O que é liberdade para diferentes religiões — Gama Revista
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Isabela Durão

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Semana

A liberdade, segundo a fé

De Monja Coen ao babalorixá Sidnei Nogueira, representantes de diferentes religiões dividem seus conceitos de liberdade, a partir de suas crenças

Bruna Bittencourt 27 de Setembro de 2020
Isabela Durão

A liberdade, segundo a fé

De Monja Coen ao babalorixá Sidnei Nogueira, representantes de diferentes religiões dividem seus conceitos de liberdade, a partir de suas crenças

Bruna Bittencourt 27 de Setembro de 2020

Cercada por dogmas e doutrinas, a religião não costuma ser associada à ideia de liberdade plena. Mas há mais autonomia entre o céu e a terra do que a maioria de nós possa imaginar. “Você tem liberdade de escolhas, há inúmeras possibilidades. Existem as regras, os preceitos, mas segui-los ou não é sua decisão”, diz Monja Coen. No budismo, explica ela, nossas escolhas influenciarão uma trama de causas, condições e efeitos.

Imã de uma mesquita em Curitiba, Rodrigo Rodrigues defende que a liberdade deve caminhar de mãos dadas com o bom senso. “Quando lecionava na Escola Islâmica [em São Paulo], falava para jovens e adolescentes: ‘Cara, você é livre para fazer o que quiser, quem vai prestar contas é você, para a sua vida e para Deus’”, lembra.

Já para o rabino Ruben Sternschein, que estudou o livre arbítrio em sua tese de doutorado, nossa liberdade está pré-determinada pela genética, por um contexto social e pela história de cada um. “Mas, dentro de tudo isso, temos várias maneiras de sermos nós mesmos. Esta é nossa liberdade.”

No âmbito coletivo e em uma época em que a religião se embaralha à política nacional, o babalorixá Sidnei Nogueira, autor do livro “Intolerância Religiosa” (Polen Livros, 2020), chama a atenção para o respeito às diferenças. “Sua liberdade será garantida a partir do momento em que o outro respeitá-la, ele não precisa apoiá-la nem segui-la. Você não precisa que as pessoas pensem do mesmo modo, mas que não lhe matem ou não lhe privem do direito de crer, de sentir, de se relacionar sexualmente, de se identificar com determinada ideologia política”, diz.

Para o pastor Henrique Vieira, coautor de “O Monge e o Pastor – Diálogos para um Mundo Melhor” (Objetiva, 2020), não existe liberdade efetiva com a desigualdade social que vivemos no Brasil. “Ela tem que ser fruto de uma libertação que seja econômica, política e cultural, promovida coletivamente.” A seguir, esses cinco nomes discorrem sobre a liberdade, a partir de suas crenças.

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    ©Giovana Pasquini / Isabela Durão

    “Não temos uma liberdade absoluta mas temos várias maneiras de sermos nós mesmos”

    Ruben Sternschein, rabino e doutor em filosofia judaica pela USP

    “Nós, judeus, gostamos de rir de nós mesmos dizendo que onde há dois judeus há, no mínimo, quatro ideias. Isto porque as fontes judaicas são muitas e interpretadas de diversas formas. Há linhas e sublinhas. Seria impossível, por exemplo, ter um Vaticano judaico. Isto cria uma cultura muito plural.

    A ideia de liberdade se encontra logo no começo das fontes judaicas, na Bíblia, no que chamamos de Torá e a tradição cristã chama de Pentateuco. No começo da narrativa bíblica, Adão tem a escolha entre aceitar o mandamento de não comer o fruto da Árvore do Conhecimento ou transgredi-lo. Ele e Eva decidem transgredir, escolhem o conhecimento às expensas da eternidade, escolhem ser mortais e sábios do que eternos e ingênuos. Isto não é visto no judaísmo como um pecado, mas como uma escolha. Não existe o pecado original, a vida é boa e contém uma proposta de liberdade.

    A princípio, todo o judaísmo se baseia em mandamentos e, portanto, em liberdade. A pessoa decide se sente impelida ou não a seguir o mandamento. Nossas principais datas são ao redor da liberdade, a começar pela Páscoa, que celebra a libertação dos hebreus como escravos no Egito.
    No meu doutorado, estudei o livre arbítrio, se a vontade é livre. De onde vem o que uma pessoa quer? Ela pode querer qualquer coisa ou sua vontade está determinada pela genética e pela sociedade?

