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SemanaAdriana Salay: "Não há vontade política para reduzir a fome"
Criadora da Quebrada Alimentada e historiadora que pesquisa a fome no Brasil diz que reduzir a insegurança alimentar tem relação com as prioridades de um país
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SemanaAdriana Salay: “Não há vontade política para reduzir a fome”
Criadora da Quebrada Alimentada e historiadora que pesquisa a fome no Brasil diz que reduzir a insegurança alimentar tem relação com as prioridades de um país
Uma mãe de quatro filhos teve de parar de trabalhar durante o período de isolamento. Com o auxílio emergencial, pagava aluguel, as contas e sobrava menos de 300 reais para alimentar cinco pessoas. Foi então diminuindo a qualidade das compras, depois a quantidade, e no fim suas crianças comiam apenas arroz. Outra, com duas filhas com necessidades especiais, sustenta a casa com um salário mínimo. Essa mulher pula uma refeição por dia para que as filhas se alimentem. Uma terceira mulher, essa de classe média, perdeu o marido para o Covid. Sua renda zerou do dia para a noite e ela não tinha mais nada na despensa.
Foi durante o período mais crítico da pandemia que a historiadora Adriana Salay, 38, começou a ouvir essas histórias relacionadas à insegurança alimentar. Ela já pesquisava o tema da fome e dos hábitos alimentares dos brasileiros, baseada na obra de Josué de Castro, autor do clássico “Geografia da Fome” (1964), mas nos últimos dois anos pôde ver de perto a crise piorando. “Tivemos melhoras por meio de programas sociais, mas a fome é uma coisa que sempre esteve no Brasil, desde a invasão”, diz a Gama.
Ao lado do companheiro, o chef Rodrigo Oliveira, do restaurante Mocotó, ela criou o projeto Quebrada Alimentada, que distribui marmitas e cestas básicas para famílias carentes na região da Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo, onde fica o restaurante e onde ela vive com a família.
Ações desse tipo surgiram durante a pandemia e atenderam pessoas em situação de vulnerabilidade alimentar. Mas o problema da fome no país se intensificou nos últimos anos. Os números atuais mostram que aproximadamente 33,1 milhões de brasileiros passam fome no Brasil em 2022 – sujeitos à insegurança alimentar grave. Os dados foram divulgados no começo deste mês pela Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional). O estudo, executado pelo instituto Vox Populi, mostra que esse número quase dobrou em relação a 2020 e atingiu 14 milhões de pessoas a mais.
Na conversa que você lê a seguir, Salay defende a manutenção de programas que foram extintos ou enfraquecidos no atual governo, as políticas de transferência de renda, o aumento do salário mínimo, a educação e a política de cotas como caminhos para que a fome seja, se não erradicada, amenizada. “A fome é um projeto político porque hoje a gente tem mecanismos de amenizar o problema profundamente, ainda que não o solucione”, diz a Gama.
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G |Nós vivemos em um país produtor de alimentos que tem um patamar relacionado à fome gravíssimo. Por que essa contradição é possível e qual nosso principal erro quando se fala desse tema?
Adriana Salay |Tem vários modos de interpretar essa relação entre abundância do território e fome da população. Eu particularmente acredito que seja pelo nosso modo de vida, o modo como a sociedade se construiu. Porque hoje o alimento é uma mercadoria. A gente enquanto sociedade é culpado. O agricultor, para sobreviver, tem que obter lucro. Essa é a forma como a sociedade se organiza. Por um outro lado, a população precisa de um fator essencial para acessar esse elemento que é renda. Só vai comer quem tiver dinheiro para comer. Hoje a produção para autoconsumo é irrisória, estatisticamente é muito pequena, tanto que na população rural a fome é maior do que na população urbana em percentuais.
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G |Números recentes mostram que no campo 60% dos domicílios relataram algum tipo de dificuldade relacionada à alimentação — 18,6% sofrem com insegurança alimentar grave. Por que a fome em áreas rurais é alta?
AS |Porque as relações de trabalho estabelecidas no campo são muito precárias e você só vai ter comida se tiver dinheiro. Temos uma das sociedades mais desiguais do mundo, que não dá acesso ao alimento para um grupo e dá para outro grupo. Por isso que a gente tem um país que exporta muito alimento, mas que não alimenta sua população, porque o objetivo da produção não é alimentar, é vender mercadoria. Por outro lado, essa parcela da população não consegue acessar essa mercadoria e aí não consegue comer de forma adequada e saudável.
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G |O que mudou na fome de hoje se compararmos com outros tempos de Brasil?
