A ciência da fofura
De figuras ‘kawaii’, como a Hello Kitty, a vídeos de filhotes e memes de bebês, somos viciados em coisas fofas. A ciência explica por quê. Spoiler: elas fazem bem, até no trabalho
Faz 20 anos que Joshua Dale vive no Japão, a terra do “kawaii” — a fofura à japonesa+. Mas na última década ele percebeu uma nova tendência: obras que interrompem o trânsito, barreiras que atrapalham pedestres ou qualquer intervenção que incomode a rotina passaram a usar imagens fofas com as mensagens explicativas. “Seja a Hello Kitty ou um sapinho verde, eles estão em toda parte”, diz. A explicação? “As empresas viram na fofura uma forma de contrabalancear a frustração decorrente de uma proibição ou obrigação nova. E funciona.”
Essa “fofura de autoridade” (o uso de coisas bonitinhas para efeitos de obediência) mostra como os japoneses dominaram, como nenhum país no mundo, o uso da fofura com fins pragmáticos. A mascotização (yuru-kyara) é tradição nacional: cada cidade, evento ou marca tem um serzinho fofo para chamar de seu — o concurso anual (um Oscar dos Mascotes) é um sucesso. Até a Marinha, responsável por defender o arquipélago de inimigos, criou um mascote — um pepino do mar cor de rosa com grandes olhos azuis vestido de marinheiro.
Fofura, por lá, é coisa séria. Décadas de pesquisa nos “cutes studies”, campo que investiga os aspectos culturais e científicos por trás de nosso interesse por coisas fofas, foram reunidas no livro “The Aesthetics and Affects of Cuteness”, editado por Dale. Há estudos sobre a fofura na terra do Mickey e na de Hello Kitty. “Mas o Japão vive uma ubiquidade da fofura”, diz Dale, especialista em história da fofura e professor da Universidade Tokyo Gakugey.
Tal apreço pela antropomorfização (quando se empresta características humanas a outros seres, como Hello Kitty, Pikachu ou os kyaraben, sushis com formato de carinhas) pode soar curioso. Mas a fixação ocidental por vídeos de gatinhos, cachorrinhos e bebês, que inundam o Youtube e conquistam o mundo com a velocidade das redes sociais, se nutre dos mesmos fundamentos biológicos. E tudo bem também — a fofura faz bem.
A ciência da fofura
Quem diria que ver vídeos de gatinhos, cachorrinhos — e cabrinhas de pijama, por que não, como esse, visto 11 milhões de vezes — teria um efeito terapêutico comprovado pela ciência? Os estudiosos da fofura. Sim, existe um campo de pesquisa específico, os “cute studies”, e ele se divide em duas facetas: uma científica, ligada à neurociência e à psicologia, e outra ligada à cultura, à história e às humanidades. Tem fofura pra todo mundo no universo acadêmico.
A primeira estuda o que, do ponto de vista da emoção e da fisiologia, nos estimula a ver algo como fofo e como, uma pesquisa que remonta aos anos 1940, quando o etologista Konrad Lorenz tentou entender por que bebês e filhotes nos causam tal sensação. Lorens batizou seu achado de esquema infantil. Em suma, concluiu, consideramos seres com cabeça grande e testa, olhos e bochechas proeminentes, mas corpos e membros pequenos fofos — o que seria a resposta evolucionária para que sentíssemos o impulso de cuidar dos vulneráveis.
“Parte da conclusão estava correta”, diz Dale. “Nos últimos anos, os cientistas comprovaram que esses elementos de fato nos atraem — seja num neném, num filhote ou num boneco. Mas não há provas de que a fofura nos faça querer cuidar de alguém. “Ela nos estimula a socializar.” Em suma, ser exposto a algo fofo, como esse vídeo de cãezinhos, nos deixa prontos para ser felizes. Segundo um estudo da Universidade de Indiana, as pessoas se sentem menos ansiosas e mais cheias de energia após verem um vídeo de gatinhos. Ficam tão bem que a sensação suplanta a culpa por procrastinar e ajuda a enfrentar tarefas difíceis.
