Por que as mulheres são abandonadas quando estão vulneráveis? — Gama Revista
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Isabela Durão/WPA Federal Art Project

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Reportagem

Traição e abandono em momentos de vulnerabilidade

Condicionadas a cuidar desde a infância, mulheres ficam mais desamparadas em situações de extrema fragilidade, como durante o tratamento de um câncer, na velhice ou no puerpério

Ana Elisa Faria 06 de Agosto de 2023

Traição e abandono em momentos de vulnerabilidade

Ana Elisa Faria 06 de Agosto de 2023
Isabela Durão/WPA Federal Art Project

Condicionadas a cuidar desde a infância, mulheres ficam mais desamparadas em situações de extrema fragilidade, como durante o tratamento de um câncer, na velhice ou no puerpério

“A dor da decepção da traição não pode me paralisar. Dia após dia, eu me reconecto com a minha essência e volto a sorrir”, diz Preta Gil, em desabafo recente no Instagram sobre o delicado período atual em que vive, o divórcio em meio ao tratamento contra um câncer no intestino. Quando mais precisava, a cantora e empresária do ramo musical descobriu casos extraconjugais do personal trainer Rodrigo Godoy, com quem estava casada havia sete anos. Em entrevista à apresentadora Ana Maria Braga, ela comentou: “Quando a gente casa, o padre fala: ‘na alegria, na tristeza, na saúde e na doença’. Você não tem noção que nesse momento tão difícil vai se sentir desamparada”.

Biah Rodrigues, esposa do cantor sertanejo Sorocaba, foi traída pelo marido após o nascimento do primeiro filho do casal e enquanto se recuperava de uma cirurgia e da Covid-19. “Em seguida, veio um adultério. Chegou num momento muito difícil para mim porque eu estava totalmente debilitada, vulnerável, em uma situação de saúde”, revelou durante a participação em um culto.

No início de 2023, o ator Luis Navarro, companheiro da bailarina Ivi Pizzott, pediu um tempo à dançarina quatro meses depois do nascimento da segunda filha dos dois. “Eu me encontro confuso com a vida e tomei a decisão de reencontrar a minha essência, e, para isso, precisei dar um tempo no relacionamento. Não lembro a última vez que fiquei sozinho para refletir, que li um livro ou que me olhei no espelho e me orgulhasse de mim”, alegou, num post já deletado das redes sociais. Na época, a artista escreveu: “Tá difícil e eu não tive escolha”.

O que essas três histórias têm em comum? Em todas, as protagonistas atravessam fases de intensa vulnerabilidade e são traídas, abandonadas ou negligenciadas pelos respectivos parceiros, ações tão tristes quanto comuns. Famosas ou anônimas, milhares de mulheres passam por isso todos os anos, seja quando adoecem, ao engordar, na velhice, no puerpério.

Tanto que, em 2009, as universidades norte-americanas de Stanford e Utah, junto do Seattle Cancer Care Alliance, publicaram um estudo que mostrou que a mulher tem seis vezes mais chances de ser abandonada após a descoberta de uma doença grave. Ao observar por seis anos 515 pessoas, homens e mulheres, com câncer ou esclerose múltipla, os pesquisadores verificaram uma taxa de 11,6% de separação. No entanto, o índice de relacionamentos que acabaram quando a mulher ficou doente chegou a 20,8%. Já quando o homem enfrentou problemas de saúde, o número de términos diminuiu para 3%.

De acordo com os cientistas envolvidos com a pesquisa, esse cenário pode ser parcialmente explicado pela incapacidade que muitos homens têm de se ajustar rapidamente ao papel de cuidador, da casa e da família. O relatório também apresentou ligações entre idade e duração do casamento e a probabilidade de divórcio ou separação. Casamentos mais longos têm mais chances de continuarem estáveis, porém, quanto mais velha a mulher, mais provável o fim da parceria.

Inversão de papéis e o abandono na doença

Mastologista, presidente da regional São Paulo da Sociedade Brasileira de Mastologia e professor da Faculdade de Medicina de Botucatu, da Unesp, Eduardo Carvalho Pessoa está acostumado a atender pacientes com câncer de mama. O médico afirma que, embora não haja estudos recentes grandiosos acerca do assunto para comprovar cientificamente a tese, ele observa que no início do tratamento o cenário mais comum é a mulher comparecer às consultas acompanhada pelo parceiro ou por algum familiar.

Num segundo momento, entretanto, casos de desamparo ou de separação ocorrem mais frequentemente. Nesse estágio, quando as terapias estão sendo finalizadas e a vida anterior à doença começa a ser retomada, muitos divórcios acontecem. “É quando a gente vê que mais casais acabam se separando. Muitas mulheres seguem sozinhas. A tempestade do diagnóstico e do tratamento passa, as coisas vão se acalmando, e observamos que o distanciamento ou mesmo o abandono do parceiro é maior. É como se ele tivesse cumprido a parte dele naquela etapa inicial”, fala.

