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Conversas'No capitalismo, cada um é responsável pela própria saúde mental'
Em entrevista, pesquisador Elton Corbanezi liga a depressão à atual realidade capitalista, em que até mesmo o cuidado com a saúde mental é individualizado
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‘No capitalismo, cada um é responsável pela própria saúde mental’
Em entrevista, pesquisador Elton Corbanezi liga a depressão à atual realidade capitalista, em que até mesmo o cuidado com a saúde mental é individualizado
Hoje, quando se fala em pandemia, é natural associar o termo diretamente à covid-19, que vem causando mortes no mundo inteiro desde o início de 2020. Para a Organização Mundial da Saúde (OMS) e alguns estudiosos de saúde mental, no entanto, o planeta já vinha há algum tempo vivendo uma outra pandemia mais silenciosa, mas nem por isso menos grave: a de casos de depressão.
Estima-se que mais de 300 milhões de pessoas sofram hoje com a doença em algum grau. Já é considerada a principal causa de incapacidade no mundo e, em casos extremos, pode levar ao suicídio. Esse quadro tem se agravado com o isolamento forçado causado pela pandemia, unido a uma acentuada piora no cenário econômico e à perda generalizada de empregos.
Essa tendência é o principal tema da pesquisa de Elton Corbanezi, professor do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Em junho, ele lançou o livro “Saúde Mental, Depressão e Capitalismo” (Unesp, 2021), baseado em sua tese de doutorado. Na obra, Elton explora não apenas a relação da doença com o capitalismo e o neoliberalismo, como sugere o título, mas também como a sociedade construiu a noção de uma epidemia que envolve esse mal. “Minha ideia não é pensar que o neoliberalismo causa depressão, mas como o desenvolvimento do conhecimento psiquiátrico caminha de maneira convergente com o cosmos econômico, social e cultural do capitalismo.”
De acordo com o pesquisador, a psiquiatria vem flexibilizando a intensidade de vários sintomas da doença, como o luto, de uma forma que converge com as atuais necessidades sociais e trabalhistas. Ou seja, embora possa haver de fato um aumento da depressão, essa mudança também converge com as necessidades capitalistas de uma produção constante e de um indivíduo que esteja sempre ativo economicamente.
Além disso, assim como no atual mercado de trabalho, a responsabilidade por uma saúde mental positiva recai quase sempre sobre o ombro do indivíduo, que precisa se cuidar, seja com a prática de exercícios, como ioga ou esportes, ou com um acompanhamento médico constante. “Tivemos um boom na economia do autocuidado, de coaching, de medicina de bem-estar, tudo para que possamos gerenciar muito bem a nossa saúde mental. É paradoxal
porque, se a incidência é cada vez maior, considerando a forma de organização social, existe, por outro lado, a exigência de se administrar apenas individualmente o problema.”
A seguir, o pesquisador fala sobre como a questão da saúde mental tem entrado no consciente coletivo, como as pressões constantes da sociedade interferem na nossa saúde e por que, no neoliberalismo, até mesmo a depressão é uma responsabilidade individual de cada um.
Ilustração do livro “Capital”, de © 2014 Afonso Cruz
Publicado originalmente em Portugal por © 2014 Pato Lógico Edições
Publicado no Brasil por © 2016 Sesi SP Editora
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G |Quando surgiu a noção de que estamos vivendo uma epidemia de depressão?
Elton Corbanezi |A ideia surgiu nos anos 1970 e 1980, quando a depressão foi ganhando protagonismo entre as formas de sofrimento psíquico. Ela vai tendo ainda mais destaque nos anos 2000, tornando-se a principal causa de incapacitação no mundo. Existe uma espécie de construção social em torno da depressão. Alguns dos fatores importantes para isso são o desenvolvimento da psicofarmacologia e uma alteração na concepção psiquiátrica sobre os transtornos mentais de maneira geral. Isso se dá a partir da publicação do terceiro manual diagnóstico estatístico de transtornos mentais, em 1980. Uma mudança importante é que o contexto do indivíduo passou a ser desconsiderado, e o transtorno começou a ser compreendido a partir de critérios diagnósticos e descritivos. Esses fatores se associam ainda à ascensão do neoliberalismo na virada dos anos 1970 para os 1980 na Inglaterra e nos Estados Unidos. Com isso, temos um processo de neoliberalização das sociedades ocidentais. O neoliberalismo não é um modelo apenas econômico e político, mas uma forma de organização social que, ao avançar, se constitui lentamente como uma racionalidade.
