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SemanaO corpo em cena
Como a indústria do audiovisual está se reorganizando para evitar excessos e abusos atrás das telas
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Como a indústria do audiovisual está se reorganizando para evitar excessos e abusos atrás das telas
“Sexo nas telas não é sinônimo de nudez, muito menos de sexo no set”, diz Juliana Schalch, que interpreta uma garota de programa na série “O negócio”, da HBO. O papel naturalmente inclui cenas picantes. “Mas é tudo muito conversado e técnico”.
Nem todo mundo, infelizmente, tem tanta clareza desses limites. Uma vez, durante as gravações de um filme, Juliana decidiu que não queria mostrar “certas partes” do corpo. “Minha decisão não foi bem recebida pelo diretor. Até que a assistente de direção, uma mulher, claro, entrou na história. Conversamos e ela o convenceu de que aquilo não era necessário. Fiz o filme e a cena do jeito que eu queria”, conta.
A atitude de Juliana está em consonância com a de outras atrizes, não só no Brasil, que têm assumido uma postura mais ativa para garantir autonomia sobre suas imagens e corpos nas telas e por trás delas. Entre as reivindicações, está também a maior presença de mulheres nas equipes técnicas.
Quando eu era mais jovem, só fazia o que me mandavam. E, se me sentisse desconfortável, pensava: ops, estou desconfortável, mas não tenho voz aqui
Recentemente, a atriz Keira Knightley declarou em uma entrevista ao podcast Chanel Connects que não quer mais fazer cenas de nu dirigidas por homens: “Sorry, mas teria que ser com uma diretora”.
Desde 2015, ela, que fez a Elizabeth de “Orgulho e Preconceito” (2005), passou a incluir cláusulas em seus contratos para limitar excessos de nudez. O motivo, além de vaidade – “este corpo já teve duas crianças” –, é o “male gaze”, ou o olhar de fetiche masculino sobre as mulheres nas artes, que resulta em uma imagem distorcida, hipersexualizada e, muitas vezes, submissa.
Assim, o corpo é fragmentado em enquadramentos fechados na boca, nos seios, na bunda das atrizes, que também costumam ser orientadas pelos diretores a gemer e fazer expressões bem pouco naturais diante das câmeras. “Eu simplesmente não estou mais interessada em fazer isso”, afirmou Keira durante a conversa.
Na ocasião, ela também relembrou o início da carreira, época em que a insegurança e a falta de experiência a impediam de negociar com um staff masculino. “Quando eu era mais jovem, só fazia o que me mandavam. E, se me sentisse desconfortável, eu [pensava]: ops, estou desconfortável, mas não tenho voz aqui”, disse.
A brasileira Tainá Müller, protagonista da série “Bom dia, Verônica”, da Netflix, conta ter vivido experiências semelhantes. “Quando comecei, havia um mito de que boa atriz é aquela que ‘se joga’ nessas cenas, sem pudor algum, sem questionar. Só que rapidamente eu entendi que não tem a ver com pudor ou entrega, mas em saber se o seu corpo está ali a serviço da história da personagem ou do olhar voyeurista patriarcal”.
Sexo só com proteção
“Para os homens o corpo feminino ainda é visto como algo público, que deve estar disponível para ser tocado, receber carinho mesmo sem querer”, diz a cineasta Paula Alves, curadora do festival Femina, de cinema feminino. “Por isso é preciso repensar as relações de poder, estabelecer novas regras e aumentar a representatividade feminina e de outros grupos nas equipes”.
Em setembro, a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood anunciou novos critérios para os filmes que concorrerão ao Oscar. Eles passam a vigorar a partir de 2024 e têm como meta aumentar diversidade de raça, gênero e etnia.
Para garantir o conforto de atrizes e atores, surgiu uma nova função no set: “coordenador de intimidade”. Trata-se de uma pessoa que está presente durante as gravações para controlar excessos da direção, sobretudo a masculina, em cenas que envolvem contato físico, nudez ou simulações de sexo. Séries da HBO e Netflix, como o sucesso “Bridgerton’s”, já contam com figuras assim. E a demanda vem crescendo.
