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Conversas‘Sem pia suja não tem alimentação saudável’
Rita Lobo, estrela máxima da cozinha prática na TV brasileira e fundadora do Panelinha, acredita que vivemos uma revolução silenciosa que mudará definitivamente nossa relação com a comida
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‘Sem pia suja não tem alimentação saudável’
Rita Lobo, estrela máxima da cozinha prática na TV brasileira e fundadora do Panelinha, acredita que vivemos uma revolução silenciosa que mudará definitivamente nossa relação com a comida
A revolução de Rita Lobo está sendo televisionada — e também transmitida pelo Youtube. Com o isolamento social trazido pela pandemia do coronavírus, ela encarou, possívelmente, a missão de sua vida: ensinar a mais e mais brasileiros que jamais tinham encarado o fogão na vida a preparar suas refeições do zero. Com o filho Gabriel, de 17 anos, operando a câmera e o marido e sócio, Ilan Kow, fazendo a captação de som, transformou a cozinha de casa em estúdio. Leva 12 horas para gravar o que em tempos normais levaria quatro, mas não esmorece. Otimista, acredita que nossa relação com a alimentação nunca mais será a mesma.
Defensora de longa data da comida caseira, livre de conservantes e outros químicos comuns aos ultraprocessados, ela também joga luz para as hortaliças, seguindo a atual corrente da redução do consumo de carne. Fala também que lugar de homem é na cozinha junto às mulheres (arrepiando os “machos” do Twitter), afirmando-se como uma figura política cujo interesse está na vida doméstica e na alimentação.
A comemoração dos 20 anos do Panelinha, sua plataforma multimídia que inclui site de receitas, canal de vídeos, editora de livros e produtora de TV, celebrados durante a pandemia do coronavírus, teve que ser cancelada. “O que a quarentena mostra pra gente é que não dá pra planejar nada. É um momento em que a gente tem que ficar muito atento ao dia a dia. E vai construindo a partir daí.”
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G |Você foi muito ágil quando começou o período do isolamento social, montando uma operação caseira supereficiente com receitas, vídeos, tudo no Panelinha. Você diria que abraçou uma missão na quarentena?
Rita Lobo |Fomos bem ágeis porque fazemos isso há 20 anos. E esse é um momento em que tudo que a gente fala e demonstra na prática ganha mais relevância. O que você come nem sempre passa por escolhas conscientes — muitas vezes você nem se dá conta que quem escolheu o que tá no seu prato foi a indústria de ultraprocessados. Por 20 anos, no Panelinha, aprendemos a tirar os obstáculos para que as pessoas possam entrar na cozinha com mais facilidade. Cozinhar não é só mexer a cebola na panela — é pensar, comprar e armazenar. É cozinhar mais para não ter que cozinhar do zero. É saber lavar a louça: primeiro os copos, depois os talheres, depois os pratos, depois as panelas. Há duas coisas, em termos de trabalho, positivas. Eu sei falar sobre alimentação e ensinar a cozinhar, e eu sei produzir conteúdo. Mesmo num esquema caseiro, a gente consegue produzir um programa de meia hora de televisão em uma semana.
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G |Que impacto a quarentena teve no tipo de comida que as pessoas fazem em casa? Sentiu diferença nas buscas?
RL |Quando a pandemia começou, eu propus pros meus seguidores que a gente resgatasse a dieta brasileira. Tradicionalmente, o que os brasileiros comiam no dia a dia era arroz, feijão, duas hortaliças e muito pouco de carne. Isso porque carne é caro. Eu propus muito rapidamente isso. Teve gente que reclamou que não fiz nenhuma carne [nessa temporada a ideia era explorar as hortaliças, parte da campanha de Rita para estimular alimentação saudável]; teve gente que agradeceu; e teve gente que entendeu que não comer carne numa refeição não significa que você precisa parar de comer carne. Tendo o arroz com feijão, que já é uma baita fonte de proteína, você não precisa comer carne e o dia a dia fica mais fácil. E amanhã? Arroz, feijão, duas hortaliças. Então isso já traz uma tranquilidade, que é tudo o que a gente precisa em tempos de caos. A gente precisa de alguma certeza, confortos, e a cozinha e a comida trazem isso. Agora, quem não sabia cozinhar, se entupiu de macarrão.