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G |É possível associar a depressão diretamente ao neoliberalismo?
EC |Com o novo modelo de organização social neoliberal, vai se instaurando uma cultura da produtividade. Isso não é novidade. Já estava presente no início da modernidade aquilo que o sociólogo alemão Max Weber chamou de “espírito do capitalismo”, que existia antes mesmo do capitalismo, mas que já foi se instaurando como um modo de vida. Com o neoliberalismo, isso é radicalmente intensificado. Há uma cultura cada vez mais centrada na ideia de performance, desempenho e competição. Se pensarmos no modelo fordista e disciplinar do capitalismo, tínhamos um paradigma da obediência. Tu deves fazer algo, estudar, trabalhar etc. Nos anos 1970 e 1980, começa a haver essa virada que vai se intensificando, um processo que vamos vivendo de maneira cada vez mais acelerada. Nele, em vez de um modelo coercitivo, há um de autonomia e responsabilidade, em que o indivíduo passa a ser o único responsável pelo seu destino social. Então ele integra uma sociedade que produz vencedores e perdedores em larga escala, e o indivíduo é responsável por seu próprio sucesso ou fracasso. Temos por um lado uma organização social que potencializa ao máximo as capacidades individuais e, por outro, atribui ao indivíduo todas as responsabilidades. Se não der certo, ele aparece como a figura do “loser”, daquele que não conseguiu superar os obstáculos que estão circunscritos à sua vida. O filme “Cisne Negro” (2010) representa bem isso. No centro, existe uma performance, uma metáfora do mundo profissional, em que o diretor da peça de balé diz para a protagonista: “Você não tem nenhum obstáculo para superar a não ser você mesma”. Esse tipo de enunciado é bem característico do peso que recai sobre os ombros do indivíduo. O efeito da autossuperação, no filme, é a autossupressão. A depressão é
fundamentalmente antinormativa. Ela recusa esse tipo de imperativo. Ao mesmo tempo, podemos pensar que ela é um efeito disso.
O foco na saúde mental pode funcionar como uma estratégia para não desperdiçar a matéria-prima que é a capacidade criativa
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G |Esse contexto também se associa ao aumento de outros transtornos mentais?
EC |A ansiedade e a síndrome de burnout, que é o esgotamento em função do excesso de trabalho, estão bem caracterizados dentro desse contexto. A ideia do livro não é trabalhar para estabelecer uma causalidade, como se a epidemia depressiva que vivemos se desse em função desse modo de vida; mas problematizar como se constrói essa noção de epidemia depressiva. O estudo, que foi minha tese de doutorado, faz uma análise dos manuais de psiquiatria, em particular os mais recentes. Desde a versão de 1980, temos uma ramificação e uma flexibilização das características diagnósticas da depressão. Vão surgir cada vez mais categorias e há um afrouxamento dos critérios diagnósticos. Se o diagnóstico é estabelecido a partir dos sintomas, estes vão sendo flexibilizados em intensidade, duração e frequência, e cada vez mais reduzidos. De modo que a psiquiatria captura cada vez experiências mais brandas de sofrimento. Minha ideia não é pensar que o neoliberalismo causa depressão, mas como o desenvolvimento do conhecimento psiquiátrico caminha de maneira convergente com o cosmos econômico, social e cultural do capitalismo. Um exemplo é a experiência do luto como sintoma depressivo. Até o manual que foi publicado em 1994 e teve vigência até 2013, os sintomas do luto eram considerados como não patológicos se tivessem até dois meses de duração. Então, se você perdia um ente querido, dois meses de sofrimento eram respeitados como luto. No manual seguinte, houve uma redução significativa. De dois meses, caiu para duas semanas, como se o indivíduo fosse instado a retornar o quanto antes à vida social normal, ao seu desempenho. Se não voltar, teremos um diagnóstico e uma intervenção que é sobretudo medicamentosa. Há uma série de outras categorias que também vão se flexibilizando. Com isso, se constrói uma ideia de epidemia depressiva. A ciência, que seria, em tese, desinteressada, caminha de forma convergente com o modelo da produtividade, do desempenho, da competição. No caso dos transtornos depressivos, o que determina o diagnóstico é o funcionamento normal do indivíduo, o seu desempenho na vida social, familiar e profissional. Ao mesmo tempo, esse funcionamento normal é mais elástico, há uma exigência cada vez maior. Essa é a cultura do neoliberalismo. Não basta cumprir metas, é preciso superá-las. Isso não significa negar a existência da depressão ou de uma epidemia depressiva, mas pensar em como essa ideia vai sendo construída socialmente.