Para os homens o corpo feminino ainda é visto como algo público, que deve estar disponível para ser tocado, receber carinho mesmo sem querer
No ano passado, o sindicato de atores americano publicou um documento com regras de conduta nos sets para evitar abusos. Entre elas está a obrigatoriedade de informar atores e atrizes sobre cenas de nudez ou sexo no roteiro antes da contratação e a proibição de atos sexuais de fato nos sets. O material funciona também como um guia de conduta para coordenadores e coordenadoras de intimidade.
Medidas assim tomaram corpo graças aos movimentos #Metoo e Time’s up, que deflagraram uma cascata de denúncias de assédio praticadas pelo magnata do cinema Harvey Weinstein. Mais de 80 mulheres, incluindo celebridades como Gwyneth Paltrow, Angelina Jolie e Cara Delevingne, fizeram declarações contra ele. Há um ano, em fevereiro de 2020, o ex-produtor foi condenado a 23 anos de prisão pelos crimes de estupro em terceiro grau e por ato sexual criminoso em terceiro grau.
Weinstein, Kechiche e Bertolucci
Weinstein descende de uma linhagem de nomões do cinema que parecem ignorar os limites entre realidade e fantasia e impõem a atrizes seus desejos e vontades como se fossem seres de ficção.
Vencedor do Palma de Ouro, em Cannes, “Azul é a Cor mais Quente” (2013) ficou famoso também pelas declarações das protagonistas Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux. A dupla denunciou os excessos do diretor Abdellatif Kechiche durante as gravações, sobretudo a cena de sete minutos de sexo entre as duas. Adèle afirmou ter se sentido explorada e Léa, uma prostituta depois de passar horas gravando e fingindo orgasmos.
A produção também recebeu críticas quanto à forma da cena. “Foi claramente feita para matar a curiosidade de homens que não sabem como é possível fazer sexo sem penetração”, diz a socióloga Paloma Coelho, pós-doutoranda da Fiocruz MG, que pesquisa relações de gênero, corpo e sexualidade no cinema.
Outro que se tornou clássico não só pelos atributos estéticos é “O Último Tango em Paris” (1972), de Bernardo Bertolucci (1941-2018). Anos depois de ser exibida nos cinemas, a obra voltou aos holofotes em 2007, quando a estrela do filme Maria Schneider (1952-2011) rompeu o silêncio e contou o que viveu, aos 19 anos, para fazer o que ficou conhecida com “a cena da manteiga”.
Nela, Marlon Brando, de fato estupra Schneider. Poderia ser sexo simulado – os espectadores nem vêm o ator abrir a braguilha da calça –, mas ele usa um tablete de manteiga como lubrificante antes de espremer a atriz de costas, contra o chão, segurando seus braços abertos.
A atriz, no entanto, não havia sido avisada sobre o que aconteceria. “Durante a cena, mesmo não sendo real o que o Marlon estava fazendo, as minhas lágrimas eram reais. Senti-me humilhada e, para ser honesta, senti-me quase violada, tanto por Marlon como por Bertolucci”, disse em entrevista ao jornal Daily Mirror.
O silêncio sobre o que Bertolucci chegou a chamar de “detalhe da manteiga” era proposital e estava acordado entre ele e Brando desde a manhã que antecedeu a gravação. Foi o que o diretor contou anos depois da morte de Maria, durante uma entrevista em que também disse se sentir culpado pelo que fez, porém não arrependido.
“Para fazer filmes, algumas vezes, para obter algo, eu acho que a gente tem que ser completamente livre. Eu não queria que Maria atuasse a humilhação dela, a raiva. Eu queria que ela sentisse”, afirmou o diretor que faleceu em 2018 sem nunca ter sido incriminado pelo que fez.
Personagens são pessoas
A liberdade em nome da arte não é um argumento de defesa só de Bertolucci. Ele é frequente e coloca em xeque as mentes mais progressistas. Discutir as condições em que as cenas são gravadas, porém, não precisa ser sinônimo de censura ou coibição. Trata-se, apenas, de esclarecer o que está em jogo na produção da obra. E o cinema ou a TV têm lá suas especificidades.
Ao contrário da literatura, em que personagens ganham vida na experiência de quem lê por meio das palavras no texto, no cinema ou na TV, personagens, “em regra generalíssima, são encarnadas por pessoas. Essa circunstância retira do cinema, arte de presenças excessivas, a liberdade fluida com que o romance comunica suas personagens aos leitores”, escreveu Paulo Emílio Salles Gomes, no ensaio “A Personagem Cinematográfica” (2002).
