Giselle Beiguelman: "Toda imagem que você faz, mesmo que não poste, alimenta uma rede de dados" — Gama Revista
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Isabela Durão

Conversas

Giselle Beiguelman: "Toda imagem que você faz, mesmo que não poste, alimenta uma rede de dados"

Pesquisadora fala dos perigos de registrarmos e postarmos nosso cotidiano. Ela é autora de “Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera”, que acaba de ganhar uma nova edição

Luara Calvi Anic 05 de Novembro de 2023

Giselle Beiguelman: “Toda imagem que você faz, mesmo que não poste, alimenta uma rede de dados”

Luara Calvi Anic 05 de Novembro de 2023
Isabela Durão

Pesquisadora fala dos perigos de registrarmos e postarmos nosso cotidiano. Ela é autora de “Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera”, que acaba de ganhar uma nova edição

Uma fotografia feita no celular traz muito mais dados do que aquilo que se vê numa primeira olhada. Entre outras coisas, ela pode informar a localização, o horário que foi clicada e, sem que você perceba, pode trazer informações de pessoas que estão a sua volta. Tudo isso permite diferentes usos de informações pessoais, sem o seu consentimento.

A pesquisadora, professora livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Usp e artista, Giselle Beiguelman, lembra da chamada “cultura da vigilância” ao tratar desse tema. “Ela está a tal ponto introjetada no nosso cotidiano que não nos intimida usar um vocabulário tão policialesco como ‘seguir’ e ‘ser seguido'”, escreve em “Políticas da Imagem: Vigilância e resistência na dadosfera” (Ubu, 2021), que acaba de chegar a sua segunda edição.

No livro, a autora traz ainda um panorama de como a imagem foi adentrando diferentes frentes da nossa sociedade, como se estivéssemos o tempo todo sendo vigiados e fotografados. “A cidade hoje não é apenas o espaço do olhar, mas o lugar que nos olha e que expande a função até da arquitetura para um lugar de mediação da vida social por imagens”, diz.

A atual guerra no Oriente Médio é também um exemplo dessa onipresença das câmeras em nosso cotidiano, mas nesse caso com uma função essencial, diz a autora: “Isso, em Gaza, tem se tornado uma estratégia muito importante porque a imagem vocaliza a dimensão da violência que está acontecendo”, diz a Gama.

Na conversa que você lê a seguir ela trata dos perigos de expormos crianças nas redes, da ilusão da privacidade, de como somos vigiados o tempo todo e do poder das imagens hoje.

 Foto: Jorge Lepesteur

Hoje todos vigiam todos e você é olhado a partir das imagens que produz

  • G |Tem-se discutido muito o sharenting, ou a prática de pais compartilharem fotos dos filhos nas redes. Qual a sua opinião, a partir da sua pesquisa sobre o uso da imagem e dos dados hoje?

    Giselle Beiguelman |

    Para mim, como mãe, apesar da minha filha já estar com mais de 30 anos, é algo extremamente perturbador ver tantas imagens de criança disponíveis num mundo de pedófilos. A outra coisa é que isso alimenta bancos de dados que vão fazer programas, por exemplo, de reconhecimento facial. E tem a história da vida dessa pessoa. Você pode já ter perdido seu celular, não sabe mais a senha de um e-mail, da nuvem, mas aquela foto segue lá. E ela permite se fazer um rastreamento de corpos como nunca antes. Tem aquelas mães que dizem “as fotos do meu filho são todas privadas, eu controlo tudo”. É você versus o Google! Caiu na rede é peixe. [A imagem] é transformada em dado.

  • G |Então qualquer ideia de privacidade hoje é irreal?