A tempestade passa e observamos que o abandono do parceiro é maior. É como se ele tivesse cumprido a parte dele na etapa inicial do tratamento

Pessoa ressalta, porém, que o abandono ou o término em comum acordo, normalmente, não são causados especificamente pelo câncer, mas são consequências de relacionamentos já desgastados ou anteriormente em crise e que chegam ao fim após esse grande trauma familiar e das vivências estressantes ocasionadas pela enfermidade.

A tudo isso soma-se outros fatores, como a sexualidade, que muda no decorrer dos procedimentos terapêuticos, e a imagem corporal da paciente, que pode ser alterada caso ela precise realizar a mastectomia.

A separação ou o abandono vão depender de como o casal vai administrar esses novos papéis na relação. Hoje, a força motriz de grande parte dos lares vem da mulher que, doente, precisa se ausentar e abandonar esse posto. Esse ciclo causa uma série de desequilíbrios, estresse e medo, além de levar a uma mudança de papéis dentro desse relacionamento. Então, é uma situação muito delicada”, reflete Pessoa.

A prateleira do cuidado ou quem cuida de quem cuida?

Valeska Zanello, psicóloga, professora do departamento de psicologia clínica da Universidade de Brasília e pesquisadora na área de saúde mental e gênero, conta a Gama que, normalmente, as relações heterossexuais são assimétricas: a mulher se dedica e investe 100% no relacionamento e, em troca, recebe apenas 10% do homem.

Ela salienta que o fenômeno do abandono e da traição em tempos de suscetibilidade tem a ver com processos de subjetivação, que se dão por meio de dois dispositivos, o materno e o amoroso, este ligado à terceirização da autoestima feminina. Para Zanello, a forma como algumas mulheres amam — porque, tradicionalmente, foram ensinadas a se relacionar dessa maneira — as vulnerabiliza. Por uma exigência social histórica, muitas têm como objetivo central da vida ser escolhida — e se manter escolhida — por um homem.

Autora do livro “A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações” (Appris Editora, 2022), Zanello recorre à metáfora que criou, sobre uma espécie de estante amorosa, para exemplificar a questão. Nessa prateleira, há um ideal estético branco, loiro, jovem e magro, “mas o mais importante é que, mesmo que você esteja num bom lugar, cumprindo esse ideal historicamente construído, no fundo não existe um bom lugar. Agora, há lugares piores e quem os ocupa são mulheres negras, mulheres velhas, mulheres gordas, que são vistas só sob a lente da objetificação sexual”, desenvolve.

Nós, mulheres, aprendemos a sempre priorizar assuntos, interesses e desejos dos outros em detrimento dos nossos

Já o dispositivo materno, segundo a especialista, tem a ver com uma “pedagogia afetiva” que ela chama de hetero-centramento, em que as mulheres, desde meninas, aprendem a priorizar assuntos, interesses e desejos dos outros em detrimento dos delas próprias.

Em uma sequência de postagens, a atriz e educadora parental Carolinie Figueiredo refletiu a respeito do tema com um texto que corrobora com a discussão: “Quem são os homens que ficam quando adoecemos? Quando deprimimos, engordamos, cansamos ou desistimos!? Nós mulheres fomos ensinadas a cuidar, apoiar, perdoar, maternar. A eles pedem quase o mínimo! Eles recebem tudo feito, mastigado, elaborado ou traduzido por uma mulher”.

Voltando à psicóloga, ela explica que os dois dispositivos citados, o materno e o amoroso, participam de uma relação. Zanello fala que quando alguns homens — sejam maridos, noivos, namorados ou até ex-cônjuges —, estão com dificuldades, por exemplo, perdem o emprego, são presos, enfrentam enfermidades, a mulher se disponibiliza a cuidar e a ajudar. Já a maioria dos homens, no processo de se tornar homens, são marcado pelo “egocentramento”.

Quem são os homens que ficam quando adoecemos? Quando deprimimos, engordamos, cansamos ou desistimos?

Ou seja, se, no geral, as mulheres são instruídas a pensar e a cuidar de dez pessoas antes delas mesmas, com muitos homens acontece o oposto. “Eles aprendem o contrário: primeiro eu, segundo eu, terceiro eu, quarto eu, décimo, quem sabe, os outros”, diz.

“Então, quando uma mulher fica doente, é presa, tem um filho com deficiência, qualquer coisa que precise que esse homem invista um pouquinho mais, ele não vai querer, porque ele lucra muito com esses dispositivos. Nós, mulheres, cuidamos deles, por eles e para eles. Enquanto os homens cuidam da própria vida. A gente nutre afetivamente os homens para que eles possam se dedicar e nutrir os próprios projetos”, explana Zanello.

Várias mulheres, conforme alerta a profissional, sentem culpa pela rejeição ou traição do parceiro em fases em que estão suscetíveis, mas ela reforça não se tratar de uma questão individual. “É importante dizer que esse não é um problema daquela mulher, especificamente. É preciso politizar esse sofrimento e mostrar que essa é uma violência estrutural que afeta a todas nós. Ter essa consciência ajuda a ressignificar e, sobretudo, a não psicologizar, ou seja, a não se culpabilizar pela própria violência sofrida”, conclui.