E pessoas, precisamos lembrar do óbvio, não são obras de arte. São cidadãs com direitos que deveriam ser garantidos. Incluindo, aí, o de se sentir à vontade para dizer o que aceita ou não fazer em nome da arte. “Não seria preciso discutir excessos da direção se pudéssemos conversar abertamente e com naturalidade sobre as condições em que as cenas serão gravadas, o que é mais fácil entre mulheres”, afirma Juliana Schalch.
Lost in translation
Além de desafiar os limites entre liberdade de expressão e abuso, o assunto recai sobre outra confusão: a ideia de que para mostrar sexo, fazer o espectador sentir atração pelas personagens ou mesmo ficar com tesão é preciso que os atores em cena e quem dirige sinta tudo isso também.
Acontece, mas não é necessário. Há artifícios técnicos que garantem a realização sem excessos. Ainda que a direção esteja nas mãos de um homem. Um bom exemplo é “Divino amor” (2019), de Gabriel Mascaro. Na produção brasileira, Dira Paes é Joana, que usa sua posição de escrivã em um cartório para dissuadir casais da ideia de divórcio. A estratégia é atraí-los para fazer parte de uma igreja onde muitas coisas são partilhadas, inclusive o sexo.
A história inclui uma cena de suíngue em que quatro atores, entre eles, Dira, aparecem completamente nus em um quarto com iluminação avermelhada, uma cama e um sofá. Para espectadores desavisados, parece sexo explícito. Um olhar mais apurado, no entanto, percebe as escolhas cuidadosas da direção.
Em momento algum a câmera fecha nos corpos. Pelo contrário, à medida em que a relação entre os casais aquece, o enquadramento vai se abrindo. O clima de pornô fica por conta da cobertura de áudio da cena, marcada por gemidos, sons de corpos se chocando e respirações ofegantes.
Só quando precisa
Anna Muylaert tem quase três décadas de carreira e apenas duas cenas de sexo em sua filmografia. “Só faço quando são necessárias”, diz. Uma das vezes em que precisou foi na abertura de “Mãe só há uma” (2016), em que o personagem Pierre (Naomi Nero), um adolescente homossexual, transa com uma garota no banheiro de uma festa. A câmera vai do beijo, passando pelo peito da moça e desce até a bunda do rapaz, que usa uma cinta liga.
“Ali era supernecessário. Eu tinha que mostrar que ele tinha dupla identidade: uma por cima e outra por baixo da roupa”, afirma.
O próximo filme de Anna, “Clube das Mulheres de Negócio”, também vai precisar de cenas de sexo. Serão duas, ambas vividas pela mesma personagem: uma ninfomaníaca de 80 anos. “Quem topa isso? Algumas topam numa boa, outras não. Existem pessoas que têm uma naturalidade com a nudez. Então tudo começa na escolha”, diz a diretora, que escalou Ítala Nandi para encarar o desafio.
Faça o que tiver vontade
Com seis décadas de carreira, Ítala carrega parte importante da história das artes dramáticas no Brasil. Em seu repertório tem nada menos do que o primeiro nu do teatro brasileiro. E não um nu qualquer. Foi em uma peça de Bertold Brecht, “Na selva das cidades”, dirigida por José Celso Martinez Corrêa, no Teatro Oficina, quando a nudez ainda não era tão presente nas montagens do diretor.
Na história, a personagem de Ítala, Maria, é uma prostituta que se apaixona perdidamente. “Ficar nua foi a forma mais bonita que ela encontrou de demonstrar seu amor”, diz a atriz, que, na cena, deixava cair um quimono de cetim desenhado por Lina Bo Bardi.
Era 1969 e os censores da ditadura militar circulavam pelos ensaios para liberar ou não as produções. “Quando um deles, o doutor Coelho, veio nos assistir, fiquei aflita e perguntei ao Zé Celso o que deveria fazer. Ele respondeu: ‘faça o que tiver vontade’. Eu fiquei nua e, mesmo assim, a peça passou. Para mim, nudez é sinônimo de pureza”.