AS |Existe uma íntima relação entre fome e pobreza. Quando há a diminuição da pobreza e o aumento real do salário mínimo, a gente consegue ver a diminuição dos índices de fome. Teve uma pesquisa na década de 1970 feita pelo IBGE que dizia que mais de 60% da população tinha deficiência calórica, que é uma fome muito profunda. Se a gente ver hoje, a população tem mais acesso à calorias, ainda que nutricionalmente seja muito ruim a nossa alimentação. A fome é uma coisa que sempre esteve no Brasil, desde a invasão. Tivemos melhoras por meio de programas sociais a partir dos anos 1990, e principalmente a partir do programa Fome Zero. Costumo dizer que o Brasil saiu do mapa da fome, mas a fome não saiu do Brasil porque mesmo quando o Brasil alcançou esse marco, continuamos falando de 4% da população, oito milhões de pessoas, ainda em fome aguda. A gente conseguiu melhorar muito, mas esse problema nunca foi resolvido porque ele está ligado a esse modo de produção. E as políticas públicas têm um poder de alcance limitado para resolver o problema.
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G |O presidente Bolsonaro e o ministro Paulo Guedes já contestaram a fome no Brasil. É um discurso estratégico?
AS |O que está em jogo são as definições de fome. A fome é uma disputa política e são as visões de mundo e de política que vão dar determinada definição. O que está em jogo aí: desde o dia 1 o atual presidente já mostrava o que entendia. Primeiro a extinção do Consea [Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional], depois, logo no começo do mandato, ele disse que o Brasil não tinha fome porque não tinham pessoas esqueléticas na rua. Desde aquele momento, ele já disse que o que entendia por fome era uma pessoa em inanição, em estágio último, sem calorias o suficiente, uma condição muito grave e de muito tempo sem acesso ao alimento. Por muito tempo a sociedade entendeu a fome desse jeito, no século 20 isso mudou.
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G |E quais as consequências de colocar a fome dessa maneira?
AS |Se você coloca o problema como muito menor do que ele é de fato, você tem que investir menos também. Se for pegar as pessoas em inanição no Brasil, o número é muito menor do que os números [relacionados à insegurança alimentar]que a gente adota hoje. Mas hoje, a definição da fome do meu ponto de vista é muito correta porque mede a experiência da pessoa em situação de fome, a perda da qualidade e quantidade de comida como um processo. A fome não é um fato em si, é um processo. Você não está num dia completamente bem alimentado e no outro dia não. Vai perdendo qualidade e quantidade, vai pulando refeições, tudo isso hoje a gente consegue medir com a Ebia [Escala Brasileira de Insegurança Alimentar]. Se conseguirmos atuar nessa população antes do estágio de inanição, em termos de saúde pública é muito melhor. Nem falo de humanismo e de compaixão, mas como estratégia pública de atuação é muito melhor porque você atua antes do ápice do problema.
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G |Como fica a situação especialmente das mães quando a gente fala desse processo da fome?
AS |É uma população muito afetada pela fome, mães solos, casas geridas apenas por mulheres tem um índice de fome muito maior do que a média da população. A fome é fruto dessa desigualdade social que está colocada no gênero. Mulheres são muito mais afetadas porque recebem menos. Uma parcela das mulheres, por socialmente serem responsáveis por esse trabalho não remunerado da casa, tiveram que deixar o mercado de trabalho para cuidar das crianças que estavam sem escola e sem rede de apoio por esses dois anos. E isso diminuiu a renda do lar. Também tem um processo interno de administração do alimento que intensifica a fome especificamente delas. Além do trabalho do cuidado, associado à mulher, o gerenciamento da alimentação também é atribuído à elas na maior parte dos lares. Quando você faz a gestão do alimento, primeiro você alimenta as crianças e outros membros e depois se alimenta. As mulheres passam fome primeiro que os outros membros da casa. E crianças em último caso. Quando as crianças estão passando fome a situação é muito mais crítica. Porque há um entendimento que você tem que proteger essa criança, que primeiro ela se alimenta e depois os adultos se alimentam, a mulher por último nessa situação.
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G |Qual o papel das ações de distribuição de alimentos para além de matar a fome de maneira pontual das pessoas atendidas?
AS |Eu concordo que elas são muito pontuais, não vão resolver o problema. Mas acho que tem diferentes tipos de ações. Há aquelas que organizam o território, isso é muito bom para mostrar que uma vida coletiva é possível. Por exemplo, tem uma ocupação recente que se formou na pandemia aqui perto de casa e que a gente atende pontualmente porque são 800 famílias, é muito grande para o nosso poder de alcance, mas que se organizam para pedir assistência alimentar. Para isso, você tem que fazer reuniões, ter liderança, tem que definir quem vai priorizar dentro dos territórios, quais famílias estão precisando mais. Todas essas estratégias de organização podem se tornar um grupo de reivindicação política para além do alimento, gerar um outro nível de organização e mostrar que um outro modelo de sociedade é possível. A gente vive numa sociedade profundamente individualizada, os problemas são individuais, a solução é individual e a noção de comunidade hoje é muito restrita a poucas pessoas. Quando você estende a mão em solidariedade a uma pessoa que você não faz a menor ideia de quem seja, você está mostrando também que uma outra sociedade é possível. E, pensando egoisticamente, o seu problema também passa pelo problema do outro. Se a vida do outro está ferrada, os índices de violência aumentam e afetam a sua vida. Não há solução se não for coletiva.
