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Conversas

Bayo Akomolafe: "Dizemos que estamos promovendo mudanças, mas reforçamos peças antigas"

Filósofo e professor nigeriano defende formas libertadoras de pensar o mundo e a filantropia, fugindo da lógica responsável pelos problemas que enfrentamos hoje

Leonardo Neiva 13 de Abril de 2025

Bayo Akomolafe: “Dizemos que estamos promovendo mudanças, mas reforçamos peças antigas”

Leonardo Neiva 13 de Abril de 2025
Foto de Danilo Mantovani

Filósofo e professor nigeriano defende formas libertadoras de pensar o mundo e a filantropia, fugindo da lógica responsável pelos problemas que enfrentamos hoje

A sociedade hoje busca responder aos seus muitos problemas ambientais e sociais como se fosse um pêndulo, que oscila às vezes mais à direita, às vezes mais à esquerda. Embora muitas dessas oscilações pareçam disruptivas, são elas na verdade que mantêm os ponteiros do relógio funcionando — e, em seu balançar, impedem que as coisas de fato mudem na velocidade necessária. A analogia feita pelo filósofo, escritor e professor nigeriano Bayo Akomolafe explica em grande parte a abordagem pouco ortodoxa do pensador para questões como filantropia e mudança social.

“Quero romper a dinâmica do pêndulo na política atual”, afirma Akomolafe em entrevista a Gama. “Se o ativismo está se tornando parte da política estabelecida, se o que fazemos já é antecipado pelo estado, então devemos buscar outro gesto que não seja sinalizado na política.”

O filósofo esteve em fevereiro no Brasil para realizar palestras e workshops, além de gravar o documentário “Em Tempos Urgentes, Vamos Desacelerar”. O título do filme resume sua visão sobre a importância, como indivíduos em sociedade, de reduzirmos a velocidade em que costumamos funcionar no dia a dia. A relação de Akomolafe com o Brasil, aliás, é mais antiga e tem a ver com suas raízes iorubás, centrais em sua maneira de pensar o mundo.

“O Brasil tem sido uma parte incrível da minha jornada de aprendizado. O iorubá me ofereceu sua história, a diáspora africana, suas tradições, um presente que me permite ver o mundo de forma diferente”, afirma.

Akomolafe também se define com frequência como pai de dois jovens, numa experiência que lhe rendeu uma dupla de livros — ainda sem tradução no Brasil — em que se focou na parentalidade como porta para um futuro mais livre e transformador. É principalmente através da The Emergence Network, rede global de ativismo — ou pós-ativismo, termo cunhado pelo próprio Akomolafe — da qual é diretor-executivo, que ele propõe novas formas de pensar e abordar problemas sociais e ambientais bastante antigos.

Além de defender novas formas de investir recursos sociais, o filósofo aponta, em meio à atuação filantrópica e ativista, a importância de “perceber que somos pegos em fluxos de ações que reforçam exatamente aquilo de que estamos tentando escapar”. Ou seja, acabamos trabalhando dentro das mesmas linhas que criaram e seguem perpetuando os problemas que enfrentamos ainda hoje.

Foto de Danilo Mantovani

Pesquisador em instituições como a Universidade da Califórnia e o Instituto Aspen, ele ainda comanda o curso We Will Dance With Mountais, que promove a intersecção entre filosofia, arte e transformação social. No bate-papo com Gama, Akomolafe aborda a relevância de uma filantropia que seja decolonial, defende uma educação mais libertadora e destaca as pequenas mudanças como o caminho para grandes transformações.

  • G |Como a cultura e a religiosidade iorubá impactaram sua visão de mundo e também o trabalho que você desenvolve?

    Bayo Akomolafe |

    Fui criado na cultura iorubá. Meus pais são iorubás. Cresci em Lagos, sudoeste da Nigéria, que tem um nome português. Foi o local de muita atividade colonial. Mas nunca cheguei a falar iorubá, porque a educação era vista como algo mais intimamente relacionado à língua inglesa do que à nossa própria língua. Na verdade, éramos proibidos de falar iorubá na escola. E meus pais não incentivaram isso, não era uma prioridade na lista deles. Então, tenho dificuldade em falar a língua hoje. Mas o iorubá foi o presente mais impressionante para mim. O folclore, as tradições de Ifá e as histórias dos Orixás. Na minha vida adulta, estou aprendendo e reaprendendo essas histórias. E o Brasil tem sido uma parte incrível da minha jornada de aprendizado. O iorubá me ofereceu sua história, a diáspora africana, suas tradições, um presente que me permite ver o mundo de forma diferente.

