Por que o barulho das crianças incomoda? — Gama Revista
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Reportagem

Por que o barulho das crianças incomoda?

Após polêmicas envolvendo o direito de ir e vir das crianças, especialistas e cuidadores falam por que a sociedade deve acolher a fase em que cada criança se encontra, respeitando o seu desenvolvimento

Ana Mosquera 11 de Setembro de 2022
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Por que o barulho das crianças incomoda?

Após polêmicas envolvendo o direito de ir e vir das crianças, especialistas e cuidadores falam por que a sociedade deve acolher a fase em que cada criança se encontra, respeitando o seu desenvolvimento

Ana Mosquera 11 de Setembro de 2022

No mesmo momento histórico em que se luta pelos direitos de minorias, parece coisa de outro mundo se deparar com um letreiro gigante que exclui 17,1% dos brasileiros (segundo o último Censo do IBGE) de ingressar em um estabelecimento.

“Não odiamos crianças, é só a sua mesmo”, dizia a placa colocada, no começo de agosto, em frente ao bar e restaurante La Borratxeria Parrilla, em São Paulo, já acusado de preconceito contra esse grupo e de incitar a violência contra a mulher. Em abril do mesmo ano, também na capital paulista, a fotógrafa Marcelle Cerutti foi impedida de entrar no Bar Miúda por estar com seu filho de 5 anos.

Mesmo que o direito de ir e vir, e de estar em espaços públicos e comunitários esteja previsto pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), nem sempre os pequenos cidadãos têm as garantias resguardadas, ainda que a responsabilidade de proteção sobre eles seja do Estado e da sociedade, segundo o documento.

Por que, afinal, as crianças incomodam e nem sempre são bem-vindas ou acolhidas adequadamente nos espaços públicos? Ou ainda, que tipo de comportamento se espera delas, com o qual a sociedade nem sempre está disposta a lidar? O silêncio muitas vezes é a resposta.

“A sociedade precisa acolher essa família”

“Se eu tivesse que escolher uma palavra para representar as crianças, seria ‘movimento'”, diz a psicóloga infantil e familiar, e doutora em educação, Cecília Antipoff. “É a forma natural que uma criança de desenvolvimento típico tem de entender o mundo, se comunicar e expressar, aprender e apreender. É degustando, via corpo e órgãos do sentido. Até os dois anos ela vai experimentando visceralmente tudo”.

Junto a esse movimento do corpo está o pegar, o falar mais alto, o chorar – o que nem sempre agrada quem está dividindo o salão de restaurante, na poltrona da frente no avião ou no mesmo anfiteatro, como aconteceu com a produtora cultural, Vanessa Cancian. “Eu tenho a impressão de que os formatos em que as produções culturais foram criadas se afastam da realidade e do cotidiano de grande parte da população”. Recentemente, ela e o filho de quase dois anos foram bruscamente retirados de uma apresentação musical, quando ela não teve a chance de acalmar seu choro após uma queda.

Também artista, Cancian faz um paralelo com os espaços de cultura popular, nos quais sente a família sendo mais acolhida, justamente porque as trocas intergeracionais são fundamentais: “É uma possibilidade de coabitar com as crianças, sem sentir o peso do julgamento.”

“Os estabelecimentos precisam fazer sua parte para que haja inclusão de crianças, não só em espaços próprios, mas integradas com as outras pessoas”, pontua a psicanalista, escritora, palestrante e educadora, Thaís Basile. Para a química e alquimista de produtos naturais, Lígia Marques, é essa ausência que a impede de ir a bares e restaurantes com seu filho de dois anos. “Muitas vezes, o lugar tem área kids em outro andar. Aí a criança não pode ficar sozinha e a mãe, geralmente, fica afastada de todos para cuidar da criança”, ela diz, lembrando que o acolhimento vai muito além de um trocador de fraldas.

Querer que uma criança seja sempre agradável e atrelar isso a ela ser silenciosa é uma violência simbólica contra a infância

A segregação das crianças nos espaços considerados amigáveis também se concretiza na oferta das telas, de modo a fazer com que fiquem quietas. “Depois, a mesma sociedade critica as mães por isso. Não sobra muita opção para nós”, ela desabafa.

Se a exclusão da criança é também o impedimento da mãe socializar, a inclusão sem respaldo social pode gerar sua culpabilização por essa ou aquela escolha ao conduzir a experiência dos filhos no espaço compartilhado. “Não é qualquer coisa que vou permitir que meu filho faça em espaços públicos e preciso interferir quando ele invade o lugar do outro, mas a sociedade precisa acolher essa família”, esclarece Antipoff.

