Como falar de tragédias e problemas com crianças — Gama Revista
Tem jeito certo de criar os filhos?
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Isabela Durão

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Reportagem

Como falar de tragédias e problemas sociais com crianças

Das guerras pelo mundo ao preconceito, especialistas esclarecem se tem hora e jeito certos de tratar temas complexos com os pequenos

Leonardo Neiva 12 de Novembro de 2023

Como falar de tragédias e problemas sociais com crianças

Leonardo Neiva 12 de Novembro de 2023
Isabela Durão

Das guerras pelo mundo ao preconceito, especialistas esclarecem se tem hora e jeito certos de tratar temas complexos com os pequenos

Quando um paciente de apenas cinco anos de idade da psicopedagoga Ana Paula Barbosa lhe fez uma pergunta sobre o conflito entre Israel e Palestina, ela não entrou em pânico. Muito menos cedeu à tentação de tampar os ouvidos e assoviar bem alto, fingindo não ter escutado nada, como muitos pais podem acabar fazendo.

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Em vez disso, a profissional encarou o momento como uma oportunidade de construir conhecimento. Com a ajuda de um mapa, ela apontou primeiro a enorme distância entre o foco do conflito e o Brasil — não havendo, portanto, motivos imediatos para preocupação. Depois, lançando mão de recursos como bonecos e brinquedos, procurou deixar claro que, mesmo sem ameaçar diretamente a nossa integridade física, a violência e as mortes geram indignação no mundo todo, o que nos afeta mesmo estando distantes.

Nem todo mundo, no entanto, tem a mesma desenvoltura na hora de lidar com temas e acontecimentos complexos em frente a uma criança pequena. Em especial pais ou responsáveis, muitos dos quais ainda têm dúvidas importantes sobre quando e até que ponto abordar questões ligadas às violências que nos cercam, seja do outro lado do mundo ou aqui pertinho.

“A gente acha que as crianças não fazem parte do processo de diálogo, mas elas estão inseridas na cultura, nas relações”, aponta Barbosa, para quem responder esse tipo de pergunta vinda dos pequenos é questão puramente emocional. “Você nunca deve negar a emoção de uma pergunta, que é uma preocupação. Independentemente da idade, podemos abrir o diálogo. É importante acolher a emoção, a dúvida, a sensação.”

Portanto, mesmo que o assunto central da questão levantada por uma criança seja um conflito que vem deixando milhares de mortos, dedicar a devida atenção a essa troca é uma oportunidade de a criança falar abertamente sobre seus medos e preocupações — sempre de acordo com a capacidade de compreensão de cada um.

“Se seu filho pergunta o que está acontecendo na Faixa de Gaza, os pais têm que dar a resposta mais adequada, uma resposta proporcional à capacidade da criança entender aquilo”, aponta a psicóloga Ceres Alves, especialista no atendimento de crianças e adolescentes.

Ou seja, dificilmente será necessário ou mesmo aconselhável expor os pequenos a visões e imagens assustadoras, de explosões, pessoas feridas ou jogadas em valas, porque isso deve apavorá-las ainda mais. Em vez disso, na opinião da especialista, o ideal é explicar de forma simples a história da Faixa de Gaza ou de onde vem o conflito, sem entrar em detalhes desnecessários ou complexos, que acabam indo além do questionamento.

O que é violência?

A educadora do ensino básico do Distrito Federal Gina Vieira, 51, conta sobre a ocasião em que seu filho de 12 anos chegou em casa visivelmente assustado. “Ele me perguntou se teria que ir para a escola no dia seguinte, uma vez que haveria um ataque”, relembra.

Ao conversar com o jovem sobre as origens daquela preocupação, ela acabou descobrindo que massacres em escolas, os quais tiveram um boom no Brasil entre os anos de 2022 e 2023, tinham virado assunto central na roda de amigos do filho pouco após o ataque a uma creche em Santa Catarina, em abril.

“Pedi que ele me contasse como estava se sentindo”, diz Vieira. “Acabei percebendo que era um medo e uma preocupação muito reais, porque ele e os amigos estavam planejando até rotas de fuga, caso o ataque acontecesse.”

