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ReportagemOs excessos da balada em tempos de inflação
A sede por encontrar amigos e familiares era gigante, e parecia uma realidade próxima depois da vacina – até a conta do cartão de crédito chegar
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Os excessos da balada em tempos de inflação
A sede por encontrar amigos e familiares era gigante, e parecia uma realidade próxima depois da vacina – até a conta do cartão de crédito chegar
Nenhum baladeiro de carteirinha ficou muito feliz ao comprar o primeiro drink depois do afrouxamento das restrições da pandemia, e muito menos os apreciadores de um bom restaurante, que podem ter se assustado ao checar os preços no cardápio. Para quem não aguentava mais lives no Instagram e comida de delivery, o tão aguardado retorno da vida noturna presencial veio com um preço salgado para o bolso do brasileiro.
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O funcionário público Rodrigo Freitas recentemente reencontrou algumas amigas que não via há muito tempo e juntos foram para uma festa. “Gosto de conforto, então quero que todo mundo que esteja comigo também aproveite isso.” Durante o rolê, fez transferências por pix para a própria conta pelo cartão de crédito, algo como pagar um boleto para si. O procedimento permite ter saldo no débito com a ajuda de aplicativos que disponibilizam parcelamento em até 12 vezes. “Sabe quando te oferecem um cigarro e você nunca mais para de fumar? Foi isso, foi meu fim decretado.” Desde então, o funcionário público diz que está com a “vida financeira caótica”.
Freitas, que já gastou a bagatela de R$ 1.500 em uma noite, é um exemplo dos muitos brasileiros eufóricos com o retorno das atividades presenciais, e principalmente dos eventos sociais. Mesmo com os altos índices de endividamento durante a pandemia, além da inflação que chegou às festas juninas e casamentos, há quem tenha feito como ele: sem se preocupar com o amanhã, gastou tudo o que tinha nos altos preços da balada.
O problema é que, somado à euforia que fez o brasileiro gastar mais no pós-pandemia — pesquisas mostram que houve um aumento no consumo de serviços, o que influenciou no acréscimo de 1% do PIB apesar da crise econômica — há a inflação, que chega a 11,73% no acumulado dos últimos 12 meses. Esse cenário deixou tudo mais caro e fez nosso dinheiro valer muito menos, o que impactou muito a vida dos jovens, que nunca haviam experimentado um cenário como este. Muitos precisaram reduzir o consumo e adiar seus planos para conseguir pagar os boletos.
Mesmo com os altos índices de endividamento, além da inflação, há quem gastou tudo o que tinha sem se preocupar com o amanhã
Além dos combustíveis e alimentos, principais vilões da carteira, a cultura e o lazer, que envolvem shows, baladas, museus e bares, precisaram ser revistos no orçamento por estarem caros demais. A inflação geral preocupa os brasileiros: segundo uma pesquisa encomendada pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) ao Instituto FSB de Pesquisa, 95% da população tem sentido a alta generalizada de preços nos últimos seis meses.
Quem estava eufórico e ávido por um rolê como a vida pré-pandêmica permitia pode ter se frustrado na hora que a conta chegou – ou então gastou tudo que (não) tinha mesmo assim. Gama traz alguns índices da inflação na vida noturna, uma análise sobre o comportamento dos excessos e dicas para sair e se divertir sem atrasar os boletos.
O que dizem os números?
O Brasil tem a quarta maior alta de preços anual e fica só atrás de nações que passam por graves crises inflacionárias, como Turquia (73,5%), Argentina (58%) e Rússia (17,1%), segundo ranking com 23 países compilado pela Austin Rating. Nos mercados, se no início de 2021 R$ 85 eram suficientes para comprar arroz, feijão, bife e salada, ingredientes básicos para um prato feito, hoje a mesma quantidade é comprada por R$ 100. Por conta disso, mais de 90% dos brasileiros precisaram mudar seus hábitos de consumo, como mostra um levantamento da Protese (Associação Brasileira de Defesa do Consumidor).