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G |Você fala muito que a fome é um projeto político. Como e por quê?
AS |Hoje eu estou tentando evidenciar mais que ela é para além do político, que ela é da organização da nossa sociedade. Mas é porque existem disputas em torno do termo fome, das suas causas e das suas soluções. Tem muita gente que ainda hoje coloca isso no âmbito individual, que entende a sociedade como meritocrática. Onde se você trabalha muito você vai chegar lá, se você passa fome o problema é seu, por ineficiência, preguiça e tal. Essa contraposição tem a ver com essas disputas de narrativa. A fome é um projeto político porque hoje a gente tem mecanismos de amenizar o problema profundamente, ainda que não o solucione. Se a gente produz alimento para todo mundo, por que nem todo mundo se alimenta? Já provamos enquanto país que esses mecanismos são possíveis e geram efeitos. Já vimos uma diminuição dos índices da fome, e não é que a gente fez mudanças profundas como a reforma agrária. Houve programas de transferência de renda, aumento real do salário mínimo. São ações dentro do sistema capitalista que se mostram eficientes na redução do índice de fome. Então precisa haver uma vontade política, que não há.É só ver o poder de compra hoje da população. Diminuiu imensamente.
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G |O governo federal vetou o reajuste para merendas de creches e escolas públicas. O valor segue igual pelo quinto ano seguido. Qual a realidade hoje da merenda escolar no país?
AS |O congresso ter aprovado e o presidente ter vetado a atualização dos valores é ridículo. A gente está com uma imensa inflação de alimentos e se você não consegue atualizar o valor, tem que diminuir a quantidade de merenda. É uma matemática muito simples. Porque não é só alimentar, mas alimentar bem, de alimento nutricionalmente adequado. O programa de merenda é o mais antigo em operação no Brasil, sendo discutido na década de 1940, implantado ali na década de 50. Hoje são 40 milhões de crianças sendo alimentadas. Só que nem isso está conseguindo fazer porque com esse valor irrisório você não consegue alimentar as crianças. E isso tem consequências enormes para aquela família e para o país também.
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G |Com as eleições próximas, qual o caminho para a transformação?
AS |Ampliação do Auxílio Brasil, do salário mínimo, do PAA [Política de Aquisição de Alimentos], que foi muito reduzida. Essa é uma política muito importante porque prevê que 30% de algumas compras do Estado venham da agricultura familiar. Por causa da merenda, são 40 milhões de pessoas sendo alimentadas todos os dias. Então imagina o poder de compra que tem essa política. Se você compra da agricultura familiar, você fomenta um modo de vida no campo que é muito melhor, que tem uma remuneração melhor, que a pessoa pode se manter no campo sem estar em relações de trabalho opressoras dos grandes latifúndios. Para a diminuição da fome no campo e acesso de bons alimentos na alimentação escolar essa política é essncial. Sempre digo que para acabar com a fome, são políticas emergenciais como transferência de renda e políticas de médio e longo prazo, como o acesso à educação. O programa de cotas é contra a fome em última instância, porque você permite que aquela vida tenha outras oportunidades. Programas de educação também são programas contra a fome. E no fim programas estruturais. Por que políticas públicas foram tão facilmente destruídas no governo atual? Melhorias foram feitas nos números de fome expressivas e elas foram feitas muito rapidamente. Por que a gente fez isso? No meu ponto de vista, as mudanças estruturais, por exemplo a reforma tributária e a reforma agrária são muito importantes para uma diminuição de uma desigualdade estrutural que é a produtora da fome no país.
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G |Quando você decidiu criar o Quebrada Alimentada e como você fica pessoalmente lidando com essa realidade?
AS |Eu estava investigando os impactos da Segunda Guerra Mundial no Brasil e percebi uma desestruturação social muito grande, impactos de fome imensos na Europa e aqui também. Quando começou a pandemia eu já sabia o que essa crise traria. O Rodrigo começou a servir marmita no Mocotó, nosso lema é que a gente compartilha o que tem e não o que sobra. A nossa comunidade precisava muito, a gente está nesse bairro periférico, uma escolha política. Aí começamos a investir muito para que o projeto ganhasse estrutura e fôlego. Ler sobre a fome é pesado, casos de canibalismo por fome no Brasil, na Europa. Mas lidar com as famílias têm sido imensamente pesado, não me canso de me sensibilizar. Acho que o sentimento de insuficiência é o pior porque não basta, o que você fizer nunca vai bastar porque a demanda é sempre maior do que a nossa possibilidade de ajuda. E dizer “não” é muito difícil porque a gente tem 90 cestas e 400 famílias, então temos que dizer não. E isso é cruel, imensamente cruel.
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CAPA Qual o tamanho do seu prato?
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