Temendo que deixar o filho faltar à aula no dia seguinte acabasse confirmando os receios do adolescente, a educadora optou pelo diálogo franco. “Eu o informei de que a escola estava ciente do que estava acontecendo e todas as medidas de segurança seriam tomadas.”

Para reforçar a mensagem, ela decidiu mostrar notícias sobre as medidas tomadas pelo governo federal e local, assim como as iniciativas de prevenção adotadas pelas escolas. O objetivo era mudar o foco dos ataques em si para as ações de proteção, de maneira que o jovem percebesse que havia gente empenhada em resolver o problema.

“Mas a minha maior preocupação foi me assegurar de que ele pudesse se expressar em relação ao que estava sentindo”, revela a educadora.

O problema é de que forma a criança acessou uma informação. Como conversar sobre o impacto de uma imagem? Depois, não dá para dizer que aquilo não existiu

Hoje, são muitas as formas como crianças podem entrar em contato com informações nem sempre adequadas à sua idade ou capacidade de processar certos acontecimentos. Desde o contato com colegas até uma imagem ou frase extraída da TV, do rádio, de um jornal ou revista. Isso sem falar no fluxo constante e por vezes incontrolável de informações que vêm da internet e das redes sociais, quando estas não são adequadamente mediadas por pais ou responsáveis.

Para a psicopedagoga Ana Paula Barbosa, esse acesso às telas deve ser cuidadosamente limitado e vigiado, principalmente quando se tratam de crianças com menos de oito anos. “O problema é de que forma a criança acessou uma informação. Como conversar sobre o impacto de uma imagem? Depois, não dá para dizer que aquilo não existiu.”

Agora, se a informação já chegou ao pequeno, o melhor é discutir sobre aquilo da forma mais leve possível, seja por meio de desenhos, bonequinhos etc. Atos de violência, por exemplo, podem ser expressos na representação de uma briga, deixando claro que aquilo machuca e faz mal ao outro. “A gente tem medo de falar de violência, mas ela existe. Não dá para negar. É algo que pode ser educativo, um momento de construir dentro daquilo que a criança dá conta, de forma lúdica.”

E os preconceitos?

Especialistas em psicologia e comportamento infantil não costumam apontar uma idade fixa para começar a tratar de temas sérios e complexos com crianças. Segundo os profissionais consultados pela Gama, isso varia muito de indivíduo para indivíduo, e também depende do tipo de assunto abordado.

Para a psicóloga Ceres Alves, questões socialmente estruturais, como as relacionadas à diversidade e o combate ao preconceito, podem ser conversadas desde cedo. No entanto, para ela, o mais importante nesse caso é sempre dar o exemplo. “Se você tem um pai preconceituoso, vai ser muito difícil que ele converse com os filhos da maneira adequada. Então o modelo dos pais é importante, seja para fazer igual ou o contrário”, afirma.

E temas como racismo ou machismo podem ser abordados com crianças de qualquer idade, desde que seja feito de uma forma didaticamente adequada, na visão da educadora Gina Vieira. “Sou contrária a que o racismo seja apresentado para uma criança negra ou branca na perspectiva de alertá-las de que vivem em um país feito para que pessoas negras sejam odiadas”, conta. Em vez disso, Vieira prioriza conteúdos que celebrem e ajudem a construir o pertencimento à história e cultura africana e afro-brasileira.

Essa conscientização deve acontecer tanto em casa quanto na escola, na visão da educadora. Isso engloba um esforço de gestores e professores para evitar livros e materiais didáticos com uma hegemonia de personagens brancos ou que representem o trabalho doméstico exclusivamente ligado às mulheres, assim como para combater o racismo e assédio no ambiente escolar. “As famílias e escolas que não dialogarem com as crianças sobre isso vão perder uma ótima oportunidade, porque esses temas vão chegar para elas de alguma maneira.”

Eu tenho um futuro?

Das ondas que invadiram a orla do Rio de Janeiro aos ventos de mais de 100 km/h, capazes de deixar milhões de paulistas sem luz elétrica, para não falar nas altas temperaturas que vêm quebrando recordes ano após ano, as mudanças climáticas há muito deixaram o campo da teoria para serem sentidas na prática. E, claro, crianças e adolescentes não estão imunes a essa realidade.

