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PessoasA jornada das atletas refugiadas que irão às Olimpíadas
Em comum elas têm o fato de terem deixado o local onde viviam para fugir de guerras, perseguições e outras violações de direitos humanos
A primeira medalhista internacional do Irã em um esporte que era proibido para mulheres até 2018. Uma corredora etíope que passou por um campo de refugiados no Egito e uma prisão de imigrantes na Líbia até chegar à França, um ano depois. A única dançarina de break do Afeganistão, que fugiu após ser ameaçada de morte no país que criminaliza qualquer tipo de música ou dança e que nega direitos básicos à população feminina.
Histórias de vida como essas são a regra dentro da Equipe Olímpica de Refugiados, delegação que reúne 37 atletas de várias partes do mundo. Em comum, eles têm o fato de terem deixado o local onde viviam para fugir de guerras, perseguições e outras violações de direitos humanos. Sem poder representar seus países de origem nem aqueles onde vivem atualmente, todos eles competirão pela mesma equipe nos Jogos de Paris 2024.
O grupo é uma pequena amostra de um fenômeno que bate recorde ano após ano. Atualmente, há mais de 114 milhões de pessoas deslocadas à força no planeta, o equivalente a 1,4% da população mundial, de acordo com a Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
Elas enfrentam um périplo para conseguir sair de onde estão, movimentar-se até um lugar seguro e, uma vez lá, recomeçar do zero em um lugar novo, muitas vezes sem falar o idioma nem conhecer ninguém. Para os integrantes da Equipe Olímpica, o esporte de elite foi uma ponte para a adaptação à nova vida — ainda que alguns deles tenham que conciliar os treinos com subempregos ou com a dura rotina de um campo de refugiados.
A Olimpíada de Paris será a terceira a ter uma delegação só de refugiados. A estreia foi nos Jogos do Rio 2016, com 10 atletas — o número quase triplicou em Tóquio 2020, com 29 esportistas participando. Em 2024, mais da metade da equipe vem de três países: Irã, Afeganistão e Síria. Os demais são de Camarões, Cuba, Eritreia, Etiópia, Sudão, Sudão do Sul, República Democrática do Congo e Venezuela.
Olympic Refuge Foundation
A maioria migrou para países do Norte Global, como Alemanha, Canadá, Suécia e Reino Unido. Na falta de uma bandeira nacional, até agora o time desfilava com a bandeira olímpica, aquela dos cinco aros. Em Paris, pela primeira vez eles terão um símbolo próprio: um emblema com um coração no centro.
Cerca de metade dos refugiados do mundo são do sexo feminino. Além dos desafios comuns a todos os imigrantes, elas enfrentam uma camada adicional de opressão, devido à discriminação de gênero. A ONU estima que 1 em cada 5 já sofreu violência sexual.
Na delegação olímpica refugiada, 13 dos 37 atletas são mulheres. Quase todas vêm de países que desrespeitam sistematicamente os direitos das mulheres, o que pode incluir restrições para que pratiquem esportes
Na delegação olímpica refugiada, 13 dos 37 atletas são mulheres. Quase todas vêm de países que desrespeitam sistematicamente os direitos das mulheres, o que pode incluir restrições para que pratiquem esportes. É o caso da afegã Manizha Talash, de 21 anos, dançarina de breaking — modalidade que estreia neste ano nos Jogos Olímpicos. Ela começou a praticar o esporte na adolescência, em Cabul, depois de ficar fascinada pelo vídeo de um dançarino que girava com a cabeça apoiada no chão.
Nos treinos, era a única garota entre 55 meninos. “No começo, tinha tanta vergonha que mal conseguia me mexer”, conta. Ela persistiu e entrou para o grupo, chamado Superiors Crew. Mas passou a receber ameaças de morte, que culminaram em atentados contra o clube onde treinava, até que o local teve que fechar.
Para tentar proteger a família das ameaças, Manizha passou a usar um sobrenome que não é o seu. Escolheu Talash, que significa “esforço”, em persa. Tudo isso aconteceu antes de o grupo extremista Talibã voltar ao poder no Afeganistão, em agosto de 2021. Dali em diante, ficou impossível continuar. “As mulheres nem sequer têm o direito de sair de casa, muito menos de treinar”, diz.
Como outros milhares de afegãos, ela fugiu com seu irmão através das montanhas que ficam na fronteira com o Paquistão. Depois de passar para o país vizinho, conseguiu refúgio na Espanha. Até recentemente, Manizha trabalhava em um salão de beleza na cidade de Huesca, no interior da Espanha. Ela foi a última atleta a ser chamada para a Equipe Olímpica, segundo uma reportagem da revista Teen Vogue.
“Não deixei minha casa pelo perigo à minha vida, porque se fosse por uma questão de morrer, todo mundo quer ser enterrado em seu país e passar seus últimos dias com sua família”, diz ela. “Eu tive uma razão mais importante para migrar, que foi a ameaça aos meus sonhos. E estou aqui alcançando o que eu sonhei porque me esforcei demais para isso.”
