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ReportagemO valor da honestidade e das mentiras em um relacionamento
Em meio à tendência de encontros mais abertos e diretos, especialistas discutem o peso do sincerão nos relacionamentos
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O valor da honestidade e das mentiras em um relacionamento
Em meio à tendência de encontros mais abertos e diretos, especialistas discutem o peso do sincerão nos relacionamentos
Depois de um período de conquista num daqueles aplicativos de namoro, você se vê num primeiro encontro. Os dois belos e arrumados, o tom da conversa amigável, tudo parece estar indo bem. Até que a garçonete do restaurante badalado — perfeitamente Instagramável, escolhido a dedo para impressionar — entorna um prato de sopa inteiro na camisa branca que você mandou lavar e passar com tanto cuidado para a ocasião. É o estopim para que comece a esbravejar contra o estabelecimento, os jovens clientes que se preocupam mais em tirar fotos do que comer e o vestido da companheira, o qual inclusive tinha falsamente elogiado minutos antes. Basicamente, você odeia tudo e todos, e não faz mais questão de esconder nem do seu date. Mas, para sua surpresa, acaba descobrindo que aquela com quem divide a mesa também compartilha de sentimentos bem parecidos com os seus.
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Esse pequeno conto sobre um casal que se conecta a partir das afinidades numa longa lista daquilo que os dois odeiam é na verdade um curta de ficção australiano. Sim, ele provavelmente teria um desfecho bem diferente e menos romântico na vida real. No entanto, ilustra de forma cômica uma tendência que vem sendo notada entre as gerações mais jovens, especialmente num período em que boa parte das pessoas já deixou o isolamento pela covid-19: o hardballing. A expressão em inglês descreve uma busca por ser mais honesto e direto ao ponto já no primeiro encontro, como forma de evitar decepções futuras e perder um tempo que parece ainda mais valioso depois de quase dois anos de confinamento.
Somos viciados em agradar, e o único jeito que encontramos de fazer isso é através da mentira
É como se, antes mesmo de mergulhar na relação e conhecer mais a fundo uma pessoa, você já botasse tudo em pratos limpos: se quer um relacionamento mais casual ou alguém para casar, se deseja ou abomina a ideia de ter filhos, se prefere um gato ou cachorro como animalzinho de estimação. Caso o outro preencha todas as caixinhas que a pessoa considera obrigatórias, dá para mergulhar de cabeça e com mais segurança naquela conexão.
A prática é uma tentativa de combater nosso costume de já entrar em relacionamentos decididos a esconder o que realmente pensamos e queremos, aponta o psicólogo Filipe Starling. “Aprendemos que mais importante do que ser autêntico é agradar o outro. Somos viciados em agradar, e o único jeito que encontramos de fazer isso é através da mentira.” O maior medo nesse caso é se mostrar aquém ou muito diferente da idealização que o outro faz de você, uma consequência que Starling, que é especialista em questões de relacionamentos, considera inevitável nas relações humanas.
Para o profissional, ser direto e sincerão logo de saída pode acabar sendo uma prática muito bem-vinda, especialmente num mundo dominado pelos aplicativos de namoro, em que as opções parecem tão fartas, quase infinitas. “As pessoas precisam aprender a filtrar o excesso de pretendentes para investir apenas naqueles que realmente tenham potencial de continuidade, afinidade, interesses e perspectivas de futuro”, afirma. Melhor, segundo ele, do que perder tempo com uma relação que mais dia menos dia a pessoa pode acabar descobrindo, talvez tarde demais, não ser bem aquilo que ela esperava.
Cansados e honestos
A pandemia trouxe à tona dois sentimentos que têm predominado no panorama de relacionamentos amorosos: a preguiça e o medo. Ao menos é o que diz Lígia Baruch, autora do livro “Tinderellas: o amor na era digital” (e-galáxia, 2019). “Preguiça e medo de se relacionar. Há um clima maior de desconfiança em relação ao outro e ao desconhecido”, declara a pesquisadora. É uma tendência que a psicóloga também tem verificado em seu consultório e que está tornado as pessoas mais introvertidas. Hoje, diz Baruch, boa parte prefere estar nas redes do que em encontros face a face, com temor de se lançar em algo que só vai gerar decepção. “Tem muita gente numa tremenda solidão, mas nessa ambivalência, porque quer ir para fora, mas também tem receio.”
Essa necessidade de ser sincero logo de cara, deixando de gastar muito tempo e esforço para acabar morrendo na praia, seria uma resposta a esses sentimentos, uma tentativa de reagir àquilo que está nos prendendo. “A gente pode pensar até num movimento chamado contrafóbico, em que tenho tanto medo de me machucar e perder tempo que já vou e me lanço logo para ver qual é”, explica Baruch. “Digo logo do que estou a fim para ver se a coisa vai adiante ou não.” Existe também um cansaço coletivo em relação às ditas máscaras sociais, a necessidade de vender e sustentar uma imagem na frente das outras pessoas, diz a psicóloga. “A gente vê isso nas redes. Ao mesmo tempo em que há um excesso de si, dessa ânsia de se mostrar e aparecer, também existe um movimento que prega menos maquiagem e filtros.”
Baruch diz compreender esse medo, até porque considera que se relacionar hoje é uma aventura real, “numa época de extremo individualismo, com tudo que pode acontecer de errado, desde as mentiras até os enganos e as decepções.” Para se proteger, afirma, é muito mais fácil permanecer entocado numa autoimagem construída nas redes ou enveredar por relações emocionalmente superficiais. “Se relacionar implica atravessar as idealizações e se deparar com a incompletude, as imperfeições, as decepções em relação a si mesmo e ao outro. Já dizia Caetano: de perto, ninguém é normal.” E isso numa época em que, diferente de um passado nem tão distante assim, as relações só se mantêm se forem realmente satisfatórias para ambos os lados. “Antes parecia que as pessoas se sentiam felizes juntas, mas isso é porque elas sustentavam relações de fracasso só para não estar sozinhas. Hoje há muito mais movimento, mais caos.”