  • G |Você já apontou que a forma como respondemos à crise pode ser parte da crise. O que isso quer dizer? O ativismo ou a filantropia como conhecemos não são suficientes frente aos desafios da sociedade?

    BA |

    Citei para algumas pessoas em São Paulo um município belga que tentou limpar suas praias. Eles recolheram o plástico, a sujeira e despejaram tudo de volta no oceano. Mas quando você joga uma coisa no oceano, ela volta para a costa. Isso ilustra a ideia de que estamos presos em uma rotina. Continuamos andando em círculos com nosso ativismo, nossa indignação política. Isso nos mantém dentro de uma máquina que reconfirma uma lógica consagrada sobre as maneiras como nos relacionamos com o mundo. É como um pêndulo, que oscila para a direita e para a esquerda. Mas o pêndulo não ameaça o relógio. Pelo contrário, quanto mais ele oscila, mais o relógio se mantém. Quero romper a dinâmica do pêndulo na política atual. Se o ativismo está se tornando parte da política estabelecida, se o que fazemos já é antecipado pelo estado, então devemos buscar outro gesto que não seja sinalizado na política.

  • G |Como o conceito de pós-ativismo, que você criou, se encaixa nesse contexto?

    BA |

    O pós-ativismo é uma percepção de que há algo mais a fazer, um agrupamento de capacidades de agir. É um conceito muito euro-americano achar que o indivíduo age sobre o mundo, como se o mundo fosse um recipiente passivo da excepcionalidade humana. Somos parte do mundo que estamos tentando consertar. Não existimos fora dele. Então, também estamos conectados com padrões, imperativos e algoritmos. Mas todo sistema, seja utópico, distópico, capitalista ou fascista, produz uma lógica contrária. Essa lógica frequentemente eclode em momentos eruptivos, no que eu chamo de pós-ativismo. Não é uma crítica ao ativismo em si nem uma maneira melhor de obter uma solução. É sobre perceber que às vezes somos pegos em fluxos de ações que reforçam exatamente aquilo de que estamos tentando escapar.

  • G |Ativistas e filantropos têm buscado formas de agir mais estruturais e estratégicas na sociedade. Como você enxerga o cenário atual da filantropia?

    BA |

    Acho que ações filantrópicas, em suas tentativas de salvar o mundo, são cada vez mais parte de uma arquitetura colonial. Nas palavras de um amigo, o dinheiro é o ritual mais persistente e radical do planeta hoje. Participamos desse ritual todos os dias. E acreditamos que o dinheiro é uma ferramenta, que o usamos da mesma forma que acreditamos estar usando as mídias sociais ou a IA. Mas será que o dinheiro não está nos usando? Será que ele não é mais estranho do que pensamos e excede sua utilidade? Que o dinheiro nem sempre coincide com nossas intenções produtivas? Esse dinheiro não é neurotípico, ele não vai de A a B. Ele se afasta da nossa vista. É depositado nas Ilhas Cayman, vai para lugares aonde não o enviamos. Em certo sentido, o dinheiro tem sua própria agência. Parece que todas as maneiras pelas quais o amarramos só reforçam os problemas que enfrentamos. E queremos fazer algo diferente. O dinheiro também produz rachaduras. Minha pergunta é: como fazemos para habitar essas rachaduras?

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  • G |Você já disse estar vivendo uma jornada decolonial. O que é uma filantropia que abrace essa decolonialidade?

