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ReportagemPor que mães atípicas encontram mais barreiras para trabalhar?
A escassez de políticas públicas, o abandono paterno e a falta de oportunidades isolam e sobrecarregam mães no cuidado de filhos com deficiência
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Por que mães atípicas encontram mais barreiras para trabalhar?
A escassez de políticas públicas, o abandono paterno e a falta de oportunidades isolam e sobrecarregam mães no cuidado de filhos com deficiência
Felipe tinha um ano e oito meses quando foi diagnosticado com transtorno do espectro autista (TEA) nível dois. Um quadro que, segundo especialistas, apresenta déficit de comunicação e demanda um acompanhamento terapêutico especializado. “Eu não vivi o luto que a maioria dos pais vivem, muito carregado de todas as idealizações que fazemos para os nossos filhos. A vinda de um diagnóstico balança tudo, faz com que pensemos que eles estão sentenciados e predestinados ao fracasso”, conta a mãe, Mila Moreira, 37.
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A família do município de Camaçari (BA) ainda enfrentaria uma série de desafios. “Tive muito medo de como iria arcar com todas as terapias que a neuropediatra estava jogando no meu peito”, admite Moreira. Então secretária numa clínica de desenvolvimento infantil, ela precisou largar o emprego para se dedicar integralmente às necessidades do filho.
Pelo menos no início, a questão financeira não era um grande empecilho. O marido de Moreira e pai de Lipe conseguiu passar num concurso público, garantindo o sustento da família e a manutenção dos tratamentos. Isso até cerca de um ano atrás, quando ele entrou com um pedido de divórcio.
Hoje, além de contar com o auxílio de “mainha”, que constitui sua única rede de apoio, e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) — política do governo federal que oferece um salário mínimo a idosos e pessoas com deficiência —, Moreira conta que precisou acionar a Justiça para que o ex-marido pagasse a pensão.
É muito difícil dar conta de tantas despesas. Meu emocional está acabado
Devido à falta de um acompanhante especializado para atender Lipe, direito garantido por lei, ela também vem exercendo esse papel diariamente há quase dois anos na escola onde a criança, hoje com cinco, estuda. Essa demanda diária, unida à necessidade de levá-lo com frequência à terapia, faz com que Moreira viva cansada, sem tempo para procurar trabalho ou ter uma vida social.
“Minha vida está paralisada. Mainha tem 75 anos. Por conta da idade dela, evito pedir ajuda. Estou sempre me colocando em segundo, terceiro, quarto plano. Eu não consigo ir num shopping, num bar, num show, nem sair para resolver alguma coisa, porque não tenho com quem deixar meu filho”, desabafa.
“E é muito difícil dar conta de tantas despesas. Meu emocional está acabado. É muita solidão e estresse ter que lidar com tanta coisa, tomar tantas decisões sozinhas. É uma luta constante.”
Abandono
A participação no BBB 24 da modelo e confeiteira Fernanda Bande, mãe de uma criança autista, acendeu uma discussão nacional sobre os desafios enfrentados pelas mães atípicas no Brasil, da questão do trabalho ao abandono paterno. Mas as dificuldades que elas enfrentam vêm de muito tempo.
A situação vivida por Mila Moreira e o filho integra um quadro tristemente comum no país. Apesar da falta de dados atualizados sobre o tema, um estudo de 2012 do Instituto Baresi, voltado ao atendimento de pessoas com doenças raras e deficiência, indica que 78% dos pais acabam abandonando a família algum tempo depois que o o filho recebe o diagnóstico.
“Essas mulheres ficam sozinhas, sofrem ou um abandono efetivo ou um abandono emocional e financeiro”, frisa a consultora de diversidade Patrícia Salvatori, cuja filha sofre com a rara Síndrome de Prader Willi, com sintomas que podem incluir problemas de comportamento, deficiência intelectual e baixa estatura.
Essas mulheres ficam sozinhas, sofrem ou um abandono efetivo ou um abandono emocional e financeiro
“Geralmente, ou elas param de trabalhar para cuidar dos filhos ou acabam partindo para um empreendedorismo de necessidade. Sem preparo, aportes, conhecimento técnico, contatos, nada, vão literalmente vender o almoço para pagar a janta”, afirma ainda a consultora.
Para entender melhor a própria situação e a de outras mães atípicas, Salvatori acabou deixando para trás o trabalho no mundo corporativo, tornando-se professora universitária e pesquisadora, com uma tese de doutorado focada no tema. Em 2019, criou a rede Mães Atípicas, plataforma colaborativa que promove o empoderamento, qualificação e apoio ao empreendedorismo entre elas.