“Ao invés de apontar uma criança fazendo barulho em um lugar pouco acolhedor, que tal ajudar essa mãe e, consequentemente, toda a sociedade, por meio desse exemplo?”, sugere a médica pediatra, palestrante e escritora, Luiza Menezes.

Sobre acolher o adulto também

Para Antipoff, essa busca por sossego, descanso e introspecção se deve ao fato de os adultos estarem cada vez mais desconectados da própria essência, do olho no olho, da natureza, atendendo à lógica da pressa e da produtividade, assim como alguns têm na criação punitiva e autoritária a raiz da intolerância quanto ao barulho dos pequenos.

“Um adulto que não dá conta de escutar um grito [de criança] certamente foi uma criança que teve que engolir muito choro. O que a criança mobiliza em nós tem a ver com as feridas desse período. É preciso acolher esse adulto também”, completa Antipoff, que se intitula guardiã de crianças.

No perfil “Infância Fora Da Caixa”, Menezes escreve sobre “pediatria baseada em evidências científicas e maternidade a partir de vivência afetiva” e, para ela, a empatia é crucial para entender a relação entre silêncio e comunicação nessa fase da vida.

Estou olhando para essa criança como ela é, como um ser em formação, ou quero apenas que ela seja comportada?

Assim como Antipoff, ela acredita que a autoanálise é bastante importante para mudar o olhar sobre a infância. “Sabemos equilibrar silêncio e barulho? Quantas vezes não nos incomoda o barulho dos adultos? E o silêncio do par, é um problema? Quantas vezes não nos arrependemos por falar demais ou ficar calados em alguma situação?”, questiona.

Basile lembra que a vocalização excessiva do adulto, ainda que facultativa, é naturalizada, ao passo que a da criança, obrigatória na fase de desenvolvimento, costuma ser rechaçada: “Querer que uma criança seja sempre agradável e atrelar isso a ela ser silenciosa é uma violência simbólica contra a infância”.

Mas como melhorar esse acolhimento?

O primeiro passo, segundo Antipoff, é colocar o assunto em pauta, exercitando a empatia com crianças e adultos, e observando o próprio comportamento ao se deparar com situações específicas. “As redes sociais podem ser um universo muito positivo para isso”.

Assumir que o choro é forma de expressão é igualmente importante e, sem coagir a criança a cortar essa forma de comunicação tão inata, tentar redirecionar sua vitalidade para outras atividades, por meio do estímulo da curiosidade.

“Estou olhando para essa criança como ela é, como um ser em formação, ou quero apenas que ela seja comportada?”, ela deixa a dúvida.

Para Basile, as crianças aprendem sobre limites quando se relacionam saudavelmente com os adultos de referência. “Que exemplos elas estão tendo dos adultos, principalmente dos homens, que são socializados para a desresponsabilização do cuidado com o outro? Como eles se comportam quando estão em público?” A máxima de dar o exemplo continua valendo.

Menezes aposta no treino social como primordial para o equilíbrio entre comunicação e silêncio, dois aspectos inerentes à condição humana, desde o começo da vida. “A responsabilidade da sociedade é ouvir essas crianças com empatia e a compreensão de que estão em fase de amadurecimento. Bloquear esse processo compromete o aprendizado.”

E, claro, acolhendo o potencial adulto adoecido dentro de si. “Só vou conseguir fazer isso se validar meu próprio choro, minha raiva, minha frustração, já que a maioria avassaladora dos adultos da nossa geração não teve essa oportunidade”, recorda Antipoff.

É um aprendizado constante e vai além das bases legais da responsabilidade do Estado e da sociedade sobre a criança e o adolescente, bem como seu direito de ir e vir, mas diz respeito à empatia e ao respeito aos cidadãos, sejam eles de qualquer faixa etária.

Ao invés de restringir os locais em que as crianças são bem-vindas e, assim, fazer com que as famílias, principalmente as mães, tenham seu livre arbítrio também prejudicado, especialistas defendem que é preciso ressignificar essa obsessão pelo silêncio e a obediência infantis.

“Não precisamos de mais locais livres do barulho das crianças e, sim, de mais barulho pelo devido acolhimento dessas mães e de suas crianças”, finaliza Menezes.