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G |Isso também tem a ver com a forma como a mídia e o poder público vêm tratando a doença?
EC |Com certeza a mídia faz a ponte. Só que também existe um movimento importante de desestigmatizar a doença mental. A categoria da saúde mental envolve desde um extremo, a psicose patológica, até o outro, que é do bem-estar e da saúde. Então ela circunscreve o normal e o patológico. Essa noção vem se desenvolvendo também desde os anos 1970, mas se concretiza só nos anos 2000. Ela tem o importante papel de desospitalizar a doença mental, deixando para trás o modelo manicomial, do hospício. Ele vai aos poucos sendo substituído por modelos alternativos. Se, por um lado, existe uma preocupação com a saúde mental muito relevante, por outro, tem também um papel e uma estratégia política. Como acontece cada vez mais no capitalismo contemporâneo, a principal matéria-prima para gerar valor é a dimensão cognitiva, a capacidade de criação, a inteligência. Esse foco na saúde mental pode funcionar como uma estratégia para não desperdiçar essa matéria-prima, para que se possa investir sobre ela, sobre o capital humano. Aí temos um modelo de vida social que intensifica o sofrimento psíquico, mas também uma difusão dos cuidados com a saúde mental a nível individual: meditação, ioga, exercícios físicos, qualidade de vida e sono. Desse modo, não temos nenhuma mudança de paradigma para tratar a saúde mental. No capitalismo, cada um é responsável por gerenciar a própria saúde mental, num investimento que deve trazer retornos futuros.
A atleta colocou a questão de que a saúde mental deve ser tratada como um problema de saúde pública normal, como um problema cardíaco, sem estigma
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G |A questão da saúde mental ganhou evidência agora nas Olimpíadas com o caso da Simone Biles…
EC |A atleta colocou justamente essa questão, de que a saúde mental deve ser tratada como um problema de saúde pública normal, como um problema cardíaco, sem estigma. E é curioso porque, no caso da Simone, a ginástica de alta performance funciona como uma espécie de paradigma da competição, da superação de metas, da vitória. Também funciona num sentido político, de que é importante nos cuidarmos para não perdermos esse ativo e podermos retornar de forma cada vez mais potencializada ao mercado.
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G |Funciona de forma parecida com o capitalismo neoliberal, sendo você responsável por sua própria saúde mental?
EC |Essa é a ideia. Nos tornamos individualmente os administradores da nossa vida em sentido integral, desde políticas sociais até o autocuidado. Tivemos um boom na economia do autocuidado, de coaching, de medicina de bem-estar, tudo para que possamos gerenciar muito bem a nossa saúde mental. É paradoxal porque, se a incidência é cada vez maior, considerando a forma de organização social, existe, por outro lado, a exigência de se administrar apenas individualmente o problema.
Ilustração do livro “Capital”, de © 2014 Afonso Cruz
Publicado originalmente em Portugal por © 2014 Pato Lógico Edições
Publicado no Brasil por © 2016 Sesi SP Editora
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G |Há uma noção maior na sociedade de que o ritmo imposto pelo capitalismo gera doenças psicológicas?