    GB |

    Sim. Tem gente que acredita em Papai Noel, tem gente que acredita em privacidade nas redes, eu não sou uma delas. Rede pressupõe compartilhamento. O problema é que há uma ausência de transparência [por parte das empresas, dos governos que coletam dados] sobre o que vai ser compartilhado, como será compartilhado e para onde podem ir essas informações. Essas são as grandes questões da privacidade hoje em dia. A posse, a privacidade naquele modelo século 19, “o que tem dentro da minha casa é meu e o que está fora é do mundo”, isso acabou. A privacidade hoje em dia é o direito de saber quais dados estão sendo coletados, o que pode ser feito com eles e para onde eles podem ir. É isso que a gente não sabe. É essa a paranoia.

  • G |No seu livro você diz que a cidade é o lugar que nos olha. Podemos dizer que a arquitetura, a cidade, se transformaram numa imensa câmera? 

    GB |

    Total. A ideia do panótico [projeto de uma penitenciária perfeita, em que todos os prisioneiros são vigiados por um vigilante sem que percebam] faliu não porque essa tese está errada, é porque hoje todos vigiam todos e você é olhado a partir das imagens que produz. Eu já tive situações de aluno me escrevendo que não pode ir em dia de entrega de trabalho porque a cachorra passou mal, a mãe caiu, porque morreu e ressuscitou [risos]… e você sai da aula, entra no seu Instagram e vê a foto do aluno na hora em que ele te mandou a mensagem, todo montado para ir pra festa. Todos vigiam todos, mas vai muito além dessa escala humana do panótipo, todos vigiam todos porque os dados que você produz implicam os dados dos outros.

  • G |Poderia dar exemplos?

    GB |

    Estive em uma manifestação de professores, fotografei e quando abri a foto no Facebook apareceram um monte de quadradinhos nos rostos [para serem marcadas]. Provavelmente essas pessoas estavam em fotos de outras manifestações mas eu particularmente nunca as vi. Isso é um exemplo de como a vigilância contemporânea opera quando a gente fala nesses sistemas das cidades que conseguem cruzar muitas redes entre si, das redes pessoais às urbanas e às governamentais. Ou quando testaram câmeras de reconhecimento facial no Carnaval de São Paulo….Uma das matrizes de alimentação dessas redes eram os RGs digitais. Mesmo caso em relação aos passaportes com chip. Não é uma pessoa que está te fotografando quando você passa na [na imigração], é um sistema que cruza dados.

  • G |Recentemente acompanhamos o caso de meninas que tiveram seus rostos inseridos no corpo de mulheres nuas. Perdemos o controle da nossa imagem?

    GB |

    Embora os políticos e empresários sejam vítimas de deef fakes, a origem está num método desenvolvido para fazer troca de faces de mulheres em filmes pornográficos. A questão da mulher só piora. Violências como essas estão historicamente documentadas dentro do âmbito da história da imagem digital. Mas a Internet não inventou o racismo, não inventou a pedofilia, não inventou a misoginia. A internet abriu canais para esse esgoto da humanidade circular de formas que a gente nunca quis ver. E ela parece não só com a questão dos deepfakes e da apropriação dos corpos, mas também nessa opressiva seara dos filtros de embelezamento, que são superetaristas, racistas, como se a mulher não pudesse ter rugas, ser preta, ser gorda. Os homens têm um espectro mais largo dessas coisas….

  • G |Entrando no tema da guerra no Oriente Médio e na avalanche de imagens que estamos tendo acesso. Qual o papel das imagens no contexto da guerra?

    GB |

    Já foi dito que essa guerra está sendo “shaped by the image” [moldada pelas imagens], como saiu no New York Times. Eu acho que é fundamental essa torrente de imagens porque antes a gente estava condicionado ao olhar do fotógrafo e, muitas vezes, do próprio veículo e dificilmente a imagem fotojornalística deixaria de registrar algum dos cânones do enquadramento. Esta semana liberaram as imagens de 7 de outubro [quando aconteceu o ataque contra civis, em Israel, pelo grupo terrorista Hammas], eu obviamente não as vi, mas a maioria delas foi produzida por pessoas que morreram ali mesmo. E isso, em Gaza, tem se tornado uma estratégia muito importante porque a imagem vocaliza a dimensão da violência que está acontecendo.