“Venderam o peixe de que precisa de uma aldeia inteira para criar uma criança, mas a maternidade, e principalmente a maternidade atípica, é profundamente solitária”, declara a especialista. “A ideia é fomentar esse convívio não só para que desabafem entre elas, mas para trocarem suas experiências enquanto mães atípicas e empreendedoras.”
Uma mãe atípica no BBB
No BBB, era comum ouvir a sister Fernanda Bande repetir o mantra de que estava ali pelos filhos — em especial pelo jovem Marcelo, de 11 anos, diagnosticado dentro do espectro autista. “Minha cobrança no programa era maior porque precisava ganhar por ele, ter um plano de saúde para ele, botar numa fono, numa terapia”, afirma a confeiteira e modelo.
“Tinha muitos medos, porque cheguei lá com o espírito de ter fracassado em vida. Não consegui prover o necessário para meu filho ter uma qualidade de vida básica, como qualquer outra pessoa. Então cheguei com o sentimento de ter perdido tudo.”
Como modelo, também era frequente que ela precisasse dispensar trabalhos devido aos cuidados com Marcelo. “Muitas vezes pedia o apoio do meu irmão para ir a um teste. Mas ele ainda era jovem, tinha que deixar de fazer as coisas dele”, lembra. Outra dificuldade era a falta de confiança em deixar a criança, que tem autismo não verbal, com outras pessoas. “Como descobrir se aconteceu algo ou não? Sempre foi meu maior medo, por isso nunca confiei em ninguém. Ou era meu irmão ou ninguém.”
Por precisar abrir mão constantemente de trabalhos e com a chegada posterior da filha Laura, ela acabou se vendo ilhada em casa sem uma fonte de renda fixa. E, como muitas outras mães, precisou empreender por si, transformando o hobby de cozinhar num trabalho de confeiteira. “No começo, ia fazer as entregas com a Laura no bebê conforto, com o Marcelo e segurando um bolo num ônibus ou Uber, porque era o que podia fazer. Ou era isso ou não trabalhava.”
Criticada por falas capacitistas dentro do BBB, chegando a classificar outra participante como “dodói” e mencionar a “falta de um cromossomo”, fora do confinamento Bande reconheceu a gravidade das declarações e se comprometeu a rever suas visões e comportamentos.
Outra fala da sister, de que certos dias dava “vontade de matar os filhos”, também gerou controvérsia, despertando um debate maior sobre a exaustão de mães e mães atípicas. Fora do confinamento, ela conta que é abordada frequentemente por outras mães para compartilhar experiências. “Muitas vieram me contar que estavam cansadas, que tinham medo, me agradecendo por falar certas coisas.”
Políticas para quem?
Na visão da deputada estadual Andréa Werner (PSB-SP), ativista pelos direitos das pessoas autistas, ainda há pouco em termos de políticas públicas sendo feito hoje para quem cuida de pessoas com deficiência. “Em Brasília, começaram a discutir uma Política Nacional de Cuidados, e a questão foi mencionada”, aponta Werner, que é mãe de um adolescente autista e que também descobriu recentemente estar dentro do espectro. A parlamentar se refere ao conjunto de propostas que vem sendo debatidas na Câmara dos Deputados, abordando desde o trabalho de mães e cuidadoras de pessoas com deficiências ou transtornos psicológicos até licenças parentais.
Segundo ela, os problemas se acumulam: faltam escolas integrais; o acesso à creche com horários estendidos, que permitiria às mães mais tempo para trabalhar, ainda é escasso em várias regiões; e, assim como no caso de Moreira, as redes escolares em muitos estados e municípios também não oferecem acompanhantes para as crianças.
Sem conseguir se manter no mercado formal, com um preconceito que vai desde as entrevistas de emprego — “Fiz até um teste: comentei numa entrevista de emprego que meu filho era autista. Nunca mais me ligaram”, conta Werner — até um dia a dia afetado por ausências constantes no ambiente profissional, muitas mulheres acabam dependendo exclusivamente do Benefício de Prestação Continuada. Só que, como ele é oferecido apenas à pessoa com deficiência, não dá segurança financeira alguma para a mãe.
“Ela nunca vai se recolocar no mercado”, argumenta a parlamentar. “Temos visto mães idosas que cuidam de filhos com deficiência a vida inteira e perdem o benefício quando eles morrem. Já recebemos denúncia de mãe indo morar na rua depois disso.”