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G |O comfort food na pandemia parece ter virado uma religião, todo mundo assando pão, fazendo bolo. O que é o comfort food no Brasil?
RL |Logo no começo, acabou o fermento de bolo no mercado, né? O comfort food é um conceito importado de um lugar onde não há um padrão alimentar. Nos Estados Unidos, diferentemente do Brasil, não existe uma dieta tradicional, assim como existe no Japão, na França, por exemplo. O que o brasileiro come? O brasileiro come arroz com feijão. Sabe, tem os pratos regionais, mas tem um acordo em comum em todos os lugares do país. Nos Estados Unidos não tem. E lá, o comfort food tem a ver com aquela comida que a mãe fazia uma vez por semana, fosse a lasanha, fosse outra coisa. Então pra gente é difícil comparar comfort food. Fica parecendo que é larica.
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G |Acha que a relação das pessoas com a alimentação vai mudar?
RL |Eu apostaria que sim, e apostaria dinheiro inclusive (risos). Essa relação está sendo transformada de forma definitiva. Quem começou a cozinhar na quarentena está vendo que não é um bicho de sete cabeças. Não é dom, não é arte, é aprendizado. Você aprende assim como você aprende a ler e a escrever. E quem já cozinhava ficou mais tempo na cozinha e descobriu que é também um lugar de refúgio, onde você se blinda do caos externo. Na cozinha você é obrigado a ficar num estado quase meditativo, é preciso prestar atenção no que você está fazendo, desconectar do mundo, ficar ali presente no momento. Tem outro ponto: cozinhar em casa é, obviamente, mais econômico. Ao basear sua alimentação na dieta brasileira, simbolizada pelo arroz com feijão, você gasta menos (e acho que nem vamos voltar a comer tanto fora). E tem um quarto ponto: a sua alimentação fica tão melhor que você perde peso, fica mais saudável. Então são tantos ganhos que, pra quem começou a cozinhar, muda de forma definitiva a relação com a comida.
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G |E quem ainda não está cozinhando?
RL |Eu acompanhei uma mudança gigantesca na relação das pessoas com a comida desde o começo do Panelinha. E o que nem todo mundo se dá conta é que a gente, querendo ou não, é impactado por bilhões que são investidos em marketing para dizer o que você deve comer. Você não pode comer gordura, a gordura engorda. Mas as pessoas começaram a comer fat free e engordaram muito mais. Não, o problema é o açúcar, tem que comer tudo diet. Depois tem que tirar a caloria, o carboidrato, o glúten. Agora tudo tem que ser orgânico. Aí a pessoa compra um ultraprocessado cheio de aditivos químicos mas que traz a palavra “orgânico” no rótulo porque, lá atrás, a laranja que foi usada pra fazer aquele bolo de caixinha era orgânica. A noção de muita gente sobre o que é comida saudável é regida pela indústria de ultraprocessados. É por que as pessoas são burras? Não. É porque o sistema alimentar mudou completamente, e as pessoas não se deram conta. Muita gente já vê que não faz sentido, a cada seis meses, mudar o jeito de comer. Especialmente no Brasil, onde o que se come há centenas de anos dá certo. A gente tem dois problemas em relação à alimentação do Brasil. Um é econômico. As pessoas morriam de fome porque não tinham dinheiro para comprar comida. E a partir da década de 1990 a população vai se afastando do fogão, da cozinha, e troca a comida caseira por comida pronta, por junk food, e os índices de obesidade somadas aos de sobrepeso no país disparam, chegando a 57% hoje. A gente precisa parar para pensar sobre as escolhas que a gente faz, saber diferenciar a comida de verdade da imitação de comida, e quando você entende que você tem que excluir os ultraprocessados, fica clara a importância de cozinhar.
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G |E como fazer isso funcionar?