  • G |E como devemos olhar para essas fotografias e vídeos?

    GB |

    Tem circulado muitas imagens descolocadas porque acho que nunca tantas imagens foram produzidas dentro de um conflito por quem está sofrendo o conflito. Isso é algo radical nessa escala, o que só comprova a tese de que a câmera do celular é um terceiro olho na palma da mão, é uma coisa que virou um dos rastros para entender o que está acontecendo. Hoje, no entanto, uma imagem digital pode perder os seus rastros de origem na circulação nas redes…. Um manda no WhatsApp, outro encaminha via Telegram, vai para um grupo e de repente chega em você e vamos sendo carregados pela legenda que alguém deu e que pode ser totalmente diferente daquela originária. Então é um emaranhado de versões como a gente nunca teve, mas é também a imagem sendo ocupada por corpos que nunca tiveram direito a ser.

  • G |Esse tema da imagem e dos dados gera infinitos debates, alguns dos quais trouxemos aqui. Por que esse alcance?

    GB |

    A imagem hoje tem dois aspectos que mudam muito em relação a nossa cultura das imagens até 2005, quando começaram a sair os celulares com câmera e quando o YouTube apareceu, que é mais ou menos na mesma época. A câmera, o equipamento para produção de imagem, desde sempre foi uma questão impeditiva. Então por um lado você tem um processo de popularização da câmera e de abertura de canais pra escoar a imagem como nunca houve. E isso nos coloca diante de uma questão que é muito mais relevante do que essa. A imagem, por todas essas características, sempre foi classista e racista porque ela tinha limites muito claros sobre quem poderia ocupá-la, quem poderia estar dentro da imagem.

  • G |Até que há uma amplificação do acesso.

    GB |

    Sim. Aí vai ter na televisão e no cinema industrial uma explosão de tipos, mas ainda numa escala muito restrita a quem poderia produzir e colocar essa imagem em circulação. Com a emergência do YouTube e a popularização do celular com câmera, temos uma subversão completa, uma canibalização da tela no sentido muito positivo. A tela vai ser ocupada por uma imagem que foge completamente ao cânone das escolas de fotografia e cinema. Tudo isso vai criar um repertório novo e uma cultura visual sem precedentes.

  • G |Essas imagens que produzimos diariamente podem ainda ser chamadas de fotografia na sua opinião?

    GB |

    Eu tendo a chamar tudo de imagem porque a fotografia tem todo um ritual que implica principalmente o enquadramento. Agora, a gente tá falando de uma imagem que é produzida para circular, ela é catapultada pela câmera e não tem mediação. A câmera é uma maneira de você autenticar que esteve em algum lugar. E a imagem tem um destino certo, ela vai para rede social geo localizada, marcando a sua posição. Isso tudo faz com que ela tenha uma natureza diferente, não só porque pode ser manipulada, a fotografia [analógica] também podia.

  • G |Sim, em seu livro você mostra que uma imagem feita no celular e postada nas redes tem muitas outras camadas para além do momento que está sendo registrado.

    GB |

    O que a imagem digital tem de mais importante é que ela é uma imagem que pode ser relacionada a outros comportamentos, ela tem muitas camadas. Qualquer imagem é muito maior do que a fotografia em si, só lembrar do filme “Blow-up”, de Michelangelo Antonioni. Toda imagem é produto de um campo de visibilidade e invisibilidade. Agora, a imagem digital tem muitas camadas informacionais que vão desde o modelo da câmera, o lugar onde você esteve, o horário, as pessoas que estavam dentro dessa imagem que você nem quis enquadrar… você põe a foto no Instagram e aparece um monte de quadradinho pra você identificar. Tudo isso faz com que essa imagem tenha uma outra espessura e possa funcionar relacionalmente porque ela é produzida dentro de rede, dificilmente um celular está desconectado da internet. Toda imagem que você faz, mesmo que não poste, está alimentando uma rede de dados. É uma imagem muito diferente da imagem fotográfica.