EC |Existe no sentido de vulgarizar e popularizar uma epidemia de transtornos mentais. As pessoas passam a ter uma consciência a respeito dessa epidemia. Só não sei até que ponto elas sabem das estruturas sociais que sustentam esses processos. No célebre texto do sul-coreano Byung Chul-Han, “Sociedade do Cansaço”, o filósofo trabalha o cansaço como uma categoria estrutural, que leva a esse tipo de esgotamento próprio dos transtornos psiquiátricos. O que é a ideia de autorrealização senão uma forma de descoletivizar cada vez mais? No fim das contas, somos o que fazemos, nossa profissão tem uma função muito grande na produção da nossa identidade. O modelo de vida social que temos é de uma sociedade que produz vencedores e perdedores.
A pandemia turbinou processos que já estavam em curso, como o trabalho integral, uma sociedade 24/7, sem tempo nem direito à desconexão
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G |A pandemia vai mudar de alguma forma essa tendência da saúde mental?
EC |No começo, parecia que haveria uma suspensão de paradigmas,
mas foi apenas uma suspensão temporária, pois tudo voltou em velocidade ainda mais acelerada. Já há estudos indicando um aumento significativo na incidência de transtornos mentais como ansiedade e depressão. Isso é o curso normal das coisas, só que intensificado. A pandemia nada muda em termos estruturais na vida cotidiana. Ela turbinou uma série de processos que já estavam em curso, como o trabalho em regime integral, uma sociedade 24/7, sem tempo nem direito à desconexão por conta das novas tecnologias. O trabalho e a educação remota já estavam esperando na esquina. A pandemia criou as condições reais para isso ser instaurado. -
G |Faz sentido associar o uso das novas tecnologias de comunicação à depressão?
EC |A mudança de paradigma se dá na organização social e, em particular, no trabalho, uma categoria fundamental na nossa sociedade, pois define a natureza humana. Temos um regime de trabalho que modula o indivíduo em torno de uma noção de formação permanente. Se antes a família e a escola cumpriam papéis diferentes, hoje o papel da escola passa a ser cumprido no seio familiar, e vice-versa. Isso vai se estender a todas as instituições sociais, algo que Deleuze lá nos anos 1990 chamava de formação permanente e disponibilidade constante. Me parece que esse investimento constante vai colonizar cada vez mais o tempo de vida do indivíduo, espaços que antes eram usados para descanso ou lazer. O que a gente escolhe fazer pode passar a ser guiado como um investimento. As tecnologias de comunicação cada vez mais difusas e imediatas intensificam esse processo. O papel das redes sociais é o mesmo, existem trabalhos que são indissociáveis delas.
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G |Qual a importância de entendermos melhor todo esse processo?
EC |Um passo fundamental é fazer uma análise crítica da situação. Poder decompor em partes e entender como o processo se constrói. Me parece que é um primeiro passo decisivo para refletirmos sobre a nossa concepção de vida. Isso tudo dá a impressão de ser um processo natural, quando na verdade há uma construção de longa duração que forja esse tipo de cultura. A tomada de consciência é importante. O papel educativo é fundamental para qualquer outro passo que a gente possa dar em termos de mudança de paradigma.
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G |Essa mudança de paradigma é possível? O que dá para fazer?
EC |A ioga, o autocuidado, a prática de esportes são recursos que ajudam, mas sempre de forma paliativa, para atenuar o sofrimento individual. Nada muda em termos estruturais. Por isso, uma saída mais radical só pode ser social e coletiva se problematizar a própria noção de desenvolvimento social e econômico, a ideia de produtividade que temos, que ainda é extrativista, predatória e pautada no excesso. É difícil visualizar isso num horizonte a curto e médio prazo. Pode parecer bastante utópico, mas o esgotamento está transbordando de todos os lados, seja o esgotamento climático, somático ou psicológico. Temos muito a aprender com os povos indígenas para desenvolver uma economia que seja mais da suficiência do que do excesso. Só assim teríamos uma mudança de fato estrutural. Esses processos são longos, ainda falta uma alteração cultural mais profunda.