Recentemente, um estudo de dimensões globais ouviu centenas de crianças a respeito de seus sentimentos relacionados ao clima e meio ambiente. No Brasil, parte das 50 crianças e adolescentes entrevistados apresentaram preocupação e sintomas de ansiedade em relação ao futuro do planeta — fenômeno que vem sendo informalmente apelidado de ecoansiedade.

“Algumas queriam fazer algo para mudar esse quadro. Outras acreditavam que nem poderiam ter filhos, numa perspectiva de antecipação de um futuro mais difícil ou até inexistente”, explica a psiquiatra da USP Debora Tseng Chou, que integrou a equipe de pesquisa por aqui.

A especialista ressalta que oss que tinham maior conhecimento sobre o tema eram aqueles que vinham de famílias mais ricas, estudavam em escolas mais caras e tinham pais engajados.

Um aspecto curioso é que, apesar da preocupação gerada pelo assunto, poucas discutiam o tema com os colegas. “Um adolescente contou que só queria aproveitar enquanto era criança, porque um dia a vida seria mais difícil”, lembra Chou. Em casa, os diálogos também costumavam ser menos frequentes em torno do assunto.

Na visão da psiquiatra, é importante conversar com os filhos sobre a questão até mesmo para entender o que eles vêm assimilando de todos esses acontecimentos. O diálogo, nesses casos, pode ser até mais eficaz se focado naquilo que dá para fazer enquanto indivíduo — sair menos de carro, dar o destino devido ao lixo etc. — do que uma explicação muito detalhada da situação climática.

Tudo bem se sentir mal?

Ainda assim, sentimentos negativos não devem ser ignorados nem evitados a qualquer custo, diz Chou. “Vivemos numa sociedade com aversão a emoções desconfortáveis. Mas é justamente um certo grau de ansiedade, desde que não vá tomar conta da vida da criança, que vai permitir a ela sonhar e se mobilizar.”

É mais ou menos esse caminho que defende a psicopedagoga Ana Paula Barbosa quando se fala em guerras e atos de violência: não ignorar, mas focar na mobilização e nas respostas positivas, na medida do possível. “Dá para mostrar a ajuda humanitária, de algum modo alimentar nas crianças o recado de que é possível ajudar”, reforça. O enfoque pode inclusive incentivar a construção da empatia, cujo desenvolvimento foi negativamente afetado na pandemia, diz a profissional.

Dá para mostrar a ajuda humanitária, de algum modo alimentar nas crianças o recado de que é possível ajudar

Segundo Barbosa, superproteger o pequeno ou fingir que nada está acontecendo pode até prejudicar o desenvolvimento cognitivo infantil, gerando transtornos mais para frente, quando ele finalmente se deparar com a realidade fora da redoma familiar. Pelo contrário, afirma a psicopedagoga, construir diálogos afetivos na infância sobre esses e uma infinidade de outros temas impacta positivamente o cérebro num momento em que ele está mais aberto a estímulos, com muita elasticidade, podendo se refletir numa adolescência psicologicamente regulada e com melhor resposta às dificuldades.

Também é importante estar atento para não criar jovens alienados, segundo Ceres Alves. Por meio de explicações equilibradas, sem excessos, evitando transformar a conversa numa palestra, é possível apresentar até pontos de vista diferentes sobre uma mesma questão. “Mas vivemos uma sobrecarga de informações, então tem que pensar no que o cérebro do seu filho é capaz de processar sem ficar estressado”, sugere.

Em última instância, pais que encontrem dificuldades para mergulhar em conversas espinhosas ou complexas também podem recorrer a um acervo quase infinito de livros, filmes e brinquedos pensados para facilitar a vida nesses momentos de angústia. “Hoje temos bonecas pretas, de cadeiras de rodas, com síndrome de Down…”, lembra Barbosa. “Precisamos levar todas essas questões para o espaço do brincar, o melhor caminho que podemos pensar para construir diálogos melhores.”