RL |A gente precisa voltar para uma alimentação mais parecida com a dos nossos avós, mas não dá pra voltar no tempo. A alimentação não pode ser responsabilidade da mulher. Essa perspectiva masculina de que a alimentação é uma doação, é amor – é ultrapassado. A família inteira tem que ser responsável pela alimentação, por pensar, por comprar, por preparar, por lavar a louça, por guardar. A cozinha era um lugar de confinamento feminino. As mulheres não cozinhavam porque elas achavam lindo, mas porque era a única coisa que elas tinham que fazer. O mundo mudou e precisamos voltar para a cozinha como sociedade, para garantir saúde da população, porque a alternativa que a gente tem hoje para manter a alimentação saudável é a comida caseira. Talvez um dia isso mude, mas hoje, quem quer manter a alimentação saudável necessariamente precisa de pia suja. Sem pia suja não tem alimentação saudável.
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G |Você tem até o livro para cozinhar a quatro mãos, que parece ser justamente para tirar a mulher desse lugar. Estamos longe ou mais próximos disso?
RL |Eu acho que tem 30% bem longe (risos). Eu diria que uma parte gigantesca do meu público é de gente que entendeu a importância da alimentação e está se organizando, não só durante a quarentena. Esse livro que você falou, o “Cozinha a Quatro Mãos” (Panelinha, 2018), é justamente pensando nos jovens casais. A alimentação tem que ser responsabilidade dos dois. Isso vale não só para casais héteros. Mas é pensando, sim, que isso vem da ideia de que a cozinha era uma obrigação da mulher, e é insustentável isso hoje. Não dá, a mulher trabalha, e também é responsável financeiramente pela família, e ainda tem que dar conta da casa inteira. No Brasil, os números do IBGE mostram, as mulheres continuam responsáveis, na maioria da população, pela alimentação da casa. Tem um pensamento conservador que quer muito que continue assim. Mas eu acho que pega mal hoje em dia a pessoa falar “eu não sei nem fritar ovo”. Mostra várias coisas: que tem alguém cozinhando pra ela ou que ela está sobrecarregando uma pessoa. Mostra também uma desconexão com a própria alimentação. Se você não sabe cozinhar, fica mais difícil de fazer escolhas. Eu pessoalmente não consigo enxergar alimentação saudável sem ser uma coisa da casa. Se for sobrecarregando a mulher, não dá pra ser saudável. Daí é muito divertido no Twitter, quando eu falo alguma coisa em relação a feminismo, os machos… Projetam em mim um monte de coisa que eu não sou, e quando percebem o que eu sou, eles ficam com ódio de mim.
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G |Você se diverte um pouco com isso, Rita?
RL |Eu me divirto bastante. (Risos)
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G |A preocupação de tornar a cozinha um assunto de família e a campanha que você abraçou contra os ultraprocessados te tornaram uma figura política. Você se sente assim?
RL |É uma coisa muito curiosa porque eu não sou da hashtag da semana, sabe? Eu não fico me envolvendo com todas as causas que precisam… Mas eu acho que eu faço mais política do que muita gente. No meu lugar, não existe maior posicionamento do que levantar a bandeira da comida de verdade contra os ultraprocessados. Só não enxerga quem não quer.
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G |Mas e outras causas dentro da cozinha, como a questão do consumo de carne, que também diz respeito a meio-ambiente. Você entra nesse debate?
RL |Sim, totalmente. É tudo junto. Não dá pra gente comer o tanto de carne que a gente come. Seja pelo planeta, pela saúde da população, pela saúde individual, pela saúde financeira. É insustentável. E o pior, esse tanto de carne a mais… Esse tanto de carne produzida, que é uma questão para o planeta, não é para as pessoas comerem bife. É para fazer o ultraprocessado. Tem lugar pra tudo, pra fazer ativismo de todas as formas. O meu jeito de fazer as coisas é ensinando na prática. Tá, tirando carne o que eu como? Arroz, feijão e duas hortaliças por dia na hora do almoço. Com isso, você resolve várias questões na sua vida. A alimentação fica saudável, saborosa, variada, o que é fundamental porque você aumenta o leque de nutrientes que você está consumindo.
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G |E como é a resposta das pessoas?