“Temos visto mães idosas que cuidam de filhos com deficiência a vida inteira e perdem o benefício quando eles morrem”
A advogada Laura Nascimento, especializada no direito das pessoas com deficiência, aponta a existência de leis importantes, como a legislação federal que garante prioridade no trabalho remoto a pais ou responsáveis por pessoas com deficiência de qualquer idade. Também lembra que há projetos de lei sobre o tema, como o 2.391/23, hoje tramitando na Câmara dos Deputados, e que prevê assistência especial à mãe cujo filho recém-nascido tenha deficiência ou doença crônica que exija tratamento continuado. “Infelizmente, as poucas leis voltadas para mães de crianças com deficiência são esparsas e estaduais, variando de estado para estado”, afirma Nascimento, que é mãe de um menino com paralisia cerebral.
Hoje, algumas servidoras públicas que são mães atípicas também têm pedido a redução da jornada de trabalho, baseadas numa decisão favorável do STF sobre o tema. Segundo advogada, há propostas no Congresso até para alterar a CLT, que passaria a incluir esse direito. “Mas até o momento nenhuma foi convertida em lei”, afirma. Ela também classifica a judicialização como um caminho “desafiador” para essas mães. “Existem muitos desafios no processo, como complexidade e tempo, custos e desgaste emocional, mas a batalha judicial ainda é a única alternativa para muitas famílias”, considera.
Além da necessidade de judicializar o pedido, o direito à redução de jornada ainda pode vir acompanhado de represálias. “Semana passada recebi denúncia de uma mãe que conseguiu a redução, mas está sofrendo assédio moral no trabalho por sair mais cedo para levar o filho à terapia”, narra Werner.
Entre os principais projetos de lei para o estado de São Paulo, a parlamentar propõe uma renda fixa para o trabalho de cuidadora, além da criação de uma incubadora para empreendimentos desenvolvidos por mães atípicas e também incentivos a escolas do estado para contratar essas mães em funções como a de inspetora de alunos, apoiando sua empregabilidade. “A maternidade atípica é política. Só conseguimos mudar as coisas através de políticas públicas.”
O custo do cuidado
Depois que o filho Thomás, hoje com nove anos, foi diagnosticado com autismo, a jornalista Manuela Aquino, 48, continuou no cargo de editora na revista Cosmopolitan, então publicada no Brasil pela Abril, com o apoio de uma redação formada principalmente por profissionais mulheres. O fato de o marido trabalhar em casa permitia que a divisão de tarefas continuasse praticamente igual. Mas, além das idas constante à terapia, havia um ônus praticamente invisível. “Eu ficava na redação, mas o tempo todo incomodada por não poder acompanhar. Ele era muito pitico, tinha só três anos, um toquinho de gente”, conta a jornalista.
Ao sair do emprego numa demissão em massa na empresa, Aquino optou por passar seis meses cuidando exclusivamente de Thomás. “Claro que tive a possibilidade de parar, mas para muitas mães acaba não sendo uma opção”, admite. Hoje, o casal está divorciado e divide igualmente o tempo com o filho. Ela trabalha como freelancer em casa e não consegue mais se imaginar diariamente numa redação. “Provavelmente não ia mais acompanhá-lo, e ele é uma criança que precisa de acompanhamento próximo.”
Mesmo que trabalhar fora fosse opção, a logística e a parte financeira são pontos complicadores. “Eu teria que contratar uma assistente terapêutica para ficar com ele. Então precisaria trabalhar o dia inteiro, pagando um valor altíssimo sem poder acompanhá-lo”, reflete. Ainda assim, a mudança teve um impacto considerável. Com as demandas constantes do filho, a jornalista trabalha menos, ganha menos e tem custos por fora, como o plano de saúde. “Mas foi minha decisão e não me arrependo.”
O cálculo sobre o custo do cuidado é o que impede muitas mães de buscarem trabalho, já que, em muitos casos, a conta não fecha. Especialistas no tema apontam que a sobrecarga que muitas mães atípicas enfrentam também vem gerando problemas extras para sua saúde física e mental. Um estudo publicado pela revista norte-americana Journal of Autism and Developmental Disorders apontou que o nível de estresse de mães atípicas é muito maior que o de outras mães. Na verdade, ele fica próximo do enfrentado por combatentes durante a guerra.
Além da pressão com a saúde e os tratamentos do filho e da falta de mecanismos públicos para um atendimento adequado, ainda há uma preocupação latente em relação ao futuro. “Se o grande pesadelo da maioria das mães é a morte de um filho, para mães atípicas, o desespero é pensar em morrer e deixar o filho no mundo”, resume a consultora Patrícia Salvatori.