    Minha tese mostra que existe um terceiro caminho em que, além da genética, da educação e da história de cada um, há um espaço em que a pessoa escolhe, sim, e mostro isso dentro do judaísmo. Não temos uma liberdade absoluta porque estamos determinados pela genética e por uma história particular, mas, dentro de tudo isso, temos várias maneiras de sermos nós mesmos. Esta é nossa liberdade. Pela nossa história e genética, conseguimos expressar nossa religiosidade de algumas formas, mas não de infinitas maneiras.”

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    “As nossas escolhas vão provocar respostas e sempre voltam para nós”

    Monja Coen Roshi, primaz fundadora da Comunidade Zen Budista Zendo Brasil

    “A liberdade existe, mas é condicionada aquilo que você faz, fala e pensa e dará retornos a você e ao mundo. São ensinamentos de Buda de 2.600 anos atrás. Tudo é uma relação de causas, condições e efeitos, mas isso não é um pré-destino. A sua escolha vai transformar essa trama.

    O que é causa de uma coisa, pode ser efeito de outra, consequência de uma terceira. As nossas escolhas vão provocar respostas e sempre voltam para nós. O que você jogar no universo vai voltar para você como um boomerang. Se você jogar pensamentos perversos, ideias de destruição, de extinção, isso vai voltar na sua direção com a mesma força que você colocou.

    Mas você pode se arrepender, perceber que não foi um bom pensamento, uma boa palavra, uma boa atitude. O arrependimento é um compromisso de transformação e você pode diminuir os efeitos prejudiciais daquilo que colocou no mundo. Não se pode apagar a ação e o pensamento, assim como não se pode tirar a palavra dita, a intenção dela, não só o sentido, mas a emoção que você coloca junto.
    Você tem liberdade de escolhas, existem inúmeras possibilidades.

    Existem as regras, os preceitos, mas segui-los ou não é sua decisão. Conheça a si mesmo para poder escolher pensamentos que não sejam prejudiciais, assim como ações ou palavras. Todas as sementes do que é positivo e prejudicial estão em nós, temos o ditador mais autoritário e malévolo como o ser mais altruísta e benéfico. O que estamos alimentando em nós? Dentro dessa ideia de liberdade de escolha, vou me esforçar corretamente para aquilo que seja benéfico e bom cresça no mundo à minha volta. As práticas da meditação e do autoconhecimento são essenciais para fazer as escolhas adequadas.”

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    “Liberdade para nós é uma grande metáfora da encruzilhada”

    Sidnei Nogueira, babalorixá, doutor em linguística pela USP e autor de “Intolerância Religiosa”

    “Nós temos uma ética de terreiro que só existe a partir do respeito ao que chamamos de pluri universalidade e pluri singularidade. Nós só podemos ter uma liberdade se ela der conta de respeitar a um só tempo as singularidades e as universalidades.

    Liberdade para nós é uma grande metáfora da encruzilhada, que é o cruzamento da mão única que, por sua vez, é a negação da liberdade. A mão única só tem dois lados: o direito e o esquerdo, ou você vai para um lado ou para outro. É um pouco do que a gente tem vivido no Brasil. Na encruzilhada, que nasce do cruzo da mão única, você tem quatro possibilidades, a partir de convergências e divergências.

    Sua liberdade será garantida a partir do momento em que outro respeitá-la, ele não precisa apoiá-la nem segui-la. Você não precisa que as pessoas pensem do mesmo modo, mas que não lhe matem ou não lhe privem do direito de crer, de sentir, de se relacionar sexualmente, de se identificar com determinada ideologia política.

    Estamos muito tomados por uma ilusão de que só há organização moral e ética a partir de uma religião hegemônica e isso não tem funcionado. Poder existir é poder ser livre. Quando você começar a cercear dimensões existenciais – de crença, de afeto, políticas –, imediatamente você acaba com a liberdade, acaba com possibilidades existenciais.”

