anos de ordenação, o padre Júlio Lancelotti, da Pastoral de Rua de São Paulo, enfrenta autoridades e diz que sempre esteve do mesmo lado, o dos pobres

O padre Júlio Lancellotti incomoda muita gente. Em 35 anos de ordenação, completados no começo deste ano, o coordenador da Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo e pároco da Igreja São Miguel Arcanjo, do bairro da Mooca, brigou com diversas autoridades políticas e policiais — há um processo em curso do presidente Jair Bolsonaro contra ele, por exemplo, pelo padre ter dito que o então deputado era racista, machista e homofóbico.

Ameaças são corriqueiras. Na última semana, ele registrou um boletim de ocorrência por intimidações feitas por um motoqueiro enquanto atendia pessoas em situação de rua. O sacerdote liga os xingamentos recebidos ao pré-candidato à prefeitura de São Paulo Arthur do Val (Patriota), mais conhecido como Mamãe Falei, que nega as acusações.

É comum que Lancellotti se veja também na posição de acusado. Entre as mais “leves”, autoridades da cidade já falaram que ele é um incômodo necessário ou que enfeia São Paulo, devido ao trabalho que faz com pessoas em situação de rua, alocadas no centro da cidade. Arthur do Val chegou a dizer em vídeo que Lancellotti fomenta o tráfico de drogas.

A perseguição é proporcional à sua disposição. Aos 71, o padre é visivelmente incansável, uma vez que sua atuação é muito bem documentada hoje nas redes sociais. Durante a pandemia, seus 225 mil seguidores no Instagram puderam acompanhá-lo expondo doenças de quem vive na rua, ataques de percevejos a abrigos, pedindo doações, ou apenas contando os casos das pessoas a quem serviu um prato de comida ou com quem trocou ideias, como uma mulher trans que finalmente conseguiu os documentos com seu nome social ou ao lado de uma mãe de santo, fato tão ecumenicamente sui generis que chegou a virar notícia. O que ele diz é que sempre esteve do lado que quis estar — o dos oprimidos — e não tem intenção de mudar. É por eles que luta e é a desigualdade o maior entrave para o diálogo no Brasil atual.

Camilo Cassoli / Parece Cinema

Quem me processa é quem tem poder. É uma forma de calar, não é uma forma de dialogar

  • G |O sr. faz um trabalho diário nas ruas, atende e fala com muita gente. Como é possível dialogar com quem é tão diferente?

    Júlio Lancellotti |

    O diálogo supõe a diferença. O diálogo com o igual é monólogo. Nenhuma pessoa é igual a outra, todos as pessoas são diferentes. E o diálogo não significa concordância, ele pode ser discordância. Pode ser encontro, pode ser fim, pode ser começo. O próprio do diálogo é a conversa, a palavra com o diferente. Com o mesmo, consigo mesmo, é um monólogo.

  • G |Na pandemia, o sr. fez um trabalho social intenso enquanto muitos estavam em isolamento. Fez fotos de pessoas com necessidades, pediu ajuda, tirou foto com mãe de santo. Como acha que esse trabalho pode trazer conscientização para as desigualdades e diferenças?

    JL |

    Ajuda a perceber que nós temos que dialogar com todos, com os que pensam semelhante e com os que pensam diferente. E o diálogo tem que ser com os que se opõem, mas ele não deve nunca ser com ódio nem com rancor, nem para destruir o outros. Aí não é mais diálogo, mas ameaça. Não é diálogo é imposição. Ninguém é dialógico impondo ou ameaçando. O diálogo pressupõe proximidade, igualdade, reconhecimento do outro. Por isso eu não chamo a minha ação de trabalho, mas de convivência

  • G |Na última semana, o sr. publicou um vídeo no Twitter em que contava de ameaças recebidas na rua. Isso parece ser comum na sua experiência, mas se intensificou nos últimos tempos? O diálogo é suficiente para resolver quando há violência assim?

    JL |

    Quando há violência, não há diálogo. Todas essas vezes em que eu fui agredido, ameaçado, é porque o diálogo foi rompido. Já tive que participar de negociação em presídios, em rebeliões. Isso não é diálogo, é imposição. Com essas imposições, já levei gás de pimenta, tive que enfrentar tropa de choque, tive que correr de bomba de gás, de linha de tiro. Tudo isso é a negação do diálogo, é imposição pela força. O diálogo tem a força de ouvir e de falar. A imposição tem a força de impor. Então, a violência não é dialógica, é imposição que cala. Não ouve o outro, cala. A única coisa que ouve é o gemido. E com o gemido não tem diálogo, é a dor que um impôs ao outro.

