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Conversas'As pessoas conferem um poder às medicações psiquiátricas que no fundo elas não têm'
Médico psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP, Rodrigo Martins Leite fala sobre o excesso do uso de medicamentos para a saúde mental
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‘As pessoas conferem um poder às medicações psiquiátricas que no fundo elas não têm’
Médico psiquiatra do Hospital das Clínicas da USP, Rodrigo Martins Leite fala sobre o excesso do uso de medicamentos para a saúde mental
Praticamente desde que a pandemia começou, se previa que o evento de proporções globais, com a necessidade de isolamento e a crise social e econômica que acarretou, mexeria com a saúde mental de grande parte da população. Dito e feito, profissionais da área vêm relatando aumento na procura por atendimentos já há algum tempo. São quadros geralmente ligados à ansiedade, ao estresse e à depressão, que demandam um alívio rápido e eficaz num contexto de crise financeira, em que pausar ou deixar de lado as obrigações profissionais está fora de questão, explica o psiquiatra Rodrigo Martins Leite.
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Coordenador de telemedicina e relações institucionais no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP, não é de hoje que Leite vem acompanhando um crescimento notável na procura e consumo de medicamentos psiquiátricos entre os pacientes que atende — algumas vezes conseguidos até de forma ilegal, recorrendo ao mercado paralelo. Um levantamento do Conselho Federal de Farmácia apurou que, em 2021, as vendas de antidepressivos aumentaram 13% em relação ao ano anterior.
Arquivo pessoal
“Como a gente vive um momento de crise econômica e desemprego, as pessoas precisam continuar trabalhando. As medicações entram nesse contexto de sustentação de um padrão de trabalho, de excelência de desempenho”, explica o médico, que também é palestrante e organizador de capacitações em saúde mental em escolas, empresas, ambulatórios e hospitais.
O problema é que hoje as pessoas tendem a exagerar o poder da medicação, que em casos mais graves precisam vir associadas a outros tipos de intervenção como uma psicoterapia ou até uma mudança mais profunda dos hábitos cotidianos, aponta Leite. Esse e outros fatores mercadológicos, segundo o médico, acabam criando uma pressão sobre os profissionais que atuam na saúde mental, que se sentem praticamente obrigados a receitar algum medicamento — o que pode levar a diagnósticos problemáticos ou até equivocados.
O psiquiatra, que já atuou atendendo famílias na periferia de São Paulo, também lembra, no entanto, que esse crescimento no consumo trata de um recorte social específico da população, englobando as classes alta e média, o que “repercute no panorama esquizofrênico que a gente vive, com uma classe social recebendo remédios a mais e outra a menos”.
Em conversa com Gama, o psiquiatra Rodrigo Martins Leite aborda também a medicalização de jovens e adolescentes, o maior acesso a informações sobre saúde na palma da mão e o preconceito que distúrbios de saúde mental ainda despertam.
Num momento de crise econômica, as medicações entram nesse contexto de sustentação de um padrão de trabalho
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G |Falou-se muito sobre uma onda de distúrbios psicológicos que viria como consequência da pandemia. Você tem percebido esse aumento?
Rodrigo Martins Leite |As previsões estavam próximas da realidade. Tenho verificado na prática privada um aumento muito significativo de demandas de saúde mental, ainda mais em algumas populações específicas, como entre os adolescentes. Os problemas mais frequentes estão relacionados à ansiedade e depressão, mas a pandemia também trouxe outras questões, como o aumento do abuso de álcool e outras substâncias. Inclusive, o abuso de medicamentos psiquiátricos, a exemplo dos sedativos, também aumentou significativamente. Além de outros indicativos, como violência doméstica e contra a mulher. Todo esse cenário de questões sociais que vivemos impacta diretamente a saúde mental.
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G |Dá para dizer então que os medicamentos psiquiátricos vêm sendo usados de forma mais generalizada do que no passado?
RML |Sem sombra de dúvida. São os campeões de vendas no Brasil, houve uma popularização muito grande desse tipo de medicação. Por muitos anos, existiu um estigma em relação a isso, que hoje é muito menor. As pessoas têm buscado cada vez mais o uso de medicação para o alívio de sofrimentos ou desconfortos mentais, assim como há também uma maior demanda por consultas e avaliações de saúde mental que acabou elevando esse padrão de consumo. Fora as questões relacionadas ao estresse, a grande mola propulsora desse aumento, porque ele gera alterações de sono, irritabilidade e queda de performance no trabalho. Como a gente vive um momento de crise econômica e desemprego, as pessoas precisam continuar trabalhando. As medicações entram nesse contexto de sustentação de um padrão de trabalho, de excelência de desempenho, por conta do cenário socioeconômico crítico.