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    “Temos que cuidar para não confundir e misturar os limites que a religião impõe com interpretações pessoais”

    Imã Rodrigo Rodrigues, cientista social, formado em teologia islâmica pela Universidade Rei Saud (Arábia Saudita)

    “Nós temos dois tipos de liberdade no Islã: uma incondicional, que é a liberdade de querer, de fazer, e a liberdade de poder. Essa é condicionada aos direitos de Deus sobre o indivíduo, à sociedade. As pessoas confundem liberdade com irresponsabilidade – ‘sou livre, posso fazer o que eu quiser’. Pode, mas não deve.

    Quando lecionava na Escola Islâmica, falava com jovens e adolescentes: ‘Cara, você é livre para fazer o que quiser, quem vai prestar conta é você, para a sua vida, para Deus’. A liberdade que Deus nos deu deve ser bem utilizada para não causar danos, prejuízos e injustiça para si mesmo e para outras pessoas. Sou livre para fazer o que quiser, mas desde que tenha bom senso. O Alcorão fala que se a pessoa fizer tudo o que tem vontade vai acabar corrompendo e estragando a Terra.

    Temos que cuidar para não confundir e misturar os limites que a religião impõe com interpretações pessoais. Muitos conceitos de liberdade cultural, social de muçulmanos parecem sobrepor aquilo que a religião diz. Por exemplo: muçulmanos e não muçulmanos defendem que a mulher muçulmana não pode trabalhar. Eles usam seu contexto histórico e social para se apropriar do licenciamento religioso. Ela pode trabalhar, está nos textos sagrados, o Islã não proibiu. Isso é proibido pela cultura machista, pelo patriarcado.

    As pessoas procuram textos e tiram do contexto para dizer que isso é do Islã. Cabe ao imã desconstruir isso. Elas se apropriam para defender sua retórica, isso em todas as religiões.”

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    ©Chico Cerchiaro / Isabela Durão

    “O propósito da liberdade é que todos possam vivê-la, e não apenas eu”

    Henrique Vieira, pastor, ator e autor de “O Monge e o Pastor – Diálogos para um Mundo Melhor”

    “Quando o Evangelho de João traz ‘conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’, não é verdade no sentido doutrinário. Conheça a verdade da liberdade, do amor, da comunhão, é isso que liberta. Ela tem que ser fruto de uma libertação que seja econômica, política e cultural, promovida coletivamente.

    A liberdade é fundamental no Evangelho. Nesta perspectiva, o relacionamento com Deus e com a vida não deve ser mediado pelo medo nem pela culpa. É importante dizer isso porque, infelizmente, em determinada vivência, o cristianismo suprimiu muito a liberdade e criou uma religiosidade mediada pelo medo, pela culpa, pela penitência, pelo remorso, mas isso nada tem a ver com o testemunho do Evangelho.

    Segundo ponto: a liberdade, também na perspectiva do Evangelho, é um exercício em amor. O propósito da liberdade é que todos e todas possam vivê-la, não apenas eu. É uma liberdade que se experimenta na comunidade, na comunhão, na construção de condições para que todos sejam livres.

    O terceiro ponto é que a liberdade tem uma questão política, econômica, social, do ponto de vista do Evangelho. Jesus viveu numa sociedade extremamente hierarquizada, brutalmente desigual, num território periférico que era colonizado pelas forças e violência do Império Romano. E Jesus de Nazaré, um camponês, viveu sua vida ao lado dos oprimidos, caminhou junto aos pobres.

    Não existe liberdade efetiva quando você tem uma desigualdade social como a que vivemos no nosso país, no mundo; quando o racismo é o movimento estruturante da nossa sociedade, que estigmatiza e impõe sofrimento e morte ao povo negro e a todos seus filhos. Não existe liberdade numa ordem patriarcal, que gera uma cultura de estupro e de feminicídio, numa cultura cis heteronormativa em que a expectativa de vida de transexuais e travestis no Brasil é de 35 anos. Não existe liberdade quando os povos indígenas não conseguem permanecer nas suas terras, tendo suas crenças e cultura restringidas. Não existe liberdade em um país em que milhões de habitantes não têm acesso à moradia, ao saneamento básico e à alimentação adequada.”