  • G |Mas então qual é a saída para isso? O que se faz se o diálogo fica impossível?

    JL |

    É resistir, é o enfrentamento, é não ter medo do conflito. O conflito é uma forma de dialogar dizendo ao outro que você me calou, mas minha voz vai ressoar. Você me destruiu, mas eu vou continuar a caminhar. Você cortou a minha língua, mas eu vou continuar a gritar.

  • G |Dá para fazer isso sem ser violento?

    JL |

    A violência é sempre considerada como uma reação daqueles que foram violentados. Quando a força da polícia vem sobre os pobres, fracos, as minorias, aí não é violência, é ordem. É a ordem e a disciplina. Quando os que são violentados reagem, aí se chama de violência. Então a gente precisa entender o que se chama de violência. Ela é sempre considerada, num sistema como o nosso, a reação dos violentados.

  • G |Como vê essa visão de violência?

    JL |

    É uma visão classista, elitista. Aqueles que causam a fome do povo, não são violentos. Há violência quando famintos quebram a vitrine e pegam o alimento. Aí é violência. Enquanto os bancos exploram o povo e tem lucro de bilhões num momento de pobreza, isso não é violência; é mercado competitivo, é lucro. Mas quando os pobres arrebentam a vidraça do banco, aí é violência.

  • G |A população de rua cresceu muito também nesse período de pandemia. O trabalho deve estar mais intenso. E o sr. tem um histórico de briga com a prefeitura de SP. Como ficou a relação entre vocês. Há diálogo?

    JL |

    Muitas vezes, com as autoridades é um diálogo entre surdos. Só quem tem poder considera que o que fala é razoável. Então isso é uma imposição a meu ver. Muitas vezes eles pisam e dizem “estamos abertos ao diálogo”, mas apenas quando a outra parte fica calada. Quando os pobres se calam, [os poderosos] estão abertos ao diálogo. Quando falam, faltaram ao respeito; é insubordinação. O diálogo supõe igualdade, nunca é vertical, é sempre horizontal: é o reconhecimento do outro que também tem palavra, que sente, que pensa. O binômio lei e ordem nunca é dialógico, é impositivo. Num tribunal, só se pode falar se um juiz autoriza. Ele pode falar sempre, mas quem não é ele só pode falar quando ele determina. Isso é um diálogo? Existe um diálogo no mundo jurídico? No mundo religioso, que impõe idéias religiosas? Existe no mundo político, financeiro e econômico?

  • G |Está faltando diálogo no mundo?

    JL |

    O mundo vai se estruturando e se estratificando na desigualdade. E nela um grita e outro sussurra; um canta e o outro chora. Não há um diálogo. O diálogo supõe empatia e não antipatia. Uma sociedade de classes e elites é uma estrutura antipática.

  • G |No seu trabalho, o sr. une política à religião, que são dois assuntos que, segundo o ditado, não se discutem. O quão difícil é isso? Se sente incompreendido de alguma forma?

    JL |

    Quem formula esse ditado? Esse é um ditado elitista, é o ditado do monólogo, não é um ditado de diálogo. Porque não se pode dialogar sobre política? Sobre religião? Então esse já é um ditado impositivo de assuntos dogmáticos. A política é uma ideologia, uma dominação, um dogma. Hoje o que estamos vivendo é um dogma político, como também o dogma religioso. Você não pode discutir. É uma imposição que não admite dúvida, questionamento, perguntas. É um ditado bastante impositivo, positivista, nacionalista e bastante antidialógico.

  • G |O sr. se sente incompreendido?

    JL |

    Todos nós em algum momento nos sentimos incompreendidos. A palavra vela o mistério. Nem com o diálogo somos capazes de entender tudo. Mesmo com crianças eu uso uma fórmula “tem coisas que você pode dizer para todo mundo. Tem coisas que você só diz para quem ama. E tem coisas que não diz para ninguém, que são só suas”. O diálogo supõe também o respeito a intimidade, a subjetividade e a atividade de ter coisas que são só minhas, que às vezes nem eu sou capaz de compreender.

  • G |O sr. foi processado pelo presidente Jair Bolsonaro. Como está o processo?

    JL |

    Esse processo está em andamento para discussão de foro. Há recursos. É uma coisa que talvez não tenha muito interesse e que está sendo levada justamente porque é uma questão de poder. Quem me processa é quem tem poder e quem é processado — que sou eu — não tem poder político, econômico, hierárquico. É uma forma de calar, não é uma forma de dialogar.

  • G |O sr. já foi chamado de rebelde e afirmou que o cristianismo por natureza é conflitivo. Como essa característica ajuda ou atrapalha seu trabalho?