    BA |

    Não é uma questão de distância, de ir daqui até lá, mas de ir daqui até aqui mesmo. É algo que está embutido no comum, que já existe. Na filantropia, quais práticas reforçam padrões de produtividade? Como as doações são pagas aos beneficiários? Quando dizemos que estamos reforçando impacto, o que significa? Essas linguagens são tão miméticas, difundidas e comuns que quase nunca pensamos nelas. Eu me preocupo porque parece que, quando entramos nesse tipo de fala, a mobília da sala é preservada. Nada muda. Dizemos que estamos promovendo mudanças, mas reforçamos as mesmas peças antigas. Então, talvez se as fundações dessem dinheiro sem esperar um retorno ou se alguém patrocinasse um caminhante no deserto… Não é produtivo, não parece um gesto importante, mas esses experimentos estranhos com sensorialidade podem evocar novas possibilidades. Já está acontecendo. Conheço fundações que literalmente dizem: Aqui está o dinheiro, não precisa escrever um relatório. Só diga o que você precisa para se alimentar, para ajudar seus vizinhos. Como podemos atendê-lo neste momento de crise da civilização? É um passo ousado, corajoso, que não está tão distante assim.

  • G |E em termos de crise ambiental? Quais barreiras você enxerga para novas formas de lidar com o tema?

    BA |

    Imaginamos que somos agentes de mudança e que tudo o que precisamos fazer é aprender os fatos. Quando nos educarmos o suficiente, seremos abastecidos por instituições filantrópicas. Com uma dose saudável de vontade política, tudo se resolve. Mas esse modelo não parece verdadeiro. Se fosse adequado, não estaríamos aqui 50 anos depois de começarmos a falar sobre caos climático. Ainda hoje, paraestatais, multinacionais e instituições governamentais dependem dessa ideia de que basta divulgar fatos. Não quero descartar a educação, mas é necessário algo mais. Não somos apenas máquinas passivas e lógicas que de repente passam a entender algo. Estamos inseridos em ecologias particulares de atuação, de tomada de decisão. Na verdade, ficamos tão saturados de dados que perdemos o controle do que queremos fazer. Quando buscamos transformação, olhamos para as estrelas, mas a mudança é quase molecular. Acontece com uma asa de borboleta, o brilho de uma planta ou uma mudança nos padrões climáticos. Quero ser capaz de articular uma política que preste atenção a essas rachaduras, a essas inflexões, porque é onde coisas interessantes acontecem.

  • G |Na sua visão, o que significa desacelerar em termos de repensar o ativismo contemporâneo?

    BA |

    Não se trata de tirar um tempo para refletir, penso em uma cosmologia diferente de atuação. No documentário que estou gravando, tento limitar a urgência, dizer que até ela pode ser uma forma de governança. Há um fenômeno chamado espiral da morte, onde as formigas continuam andando em círculos até morrer. Se eu disser para elas se apressarem, isso não vai aproximá-las de casa, porque esse arranjo material social apenas as mantém no loop. A urgência pode ser uma forma tóxica de ciclicidade. Então, quando eu digo vá devagar, não quero reduzir a velocidade, mas interromper a continuidade. Procuro desvios, coisas que se pareçam com um fracasso, maneiras através das quais ainda não sabemos como falar sobre o mundo. Procuro um carnaval sensorial que convide novos tipos de relações com a ecologia, com os corpos, com nós mesmos, com o tempo. É desacelerar em função de uma consciência ampliada, aprofundada, entrelaçada. Não estou tentando salvar o mundo quando falo para desacelerar. Estou tentando preservar um mundo que precisa ser salvo.

  • G |Nesse mundo, o próprio ato de descansar é resistência?

    BA |

    Há alguns belos movimentos disruptivos surgindo, como o movimento chinês de se deitar, que veio na esteira da pandemia. Não acho que o governo goste muito disso, porque ele quer que você retorne ao volante. Mas há um risco na lógica moderna de cooptar essas resistências. Um bom exemplo seria o governo criar um feriado para se deitar. E as pessoas comemorariam essa vitória. Estar incluído significa ser acomodado dentro da lógica do sistema que você está tentando interromper. Por isso falo que as formas como respondemos à crise são a própria crise. A modernidade é inteligente em ignorar a resistência, dando utilidade a ela. Talvez por isso precisemos de mais inutilidade nesses tempos.