RL |A gente tá numa fase de radicalismo, né? É um filme de terror de quinta categoria. Porque no Brasil é uma questão dupla, não é só a quarentena. Em primeiro lugar temos que cuidar da gente, e cuidar da gente é cuidar da alimentação, da saúde mental e ter um pouco de distanciamento pra olhar pras coisas. “Isso não tem nada a ver comigo, o cara é ignorante, o problema não sou eu. É ele.” Isso eu dou risada. Mas enfim, comecei a fazer as lives com as hortaliças e imediatamente as pessoas queriam entender se eu virei vegetariana. Não dá pra você falar pras pessoas apenas inclua mais hortaliças, vou te mostrar como. É tudo muito radical, sei lá o que aconteceu conosco.
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G |Como você teve o estalo de que a cozinha tem que ser uma coisa prática?
RL |Aprendi a cozinhar com 20 anos de idade. Eu não sabia fazer nada. Fui estudar fora e achei que seria importante aprender a cozinhar. E aí fiquei fascinada. E tudo o que eu aprendo que é muito legal eu quero que as pessoas aprendam logo também. E comecei muito com essa pegada, de “olha como cozinhar é um prazer”. Só que o Panelinha foi crescendo, foi virando um site referência, a audiência foi ficando muito grande e em um determinando momento eu entendi que a minha perspectiva pessoal não funcionava para todas as pessoas. Eu as ajudaria também contando como deixar a cozinha mais prática. Fui deixando cada vez mais o meu gosto pessoal de lado. E olhando para o todo. E sei também o que funciona para a alimentação da população brasileira com base em dados do IBGE, das pesquisas de orçamentos familiares. Temos convênio com o Nupens (Núcleo De Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde) da USP, que sem dúvida é o grupo de pesquisadores sobre alimentação mais importante no mundo hoje. E a partir desse trabalho, a gente foi entendendo também que a alimentação não é um bloco, uma coisa única e igual para todo mundo. Ela fica muito diferente dependendo do seu perfil de núcleo familiar. As questões de quem morar sozinho são diferentes de quem tem três adolescentes em casa. A dispensa está sempre esvaziando. Uma vez que o público cresceu, entendi as necessidades de cada perfil para indicar as soluções.
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G |E você acha que esse foi o ponto de virada do Panelinha? O que você acha que foi o maior acerto do projeto e o pior erro nesses 20 anos?
RL |A quarentena foi um momento importante para audiência. Mas o Panelinha foi o primeiro site de receitas testadas para a internet. Parece bobagem, mas pensa o seguinte: antes, a gente escrevia receita para caber em um espaço determinado de papel. Você tinha que deixar muitas informações de lado porque não cabia. Isso é uma coisa que me orgulha, eu acho que eu inventei um método de escrever receitas. Com isso, consegui embutir no passo a passo a técnica culinária. É por isso que as pessoas aprendem a cozinhar com o Panelinha e nem percebem. Eu falo que a gente faz uma revolução silenciosa, porque a gente muda a alimentação da pessoa, muda os hábitos da casa, mas é uma coisa que fica contida, a pessoa conta no máximo para outras duas.
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G |Mas tem alguma coisa nessa trajetória de 20 anos que você teria feito diferente? Que você avalia como uma bola fora?
RL |Acho que a gente erra e acerta. Sempre dá pra fazer melhor. Eu sou extremamente crítica e insatisfeita com tudo o que eu faço. E estou vendo as coisas com a equipe e sempre faço cara de que podia estar melhor.
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G |Mas isso é sofrido, não?
RL |Eu sou assim. (risos). Super insatisfeita. Super. Super. Eu acho que a minha pessoa pública, que as pessoas enxergam especialmente na televisão, não tem nada a ver com a empresária. Insatisfeita comigo também, podia estar melhor, podia ter… Nossa equipe é pequena, 20 pessoas no Panelinha, e tem tanta coisa rolando e acontecendo que hoje em dia tem uma questão de tempo. Eu preciso escolher muito bem o que eu vou fazer. Isso é uma coisa que é bem difícil, escolher o que vai fazer. São muitos caminhos. Enfim, mas aí já virou sessão de terapia. (risos)