    JL |

    O conflito sempre é uma disputa. No conflito, sempre há posições antagônicas e diferentes. Quem tem poder, regalias ou privilégios jamais vai abrir mão. Quem está em posição social alta dificilmente vai aceitar mudar de lugar. É um desafio e é um conflito. Lutar com os pobres e junto com eles sempre vai gerar conflito. Por isso que o cristianismo é conflitivo. Ele confronta a idolatria do mercado e do poder. A própria vida de Jesus, dentro do cristianismo, é uma vida de conflito. O diálogo expõe as diferenças, ele não as suprime.

  • G |Esse pode ser o engano comum, de achar que invariavelmente deve-se chegar a um acordo.

    JL |

    Isso é uma romantização do diálogo. O diálogo é sim, mas também é não. Ele é eu quero ou não quero, eu aceito ou não aceito. O diálogo pode explicitar a diferença e o conflito. É ilusão pensar que do conflito não vai ter confronto. Vai ter confronto sim.

  • G |O sr. completou neste ano 35 anos de ordenação. Os desafios cresceram hoje em relação a seu começo? Como viu o seu trabalho evoluir ao longo dessas décadas?

    JL |

    Tem coisas que podem ter avançado. Todos nós mudamos porque a vida é uma história em construção e tem que ser contextualizada dentro de cada momento. O importante é manter sempre o pé no chão. Uma coisa eu posso dizer depois de 35 anos: eu não mudei de lado. Eu nunca quis estar do lado dos que pisam. Sempre estou do lado dos que são pisados. Nunca quis estar do lado dos que batem, sempre estou do lado dos que apanham. Nunca quis estar do lado dos que ganham, aprendi a estar do lado dos que perdem. Nunca fiquei do lado dos que jogam bomba, mas do lado dos que são atingidos. E não quero mudar de lado.

  • G |O sr. é bastante ativo no Instagram, no Twitter. Qual a importância da comunicação nas redes sociais para o seu trabalho?

    JL |

    É uma linguagem do mundo de hoje. É uma linguagem que como todas, podem ter um sentido dúbio. Ela pode ser utilizada para sinalizar esperança, como pode ser fake news. Tanto pode ser produtora de esperança, como máquina do ódio. Nada é neutro. Os algoritmos nos fabricam e são fabricados. Eles nos revelam e nos velam; se orientam e nos orientam.

  • G |Mas o sr. acha que o alcance do que o sr. faz cresceu? Encontrou uma linguagem nova?

    JL |

    A gente vive num mundo de bolhas. Eu estou numa bolha e essa bolha de vez em quando estoura e se tange com outras. Então há grupos que estão nesse mundo que nunca vou conhecer nem vão me conhecer. E tem grupos que se antagonizam nessas redes. E tem outros ainda que se encontram e se reencontram. Essas redes podem te sinalizar conflitos, desencontros como também sinalizar encontros.

  • G |A Igreja Católica muitas vezes é fechada para a diferença, como no caso das pessoas da comunidade LGBTQ. Como o sr. vê esse paradoxo, de uma religião que prega o amor ao próximo, mas exclui irmãos de uma comunidade?

    JL |

    Esse amor ele está sendo colocado em xeque. E esse amor tem que ser contextualizado e com o pé no chão. É impossível ter amor ao próximo e odiar os povos ancestrais, é impossível ter amor ao próximo e não reconhecer os quilombolas, com homofobia, e com LGBTfobia. É possível que o amor seja final e vivencial. Não pode ser uma ideia. O amor não é uma poesia, é uma vivência. E você não pode fazer do teu amor uma escolha elitista. Não pode matar os da minha fé, mas o da outra pode. Isso é um amor vesgo.

  • G |Essa visão não é unânime. O sr. encontra resistência dentro da Igreja?

    JL |

    Se encontro ninguém diz para mim “não ame assim”. Eu digo isso a muita gente, muito aos casais: o amor é filho da liberdade. Não existe amor sem liberdade, ninguém ama por imposição. O amor é libertador porque é dar a vida. Você só entrega a sua vida se você for livre. O ódio mata, o amor faz viver.

  • G |O que o sr. considera o maior entrave para o diálogo no Brasil de hoje?

    JL |

    A desigualdade, as injustiças. Você não dialoga fazendo o outro sofrer. Não há diálogo quando há fome, miséria, abandono, desigualdade. Não há diálogo quando uns estão com boca costurada e outros com boca perfumada.

*As imagens utilizadas para ilustrar essa entrevista são parte de dois documentários produzidos pela produtora Parece Cinema sobre o trabalho da Pastoral do Povo na Rua