De acordo com o IBGE, a alimentação tem um peso de 21% na renda do brasileiro, e claro que o lazer fica bem atrás na fila de prioridades, mas é impossível dizer que os preços também não ficaram elevados. “Temos um grupo, chamado recreação, que agrega todos os itens relacionados ao lazer, e este ficou superior ao índice geral no acumulado dos 12 meses. Enquanto o geral foi de 11,73%, o aumento da recreação foi de 13,3%”, explica o professor de economia, sociólogo e cientista político Jefferson Mariano. “Outro grupo que chama a atenção é o de hospedagem, que compreende não apenas a hotelaria como também os motéis, e que teve um aumento de 19,13%.”
Grande parcela dos jovens está fora do mercado de trabalho, e quem está tem uma remuneração muito precária
Há, entretanto, variações regionais. Nos centros mais dinâmicos, como afirma Mariano, percebe-se um acréscimo maior. “No caso da hospedagem, por exemplo, Rio de Janeiro chegou a 28% e Vitória, 27%. Já na recreação, Recife, Belo Horizonte e São Paulo foram as localidades que superaram a inflação geral.” O preço das bebidas também aumentou de formas diferentes nas cidades brasileiras – ainda que em todas elas o álcool tenha encarecido. “A cerveja teve uma alta de pouco mais de 9% no preço geral no país, e de 5% em bares e restaurantes. Em Salvador e Recife o acréscimo foi maior do que a média, enquanto São Paulo, Belo Horizonte e Fortaleza ficaram abaixo, com 8%, 7% e 7,75% respectivamente”, comenta o líder de conteúdo e inteligência da Abrasel, Eduardo Camargo.
Não foram apenas os preços que ficaram elevados, como a renda do trabalhador deixou de acompanhar o aumento. “O salário mais baixo é uma realidade. Inclusive, um elemento interessante de analisar é que a recreação e a hospedagem diminuíram seus pesos na cesta de consumo das famílias, justamente por que deixaram de ser consumidos por conta dos reajustes”, afirma Jefferson Mariano. E os jovens, segundo ele, são os que mais têm sofrido: “A taxa de desemprego, especialmente entre 18 a 24 anos, está muito elevada no Brasil [segundo o IBGE, no primeiro trimestre de 2022, a taxa era de 30,6%]. Grande parcela dos jovens está fora do mercado de trabalho, e quem está tem uma remuneração muito precária”.
Tempo de excessos
O comportamento desmedido com os gastos no pós-pandemia, segundo o psicanalista, escritor e pesquisador André Alves, co-fundador da plataforma Float Vibes, segue uma lógica de compensação. “Jacques Lacan cantou essa bola lá trás, com o conceito de império do gozo. Hoje, é aquela coisa da ‘happycracia’, aquela voz que nos diz que precisamos aproveitar, sair, nos divertir a todo custo”, explica. “Como tudo está um pouco fora de compasso, temos que aumentar a dosagem, beber mais, sair mais, socializar mais. Quanto mais, melhor. Não é a toa que vivemos um revival das raves.”
Porém, todo exagero tem suas consequências. O psicanalista relembra uma fala de Christian Dunker sobre vivermos constantemente em um estado de compressão e descompressão. “É o checklist: fazemos isto, aquilo, sofremos a pressão do trabalho, do dia a dia. Quando chega sexta-feira, rola a descompressão. Mas como estava tudo tão pressionado, precisamos de muita festa, beijo na boca, sexo ou mesmo horas a fio de streaming para relaxar.” Segundo ele, isso produz um falso descanso e não permite que as experiências sejam restaurativas. “Elas não alteram a rotina mental, não mudam padrões de satisfação, só liberam o que está muito pressionado.”
Hoje é aquela voz que nos diz que precisamos aproveitar, sair, nos divertir a todo custo
A euforia, a festa, a socialização são, claro, mecanismos importantes de relaxamento e são uma necessidade coletiva, mas é importante compreender os limites – para o bem da mente e do bolso. “Não vai dar para passar por todos os lutos da pandemia só com fervo. Não devemos tratar tudo isso como uma grande retomada. O prefixo ‘re’ é traiçoeiro, porque parece que tentamos reviver um tempo que não existiu”, afirma Alves. Ele cita o clássico sociólogo Émile Durkheim, que teorizou sobre a efervescência coletiva — uma necessidade, como espécie, de união e emoção compartilhadas. De acordo com ele, precisamos da agitação, da fervura e da excitação para darmos sentido à vida. “Mas se vivemos apenas nessa lógica, o sujeito pega fogo. Por isso o burnout é um significante tão importante do nosso tempo.”
