As consequências da pandemia para a educação — Gama Revista

Educação

Quais são as consequências da pandemia para a educação?

O fechamento das escolas e o ensino remoto durante a pandemia impôs desafios para estudantes, pais e professores. Gama ouviu especialistas sobre os impactos deste período para a educação no país

Mariana Payno 01 de Setembro de 2020

“A função da escola é também a de tecimento de relações”

Ilana Katz é psicanalista e pesquisadora na área da infância

  • G |Quais são os efeitos para a saúde mental das crianças e dos adolescentes por ficarem tanto tempo longe da escola?

    Ilana Katz |

    É muito difícil dizer o que acontece com cada um, mas sabemos que a suspensão das alternâncias reguladoras da nossa vida — entre o que é público e o que é privado, entre dentro e fora de casa, com e sem família, com e sem amigos — tem efeitos muito ruins. A alternância é muito mais do que um esquema de organização da vida, é uma operação que tece a nossa subjetividade. E aí a gente percebe alterações importantes de jeitos: crianças mais agitadas ficam mais amuadas, as mais calmas podem ficar mais entristecidas ou muito agitadas, quem falava pouco passa a falar um montão, quem estava começando a falar de repente para. Agora, se eu precisasse apontar um grupo etário de altíssimo grau de sofrimento, seriam os adolescentes. São pessoas que vieram se preparando para se separar dos seus primeiros Outros de referência, para fazer o passo na direção de ampliação do uso do espaço público, de novas relações. [Este momento] é absolutamente violento para eles.

  • G |Houve uma transformação na forma como a comunidade se relaciona com a escola?

    I.K. |

    Estes quase seis meses sem uma escola para ir tiveram efeitos em onda na relação da comunidade com a escola. No primeiro impacto, ficamos preocupado com a perda de conteúdo, mas muito rapidamente fomos entendendo o que a gente realmente perde. Entre todas as coisas que se perdem, o conteúdo é a mais facilmente recuperável. Então, começou a aparecer com mais nitidez como uma escola faz falta na experiência dos estudantes, na relação com as famílias, no seu lugar de tecido social. E isso foi tornando mais nítido também qual é o seu mandato: para que serve uma escola? É por isso que a educação remota tem também seus limites. O conteúdo que se pode fazer chegar à distância é diferente de quando ele é tecido presencialmente. E isso se dá porque a função da escola é também a de tecimento de relações, um valor absolutamente fundamental na experiência da vida de todas as pessoas.

“Em um cenário de crise econômica, o trabalho infantil cresce, e ele está muito relacionado com o processo de exclusão da vida escolar”

Andressa Pellanda é coordenadora geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

  • G |Sabemos que os desafios das escolas públicas são diferentes dos das escolas privadas. O que este momento trará para as desigualdades de ensino no Brasil?

    Andressa Pellanda |

    Entre as redes públicas do Brasil já existe uma disparidade. Existem redes em cidades e em estados mais ricos que já apresentam resposta educacional melhor à pandemia, mas há redes que se encontram em uma situação muito aquém do que se poderia chamar educação de qualidade mesmo em tempos “normais”. Quando a gente fala de escolas privadas, também existe disparidade. Várias escolas privadas são de baixa qualidade, com muito menos insumos e muitas vezes menor qualidade que as escolas públicas. E, mais do que isso, é preciso olhar para o lugar socioeconômico desses estudantes. A situação familiar e todas as condições socioeconômicas impactam significativamente no processo educacional. As famílias cujos filhos estão em escolas privadas, de maior qualidade, com certeza vão enfrentar melhor o desafio da pandemia porque elas têm suporte emocional, psicossocial e financeiro para aqueles estudantes — o que muitas famílias periféricas, de lugares remotos e marginalizados, não vão ter.

  • G |A evasão escolar é uma consequência relevante da pandemia?