“Um estudo mostrou que quem pede esmola na companhia de um bichinho tende a receber mais dinheiro”, diz Dale. Outro, sobre o preenchimento de dados em questionários, concluiu que as pessoas se aproximam mais das mesas e tendem a preencher mais os formulários quando a imagem fofa está ali perto. E mais um concluiu que causas ambientais que usam imagens fofas recebem mais apoio. “Até uma lixeira com uma imagem fofa tende a ser mais usada.”
Além de estímulos visuais, sons também nos fazem avaliar algo como fofo. Como uma gargalhada de bebê, um passarinho cantando — ou qualquer animal pequeno, que faz sons “infantis” dado o tamanho de sua laringe. Brinquedos que fazem sons a partir do ar — como os que apertamos — também ativam a mesma parte do cérebro ligada à fofura. E mesmo cheiros, como os de produtos de bebê, disparam sensações similares.
A fofura produz concentração e foco
Pesquisas recentes têm analisado a atividade cerebral de indivíduos em máquinas de ressonância magnética. “A primeira conclusão é que tudo o que é fofo atrai nossa atenção em 1/7 de segundo, antes mesmo que tenhamos tempo de pensar a respeito da imagem”, diz Dale. “Quando ocorre a avaliação cognitiva (o que vamos fazer em relação ao objeto), nossa reação é querer ser sociável com o objeto, chegar perto, conversar, brincar.”
O mais intrigante é que tudo o que é fofo nos prepara não só para sorrir (estudos mostram que coisas fofas estimulam a musculatura utilizada ao sorrir), mas para ser mais empático naquela reunião chata ou mesmo lidar com mais atenção com um relatório insuportável. “A fofura é um ‘primer’ cognitivo, que pode nos ajudar com muita coisa na vida”, diz Dale. “Ela aumenta a empatia — algo crucial numa reunião, por exemplo: você estará mais sintonizado com as emoções dos outros. Sobretudo agora, que estamos fazendo tudo à distância.”
Um estudo da Universidade de Hiroshima, do cientista Hiroshi Nittono, mostrou que ficar olhando para imagens de filhotes melhora a atenção, o foco, a concentração, sobretudo em tarefas que demandam dexteridade e cuidado extremo. Algo similar havia surgido num estudo americano de 2009, que testou a habilidade de indivíduos no jogo infantil “Operando”.
“Em aplicações futuras”, conclui o estudo, “objetos fofos poderiam ser usados como indutor emocional de comportamentos de cuidado em situações específicas, como ao dirigir ou em escritórios.” Tanto que Nittono lista dez efeitos da fofura, dentre eles: “manter a atenção de quem olha por mais tempo”, “encorajar comportamentos precisos”, “aumentar a atenção aos detalhes”, “nos fazer aceitar um pedido”, “nos fazer menos duros com nós mesmos” e — o mais interessante nesses tempos — “tem um efeito calmante, que cura.”
Então fofura vicia?
Quem envia uma foto, meme ou vídeo com animais fofinhos para um amigo não faz ideia do poder que isso tem no cérebro. A inesperada dose de fofura dispara no cérebro uma série de reações — uma delas sendo a produção de dopamina, da mesma forma (em escala bem menor, é claro) que uma droga viciante como a nicotina ou a cocaína. É o que explica o neurocientista Olav Krigolson, University de Victoria, no Canadá. O mesmo se daria com a liberação de oxitocina, hormônio ligado a relação entre uma mãe que amamenta seu bebê.
Então é possível se viciar em fofurinhas? “A fofura pode ser viciante para quem tem personalidade sensível à adição”, diz Dale. Uma pessoa entediada pode passar horas a fio pesquisando e vendo vídeos de gatinhos — assim como alguém viciado em pornografia faria em sites pornôs. Tanto que alguns cassinos perceberam isso — muitas máquinas caça-níqueis são baseadas em imagens fofas, como gatinhos e frutinhas. “Eles estão ativamente tentando viciar as pessoas em coisas fofas. Mas fora de um casino, não vejo risco algum, ao contrário.”
O fator ‘uau’
Acredita-se que a fofura é algo da ordem do biológico, talvez instalada em nosso próprio DNA. “Mesmo alguém que não costuma sentir toda essa fofura sabe o que é considerado fofo ou não.” É o “fator uau”, o que faz um indivíduo achar algo fofo.“Mas isso não quer dizer que seja universal — que todo mundo ache as mesmas coisas fofas sempre”, diz Dale. “É também algo baseado em nossas histórias de vida individuais, nossa cultura particular.”