Mas se organizar direitinho…
Dá para sair, moderar espertamente nas dosagens, se divertir e ainda conseguir pagar os boletos. Ainda que o debate sobre educação financeira em tempos de crise seja complexo, a dificuldade para organizar as finanças é um dos empecilhos para uma vida equilibrada entre contas pagas e vida noturna e socialização em dia. Uma pesquisa do SPC Brasil revelou, em 2019, que 47% das pessoas da geração Z, que têm entre 18 a 25 anos, não faz controle de seus gastos. Entre as principais justificativas, 19% afirmaram não saber como fazer o controle financeiro, 18% disseram sentir preguiça e outros 18% não têm o hábito ou disciplina de tomar conta do dinheiro.
“A dificuldade em se organizar, muitas vezes, é por não saber como. Também pode ser por falta de disciplina ou porque bate aquela preguicinha de vez em quando”, pondera Michel Kalil, fundador do perfil Graninhas. “Mas de uma forma ou de outra se relaciona ao fator cultural, da falta de hábito e de exemplos.” A consultora financeira Thabata Abreu aponta também para a falta de oportunidade de emprego e o desinteresse dos jovens no tema.
Mas nem tudo está perdido: basta conhecer a própria rotina de gastos para saber a melhor forma de lidar com os boletos. Pensando em quem não sabe por onde começar para colocar ordem na vida financeira, Gama reuniu dicas dos consultores Michel Kalil e Thabata Abreu para controlar o impulso do gasto e o desespero quando chega a fatura da balada.
Faça um orçamento básico
Quanto fica o gasto com a energia, água e internet no mês? E as idas ao supermercado, os gastos de emergência? Saber uma média de despesas mensais com necessidades e rolês é o primeiro passo para se organizar com sucesso. Vale fazer as anotações na ponta do lápis ou com a ajuda de apps, o importante é manter o olho aberto, como explica Kalil. “Dá para usar um app específico para isso ou mesmo o app do banco. Muitos tem essa aba pra gente acompanhar e fazer a gestão dos gastos.”
Crie metas para o seu dinheiro
Seja fazer um curso, comprar um celular novo ou fazer uma viagem daqui a alguns meses, o importante é criar metas e limites para os próprios gastos. A regra não é só para a grana que sai – vale pesquisar o que é benéfico para a sua saúde financeira, como investimentos, poupanças e seguros, e saber a melhor forma de aplicar os ganhos do mês para melhorias a longo prazo. “O jovem precisa avaliar seus desejos e calcular quanto dinheiro será necessário para realizá-los”, explica Abreu.
Estude e aprenda sobre finanças
Conhece o esquema de taxas do seu banco? Tem acompanhado como a inflação pode aumentar o preço de produtos do seu dia a dia? Conhecer o básico sobre finanças pode ajudar a tomar decisões financeiras com mais responsabilidade e a entender o dinheiro como meio de independência. Conseguir se organizar no mês para fazer o dinheiro sobrar pode trazer a gostosa sensação de autocontrole, segundo Michel Kalil. “Ter conhecimento sobre como lidar com o dinheiro empodera, dá segurança para planejar e tomar decisões. Dá mais autonomia pro jovem adulto.”
Limite o número de cartões e contas
Com a acessibilidade das contas online, abrir uma conta nunca foi tão fácil. Mas nem tudo são flores. Revise bem conceitos como o cashback, compras com um pequeno retorno em saldo e aceitar cartões de crédito e contas com taxas e juros altos. Thabata Abreu conta que mais cartões significam mais dor de cabeça. “Se o jovem deseja esse equilíbrio entre diversão, pagamento de boletos e realização de objetivos, o ideal é concentrar as finanças em um lugar.” A dica é, se possível, adotar somente um cartão e uma conta para não se enrolar.
Compreenda os motivos do impulso
Se não conseguir resolver a fatura nas alturas e os gastos nas saidinhas, procure entender o motivo do impulso. “Gastar dinheiro, na maioria das vezes, é emocional. Então, compreender o que me faz gastar além da conta já ajuda a pensar em medidas para controlar esses gastos”, diz Kalil. Vale entender se o gasto vem da preguiça de entender a vida financeira ou do prazer de se dar um mimo, mas sem autoflagelo: compreender a inflação da pandemia também ajuda a entender que a culpa do descontrole não é só do indivíduo.
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