Quando a sinceridade é demais…
De cara, falar a verdade não parece ser uma tarefa tão difícil assim. Mas as aparências enganam. Um estudo realizado nos Estados Unidos acompanhou ao longo de uma semana 67 indivíduos que viviam um relacionamento amoroso. Desses, apenas dois não mentiram, ocultaram algo ou enganaram de uma ou outra forma seus parceiros durante esse curto período de tempo. De fato, outra pesquisa apontou que a maioria das pessoas comprometidas mente para o parceiro em média três vezes por semana.
O excesso de honestidade pode ter muito a ver com falta de empatia e conexão
Julgando por esses dados, fica a impressão de que a maioria dos relacionamentos vive à beira de um precipício e bastaria um empurrãozinho para que se desfizesse em mil pedaços. Mas esse também não parece ser o caso. Pelo contrário, um estudo psicológico feito em Oxford sugere que mentir ocasionalmente pode ser até uma boa estratégia para manter uma relação sólida e duradoura — desde que sejam mentirinhas insignificantes e com intuito de preservar o bem-estar alheio. Portanto, dizer que uma opção de roupa meio duvidosa caiu super bem ou reafirmar algo de que nem você tem tanta certeza só para fazer o outro se sentir melhor está longe de ser o fim do mundo.
Aliás, honestidade demais sobre questões menores como essas pode ser inclusive um problema e causar um certo desconforto na relação. “O excesso de honestidade pode ter muito a ver com falta de empatia e conexão”, explica Bruno Vianna, do perfil Dia a Dia Psicologia (@diaadia_psicologia). “É o que acontece se exponho exatamente o que penso e isso soa como uma crítica ou punição, machucando o outro.” Portanto, criticar uma escolha estética ou a forma do parceiro agir, especialmente se ele já sofre constantemente com insegurança, pode abalar ainda mais sua autoestima. “Conexão é isso, pensar em como minha resposta pode afetar a vida de alguém”, afirma o especialista.
Ninguém segura o inconsciente
A recifense Karina Moutinho, 27, não planejava fazer nenhuma grande mudança na forma de se comportar durante encontros. No final de 2021, a professora de ensino fundamental voltou a instalar o Tinder no celular e logo deu match com alguns perfis interessantes. Mas, durante o primeiro date que marcou com um deles, percebeu que algo estava diferente. “Sentia uma impaciência muito grande, a ponto de até cortar algumas falas dele no meio”, conta. Quando chegou à conclusão de que os dois não tinham muito a ver e estavam em momentos diferentes da vida, precisou segurar o impulso de encerrar o date ali mesmo. “Falando agora, fico até com medo de ter sido grossa. Ele não fez nada de errado, mas deu para ver rapidinho que não ia funcionar”, conta Moutinho, que teve encontros menos desastrosos desde então, mas diz ainda não ter dado um match mais definitivo com ninguém.
Uma prática como o hardballing, embora pareça ter grandes méritos à primeira vista, também pode trazer problemas para uma relação ainda em seus estágios iniciais, momento crucial para definir se renderá frutos ou acabará sendo cortada pela raiz. Na visão de Vianna, o hardballing parece estar mirando num mundo ideal, “um encontro perfeitamente honesto em que o outro saiba minhas reais intenções e eu saiba as dele”. Esse fator, no entanto, acaba enrijecendo essa relação antes mesmo de ela começar. Querer descobrir logo de primeira se uma relação vai funcionar é missão impossível, diz o psicólogo. E isso porque os ideais conscientes, afirma Viana, aquilo que se busca ativamente num relacionamento, nem sempre têm a ver com o que vai realmente atrair para um contato mais íntimo com outra pessoa.
Precisamos de tempo para ver os comportamentos do outro, até porque o autoconhecimento das pessoas ainda é muito superficial
Na verdade, é comum que as pessoas se apaixonem até pelos defeitos dos outros, principalmente se estes tiverem alguma relação com sua história de vida. Isso a psicologia explica. “Imagine alguém que viveu num ambiente muito pobre de afeto e amor”, exemplifica o especialista. “Essa pessoa pode buscar uma relação que seja cheia disso. Só que um relacionamento pode não ter química para quem nunca recebeu esse tipo de afeto. Para o cérebro, pode ser uma relação pegajosa, incompatível com aquilo que é mais familiar.” Segundo Vianna, o ser humano procura reviver conflitos da infância por meio dos relacionamentos amorosos, mas por uma perspectiva diversa e possivelmente com um resultado mais positivo. “O que motiva nossas escolhas amorosas é mais o inconsciente do que o consciente. Esses encontros em que buscamos 100% de sinceridade se baseiam numa escolha consciente, mas acabam descartando nossas motivações mais profundas.”
Essa sangria desatada também acaba impedindo que muitas relações, assim como o próprio amor, se construam de forma saudável ao longo do tempo, diz o psicoterapeuta Yuri Busin. Não é em uma ou duas horas de conversa à luz de velas que a pessoa vai de fato conhecer o outro mais a fundo. “Precisamos de tempo para ver os comportamentos do outro, até porque o autoconhecimento das pessoas ainda é muito superficial.” E, com o perdão dos clichês, há sim alguma verdade nos ditados que pregam que a pressa é uma constante inimiga, segundo o especialista. “Existe toda uma negociação, prioridades que vão sendo formadas entre um casal. Só que as pessoas ultimamente querem fazer um encontro, se apaixonar, casar e ter filhos, como se fosse possível dar um único tiro no alvo.”
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