    A.P. |

    A gente chama a questão da evasão escolar de exclusão escolar — porque evasão pressupõe que o estudante quis sair da escola, e na verdade boa parte dos processos de evasão é devida à falta de estrutura social da família ou da própria escola. Na pandemia a gente tem visto muito mais isso, não só por conta das dificuldades da própria educação, mas por causa da crise econômica. Muitos estudantes saem da escola para ajudar em casa com o trabalho infantil, de forma a complementar a renda ou às vezes até virar a renda da família. Toda vez que temos um cenário de crise econômica, o trabalho infantil cresce. E ele está muito relacionado com o processo de exclusão da vida escolar. Às vezes a criança vai para a escola, participa da atividade, mas no contraturno está trabalhando e não consegue ter um aproveitamento da educação porque está trabalhando, e isso cansa.

“As escolas não estavam preparadas para incluir crianças e adolescentes com deficiência”

Ivone Santana é consultora em diversidade e inclusão e fundadora do Instituto Modo Parités

  • G |Quais são as consequências da pandemia para a educação das pessoas com deficiência?

    Ivone Santana |

    A gente pode falar que as escolas, em geral, não estavam preparadas para incluir as crianças e adolescentes com deficiência. Já não eram um ambiente acessível e, quando você passa para o ambiente digital, as crianças surdas, com deficiência intelectual ou até mesmo cegas precisam ter recursos de acessibilidade específicos para conseguir estudar e ter acesso ao conteúdo da escola: intérpretes de libras, imagens acessíveis para o leitor de tela, adaptação de texto, linguagem e forma de trabalho. Outro aspecto é que as pessoas com deficiência também fazem parte da maioria da população, que é de baixa renda. Muitas não tem notebook ou computador em casa. De fato, a pandemia acentuou muito a gravidade da exclusão.

  • G |Dá para falar em algum impacto positivo para a inclusão no contexto do ensino remoto?

    I.S. |

    Vejo este momento como uma oportunidade muito grande para que as escolas deem um salto quântico e façam uma mudança rapidamente no sentido de olhar para todas as crianças em suas particularidades. E, então, reinventem as formas de educação, considerando as singularidades e criando recursos acessíveis definitivos. Por exemplo, ter tradução simultânea para libras em todas as aulas.

“Às vezes a escola é justamente o momento de descanso das telas”

Wellington Soares é coordenador pedagógico e de projetos da Nova Escola

  • G |As dificuldades da educação remota repercutem de maneira diferente em idades e séries diferentes?

    Wellington Soares |

    Os pontos que despertam mais atenção são os anos de transição do fim de um ciclo e começo do outro: começo do ensino fundamental, fim do ensino fundamental, começo do ensino médio. Para quem está chegando houve muito pouco tempo de adaptação sobre como funciona a escola, como são as novas atividades, os professores, a própria turma. Se acostumar a isso já é difícil presencialmente, então passar por esses anos de transição no ensino remoto é um ajuste duplo. Fora isso, tem aspectos próprios da idade, do comportamento, de como os alunos vivem e convivem em casa. Para crianças menores é muito importante poder conviver com os colegas e aprender. Quanto menores as crianças, mais importante é a brincadeira e ficar menos em frente às telas — às vezes a escola é justamente o momento de descanso das telas para poder brincar, explorar materiais e espaços. E para os mais velhos tem a questão de convivência com a família, com os pares. O desenvolvimento do lado socioemocional afeta todos os alunos.

  • G | Podemos tirar alguma boa lição deste período?

    W.S. |

    Sem sombra de dúvidas a relação entre escola e pais mudou bastante, principalmente na visão. Os pais estão conseguindo enxergar o quão difícil é o trabalho da escola e dos professores. Existe um estigma de que o trabalho do professor é relativamente fácil, que qualquer um pode fazer — algo que faz parte do discurso de desvalorização da carreira que afeta tantos profissionais. Agora temos esse momento de valorizar a profissão, e vai ser importante saber aproveitar isso, manter esse reconhecimento para construir uma nova relação. Já as crianças estão crescendo muito, dentro das famílias em que é possível aprender de um jeito diferente, mais autônomo. Elas estão aprendendo a não depender só do professor passando conteúdo, e os professores também têm que reinventar as estratégias para colocar as crianças no centro da aprendizagem. Esse jeito novo de ensinar e de aprender é algo que pode ser muito positivo se a gente conseguir manter na retomada para as aulas presenciais. Mas por mais que haja legados interessantes, é uma situação que tem sido muito difícil para todo mundo. O saldo negativo para a sociedade é muito maior.

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