Embora haja poucos dados específicos sobre o tema no Brasil, pesquisas internacionais indicam que a taxa de mortalidade também é maior entre mães atípicas. Notícias recentes têm acendido um alerta para os efeitos da falta de apoio familiar, público ou de empresas privadas — planos de saúde, por exemplo, têm cancelado e descumprido contratos de pessoas com deficiência. “Volta e meia ficamos sabendo de casos de mulheres que matam os filhos e se matam, por desespero”, aponta Salvatori.
“Tudo é uma luta”
A consultora defende que oferecer oportunidades de trabalho para essas mãe as ajuda a se reconectar com o mundo. “Elas deixam de ficar presas dentro de casa, sem contato e sem dinheiro”, explica. Ela também afirma que até empresas consideradas exemplares na oferta de trabalho para mulheres oferecem pouco ou nenhum apoio às mães atípicas.
“Empresas adoram ostentar o selo Best Place do Work, mas ali mulheres só podem trabalhar se não forem mães nem mães atípicas. Aí precisa se desdobrar, enfrentar um burnout para manter o emprego”, declara Salvatori. “A mulher gira 25 pratinhos ao mesmo tempo, até que eles começam a cair.”
Há cerca de dois anos, ela conseguiu uma vaga para a filha Lari, hoje com 19, numa moradia assistida privada — a oferta de instituições públicas do tipo no Brasil ainda é muito escassa. O principal motivo, segundo Salvatori, foi o futuro da jovem, dar à filha a possibilidade de viver uma vida mais plena e autônoma.
Empresas adoram ostentar o selo Best Place do Work, mas ali mulheres só podem trabalhar se não forem mães nem mães atípicas
“Não tenho mais o cuidado diário da minha filha, o que ajuda muito a girar todos esses pratinhos. Mas é um desafio profundo, inclusive psicológico, porque precisei trabalhar muito em mim a questão da culpa”, conta a mãe, que faz visitas constantes e mantém contato frequente com a equipe da moradia. “Não abandonei minha filha, fiz o que é melhor para ela.”
Mila Moreira, mãe do Lipe, vem lutando por raros momentos de descanso numa rotina sem trégua, em que ela convive com doenças frequentes. “Quando chega quarta-feira, já estou exausta. Muitas vezes deixo de levá-lo à escola ou às terapias por conta do cansaço, que chega a adoecer meu corpo”, revela Moreira, que só consegue relaxar nos raros dias em que a mãe ou outra pessoa assume a tarefa de cuidar do pequeno. “Não existe inclusão nem para os nossos filhos e nem para nós. Estamos exaustas, e o sistema segue nos massacrando sem dó e sem pena.”
Como aponta a advogada Laura Nascimento, a discriminação quanto à disponibilidade e capacidade de trabalho das mães atípicas segue impedindo que muitas delas consigam trabalho formal. “E a necessidade de horários flexíveis, teletrabalho e licenças para cuidados especiais muitas vezes não é bem atendida pelas políticas de trabalho padrão”, declara a profissional. Hoje, mesmo direitos garantidos pela lei por vezes encontram resistência das instituições. “Existem casos em que tanto serviços de saúde do Estado quanto planos de saúde se recusam a atender crianças com necessidades especiais, especialmente quando são tratamentos de alto custo ou longa duração”, afirma.
Apesar do apoio recebido com a participação no BBB e os trabalhos que conseguiu através do programa, Fernanda Bande confessa que sua situação financeira hoje não é muito diferente de antes. “Nenhum pagamento cai na hora, tudo demora, mas é normal.” Ela vem correndo atrás de trabalhos e parcerias, na busca por garantir que o filho Marcelo volte a ter todos os tratamentos de que precisa — em certo ponto, o atendimento chegou a ser cortado por dificuldades financeiras.
“Agora, coisas que ao longo de uma vida inteira não consegui sozinha, tem gente para ajudar”, conta a confeiteira. “Nunca tive contato com a esperança. Sempre achava que estava ferrada, que tinha dado tudo errado. Agora sei que vai melhorar. Queria que todas as mães pudessem acreditar como eu que tudo vai dar certo.”
Por outro lado, a deputada Andréa Werner chegou a processar o governo de São Paulo para conseguir que um profissional especializado atendesse seu filho na sala de aula, direito que só foi conquistar recentemente. “Meu filho foi para a escola estadual sem apoio nenhum. Quando saiu a liminar garantindo o suporte, até gravei um vídeo chorando”, lembra. “Tudo é uma luta, nada cai fácil no colo da mãe atípica.”
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