  • G |Você já tem dois livros publicados sobre parentalidade. Ser pai ou mãe pode ajudar a nos guiar por caminhos diferentes?

    BA |

    Antes a ideia era que o papel dos pais era seguro. Eles cuidavam de você, te traziam ao mundo, e você fazia parte de um ecossistema familiar. Não sei se, nesses tempos de transformações fluidas, ainda podemos considerar os pais uma unidade autônoma. Estamos vivendo em uma época de IA, de pandemias, algoritmos sociais, uma época em que os biólogos nos lembram do microquimerismo, em que células do feto se propagam para o corpo da mãe. A criança molda a mãe da mesma forma que a mãe molda a criança. Quanto mais olhamos, menos fica claro quem são os pais. O pai não é um corpo ou uma identidade, e sim um ecossistema. A Netflix é um pai hoje em dia. Muitos pais dizem: vou trabalhar, fique na frente da Netflix. A parentalidade é multilinear, heterogênea, uma colagem. Então talvez o convite seja questionar: o que essa colagem pode fazer nesses tempos? Minha esposa chama isso de transparentalidade, uma parentalidade compartilhada. A prática na nossa família é ouvir nossos filhos, criar espaços para eles aprenderem. Eles filosofam conosco e moldam seus próprios futuros educacionais e materiais. Talvez fazer isso nos permita pensar o mundo de forma diferente.

  • G |Estamos educando crianças capazes de transformar seu futuro para melhor?

    BA |

    Estamos criando filhos para serem bem-sucedidos, e isso é cada vez mais preocupante. Fiz dois discursos de formatura em universidades, em que convidei os formandos a fracassarem. Isso foi surpreendentemente bem recebido. O sucesso não é neutro, é político. Você não quer ter sucesso em um planeta moribundo. Ninguém quer um assento de primeira classe no Titanic. Queremos ser a resposta a um mundo que nos convida a nos comprometermos. Acho que a educação encarcera os sentidos, nos torna bons cidadãos. Fabrica subjetividade para que nos encaixemos em filas predeterminadas. Consiga um diploma, um emprego, um bom salário, compre um carro, uma casa, case-se, viva uma vida, morra e, se possível, deixe um legado. O ensino superior especificamente não está preparado para o tipo de fluidez de sentidos que esses tempos exigem.

  • G |Há dificuldade em lidar com essa abordagem menos linear e menos cheia de certezas que você propõe?

    BA |

    Sim, é difícil. Não é o caso de termos capacidade de agir. É provável que essa capacidade seja compartilhada entre os corpos, distribuída em conjuntos de ações e comportamentos. Neste momento, você está compartilhando seu corpo com a cadeira em que está sentado. Essa cadeira molda possibilidades, molda sua postura. E sua postura se mistura com o que você pensa e diz. A arquitetura, os móveis, as tecnologias ao nosso redor compartilham o que a nossa capacidade está se tornando. Temos dificuldades em fazer outros tipos de coisas porque a maioria de nós nasceu e cresceu na cidade. Somos ensinados que existe uma resposta correta, e que a resposta errada vai render uma cara feia. Esse tipo de estratificação e fabricação do eu tem consequências.

  • G |Você já visitou o Brasil algumas vezes. O que levou com você dessa sua última passagem?

    BA |

    A sensação de um futuro diferente. Sem romantizar as tensões, as dinâmicas capitalistas, extrativistas, de desmatamento, de negação da ecologia, achatamento da cultura e as políticas. Há algo sobre as maneiras como as culturas indígenas e afro-diaspóricas aí prosperaram, apesar da pressão das culturas, sistemas e padrões dominantes. A chegada dos Orixás. Todas essas coisas me dizem que outras maneiras de estar no mundo são possíveis. Estou encantado com a forma como a língua e a cultura iorubá prosperaram sob a dor da escravidão, e como elas se tornaram uma força espiritual no Brasil, Caribe e América do Sul. Será necessário um tipo diferente de convite, uma percepção do carnavalesco, uma invocação daquilo que vai além do humano para forjar novos futuros. No Brasil, visito o traço de um futuro que ainda não chegou. Um futuro que não é colonizado pelos caras da tecnologia, um futuro que ainda é possível.

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