Chance de fuga
Algumas esportistas refugiadas já competiam representando seus países de origem antes de migrar, e ao menos duas delas aproveitaram torneios internacionais para pedir asilo. Yekta Jamali fez isso aos 17 anos. Primeira iraniana a ganhar uma medalha internacional de levantamento de peso, esporte proibido às mulheres até seis anos atrás, ela viajou para um torneio na Grécia e decidiu não voltar para casa. Pediu refúgio na Alemanha, onde vive longe de sua família, mas com liberdade e segurança para praticar a modalidade.
Yekta, cujo nome significa “única”, em persa, compartilha nas redes sociais fotos e vídeos de seus treinos carregando mais de 100 kg. Muitos posts são acompanhados de frases motivacionais, como “Faça aquele movimento que você tem medo de fazer”. “Toda a minha vida foi como essa frase”, disse ela ao portal britânico InsideTheGames.
A ciclista etíope Eyeru Gebru, 27, também pediu asilo durante uma viagem para competir na Europa. Em vez de ir para a Bélgica, onde seria o campeonato, desviou a rota para a França, trocou de telefone e pediu refúgio. Ela é da região do Tigré, palco de uma violenta guerra civil entre 2020 e 2022, e perdeu amigos e parentes no conflito. Ficou dois anos sem treinar nem competir, até que recebeu uma bolsa do COI (Comitê Olímpico Internacional) e foi chamada para os Jogos de Paris.
Eu tive uma razão mais importante para migrar, que foi a ameaça aos meus sonhos
“Eu realmente acredito que o ciclismo salvou minha vida”, disse ao site Eurosport. “É o que mais me dá força. Aqui não tenho ninguém, estou longe da minha família e a única coisa que tenho é o meu sonho e o amor pelo ciclismo.”
Outra atleta natural da Etiópia é Farida Abaroge, 30. Faixa-preta de karatê, corredora e jogadora de futebol, ela participará de provas de atletismo nas Olimpíadas. Sua saga em direção à Europa começou em 2016 e durou mais de um ano, no qual ela passou pelo Sudão, por um campo de refugiados no Egito e ficou presa em um dos temidos e insalubres centros de detenção de imigrantes na Líbia. Finalmente chegou à França, em 2017, e hoje mora em Estrasburgo.
“Fisicamente destruída pelas dificuldades, pela falta de alimentação e por uma cirurgia estomacal que deu errado no caminho, Abaroge fez um retorno surpreendente ao esporte”, diz o jornal britânico The Guardian.
Para se preparar para as Olimpíadas, Farida precisou conciliar uma jornada de treinos duas vezes ao dia com seu trabalho em período integral embalando encomendas em um centro de distribuição. Incluída no Programa de Bolsas para Atletas Refugiados do COI, conseguiu tirar dois meses de licença não remunerada para a competição em Paris.
Histórias de cinema
A equipe de refugiados não ganhou medalhas olímpicas até o momento. Em Tóquio 2020, a atleta de taekwondo iraniana Kimia Alizadeh chegou perto disso ao disputar o bronze, mas acabou em quinto lugar. Nos Jogos do Rio 2016, ela ganhou a medalha de bronze, mas na época ainda representava seu país, o Irã. Em Paris, competirá pela Bulgária, que lhe concedeu a cidadania recentemente.
Segundo o COI, a equipe foi criada não só para dar uma chance de atletas de elite que sejam refugiados competirem, mas também com a função de conscientização a respeito da crise global de deslocamentos forçados.
Um exemplo icônico dessa visibilidade foi o lançamento do filme “As Nadadoras” (2022), baseado na história de uma das competidoras das Olimpíadas de 2016 e 2020, Yusra Mardini, e de sua irmã, Sara. Em 2015, quando eram adolescentes, as irmãs Mardini fugiram da Síria depois que a casa da família foi destruída pela guerra. Sozinhas, atravessaram o Líbano e a Turquia e pegaram um bote superlotado de imigrantes até a Grécia. Quando o motor parou de funcionar e o naufrágio era iminente, elas nadaram empurrando o bote durante três horas, até chegarem a terra firme. Hoje, são refugiadas na Alemanha.
Em 2023, foi lançado o documentário “We Dare to Dream” (2023), da cineasta indicada ao Oscar Waad al-Kateab, que acompanhou atletas refugiados em sua viagem para Tóquio 2020. Uma delas é a iraniana Alizadeh, do taekwondo.
A jornada da afegã Manizha Talash também está sendo registrada em vídeo. Isabel Guarco, jornalista que morava nos EUA, começou a se comunicar com a dançarina de breaking quando a garota ainda estava no Afeganistão. As duas hoje moram juntas em Madri. “A história dela supera a ficção”, disse Guarco a um jornal esportivo espanhol — uma frase sobre Talash, mas que também se aplica aos demais atletas olímpicos refugiados.
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