Fato é que “a fofura é uma das estéticas mais penetrantes e universais do novo milênio”, afirma Dale. E não só porque a franquia Hello Kitty vale mais de US$ 80 bilhões mundo afora ou porque tem gente ganhando mais de R$ 100 mil postando vídeos do próprios cães. “Sua rápida proliferação social sugere que as reações afetivas que provoca são particularmente eficientes numa era marcada por intensa saturação midiática.”
Em tempos de pandemia, onde a ansiedade e a negatividade tomam conta de nossas rotinas, sobretudo para quem passa o dia trabalhando (ou procrastinando) no computador ou no celular — a média mundial é de mais de três horas diárias –, a fofura é o menor dos males. E pode até ser um remédio, como afirma a psicóloga Sonja Lyubomirsky, da Universidade da Califórnia. Ver vídeos de filhotes produz uma sensação de bem-estar, como comer chocolate ou tomar uma taça de vinho, sem os efeitos colaterais.
Na próxima vez que estiver desanimado antes de mais uma reunião pelo Zoom ou estiver prestes a surtar e dizer uns desaforos a alguém, tente uns vídeos de cabrinhas de pijamas. Sim, esse mesmo. Ou gatinhos, cachorrinhos, um bebê ouriço… o Youtube é limite.
Os americanos, pais do Mickey Mouse, vêm estudando a estética da fofura desde o século 19, diz Dale, mas só no século 20, com estudos sobre (e para) a Disney e seus personagens, além de figuras como Shirley Temple, foi que o “cute” virou assunto sério. “Enquanto isso, os japoneses refletem sobre coisas fofas há no mínimo mil anos.”
Para o pesquisador, isso tem a ver, sobretudo, com o papel das mulheres na cultura erudita e no consumo capitalista. “Já em ‘O Livro de Cabeceira’, escrito por uma dama da corte imperial no século 10, havia, entre os poemas, uma lista de ‘coisas bonitas’, que hoje definiríamos como ‘kawaii’, como bebês e filhotes.” No século 19, com o boom das gravuras japonesas do tipo Ukiyo-e, um dos temas mais fartos eram gatos. “Enquanto no Ocidente, cães eram retratados como companheiros valentes em caçadas masculinas, no Japão eles estavam retratando cãezinhos filhotes agindo de forma fofa.”
Com a cultura de massas surgindo no século 20, a fofura ficou mais ligada a meninas e adolescentes. Tanto que, nos anos 1970, quando o Japão viveu seus motins estudantis, “para adolescentes homens, consumir mangás do tipo kawaii, feitos para meninas, virou uma forma de protesto individual”, diz Dale. Foi quando surgiu o fenômeno Hello Kitty e a fofura se sedimentou no mainstream da cultura e do mercado nacional.
No Japão, meca da fofura, o processo de “fofurização” virou algo tão corrente que é comum meninas pegarem qualquer coisa não fofa e “fofificá-las”. Vide Kyary Pamyu Pamyu, cantora que usa cores, estilos e proporções para transformar o monstruoso em fofo — é fofo, ou “fofo nojento” (“Kimokawaii”). “Assim, há modas e manias de coisas fofas que vão e voltam no Japão: quando o público enjoa de uma, outra nova surge para ocupar o lugar.”
“Hoje, o ‘kawaii’ se espalhou pela China, Hong Kong, Coreia do Sul e Sudeste Asiático”, diz Dale. E, aos poucos, ganha o Ocidente, onde a fofura do tipo Disney ainda prevalece — e onde o cinema infantil, o Youtube e as redes sociais nos bombardeiam com outras formas de conteúdo fofo, movimentando uma indústria trilionária.
A fofura deslanchou com o capitalismo e a produção e o consumo em massa de objetos, nos deixando mais sensíveis ao estilo. O primeiro boom se deu no início do século 20, como oportunidade nostálgica para os adultos experimentarem novamente os prazeres da infância. O segundo se deu no Japão dos anos 1970 com o fenômeno Hello Kitty. O terceiro boom veio com a Internet, sobretudo com o Youtube e as redes sociais. O resto é História.