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G |É algo que vem afetando inclusive os próprios profissionais da área da saúde…
RML |Diferentemente do que foi divulgado no início da pandemia, quando os profissionais de saúde eram retratados como heróis, o que se viu foi um desgaste enorme nessa população de trabalhadores. Agora, com a pandemia mais estável, existe muito desemprego entre os profissionais de saúde, que sofreram por estar na linha de frente da pandemia e agora vivenciam perdas financeiras, fora a piora nas condições de trabalho. É muito problemático pensar que um profissional tão necessário esteja sofrendo essa precarização. A gente tende a fazer relações causais com a pandemia, mas não podemos esquecer que, junto com ela, veio uma piora das relações de trabalho de forma geral. Vivenciamos a reforma trabalhista e o trabalho remoto, o que trouxe uma série de implicações. E a saúde não foi poupada desse fenômeno global. No setor privado, existe uma preocupação com o lucro e a sustentabilidade financeira dos serviços, o que acaba gerando redução salarial e uma precarização de vínculos, a “pejotização” do profissional da saúde. Um profissional que já estava sobrecarregado, lidando com uma pandemia e o excesso de demanda, ainda vivenciou esse processo que piorou ainda mais as coisas.
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G |Existem riscos a longo prazo do aumento no uso de medicamentos psiquiátricos?
RML |Há sim algumas questões. A primeira é que as pessoas conferem um poder às medicações psiquiátricas que no fundo elas não têm. Principalmente em transtornos com maior impacto na vida diária, como quadros graves de depressão ou ansiedade, só a medicação não é suficiente. É preciso também uma intervenção não farmacológica, que pode ser psicoterapia ou uma mudança mais consistente nos hábitos. O remédio isolado não é suficiente. E há também o risco de abuso. Historicamente, existe um mercado negro para medicações como sedativos, usadas para a ansiedade e o sono. É um mercado que a gente não consegue quantificar, mas os pacientes sempre dizem que têm formas de conseguir os remédios sem prescrição. Medicações como o Zolpidem [usado para tratar distúrbios do sono] têm gerado problemas graves de abuso e dependência, fora o risco de as pessoas se exporem a efeitos colaterais e reações adversas. Então essa generalização tem que ser vista com cuidado pelos profissionais e, até certo ponto, desincentivada. Para todo esse contexto social, econômico e político, a gente precisa de outras ferramentas. É evidente que a medicação é importante em várias situações, mas não pode ser o único alento para o sofrimento do dia a dia do brasileiro. Devemos ter outras formas de fazer valer nosso direito a uma maior qualidade de vida. Mas essa discussão tem se perdido. A medicação acaba se tornando uma alternativa de autocuidado diante de uma impossibilidade de tempo livre ou de cultivar outros hábitos de vida mais saudáveis. É o que está mais à mão.
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G |Há também uma pressão sobre os profissionais de saúde para medicar?
RML |Existe uma expectativa social muito grande em relação à potência dos medicamentos para resolver mais do que eles de fato conseguem. Então as pessoas procuram psiquiatras e médicos com essa expectativa. Fica difícil navegar na contramão de todo esse marketing e popularização. Muitas vezes o profissional acaba prescrevendo, até porque pode ser a única opção que a pessoa tem — pode ser que, em dificuldade financeira, ela não vá ter dinheiro para fazer terapia ou tempo para uma atividade física. Então existe uma pressão social direta, do mercado, e indireta, porque pode ser a única coisa que a pessoa tem à disposição para se aliviar. A gente, enquanto profissional, fica de mãos atadas. É um fenômeno muito maior do que o encontro clínico em si.
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G |Isso leva a casos em que medicamentos são receitados de forma indevida?
RML |Aumentam as taxas de falso-positivos, o que expõe as pessoas a medicações de que elas não necessitam. A popularização de alguns diagnósticos, como o de transtorno bipolar, déficit de atenção ou hiperatividade também gera esse efeito. No próprio diagnóstico existe uma margem de subjetividade, apesar de termos critérios que são consenso internacionais. Meu conselho é que as pessoas procurem uma segunda opinião para confirmar que se trata realmente daquele diagnóstico. Até porque as medicações não são inócuas. Elas têm uma série de efeitos colaterais, como ganho de peso, aumento do risco cardiovascular e diabetes, então a gente precisa ser mais cauteloso na avaliação e as pessoas precisam ter essa consciência. O problema do falso-positivo demanda prevenção. Como profissionais, temos responsabilidade, e os pacientes também devem ter a sensibilidade de não se expor a riscos desnecessários.
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G |Na sua experiência clínica, hoje é mais comum os pacientes chegarem pedindo para ser medicados ou demandando um remédio específico?
RML |Sim, às vezes a pessoa já chega com uma encomenda. Quer tomar um psicoestimulante para a falta de atenção ou um antidepressivo que um conhecido está usando. Essa coisa do mercado e do consumidor acaba aparecendo. Geralmente a gente consegue dialogar, mas muitas vezes a pessoa já chega com um pensamento muito claro, em busca de um produto. Isso tem acontecido também com a cannabis medicinal. A pessoa não necessariamente está buscando um parecer médico, ela enxerga a consulta como um acesso à medicação. Só busca a gente porque não pode comprar diretamente. Quando a medicação é mais nova então, acaba seduzindo mais e essa pressão mercadológica se torna superior à avaliação médica.
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G |Agora as pessoas também têm mais acesso a informações sobre essas medicações do que no passado.
RML |O acesso à informação tem um lado positivo, de as pessoas se empoderarem enquanto cidadãs e consumidoras. Elas têm direito de saber. Não são todos os médicos que gostam disso, mas eu particularmente vejo com bons olhos. Óbvio que tem o revés, que é o paciente chegar com uma demanda como essa. Nos Estados Unidos e na Europa, isso já é uma coisa gritante. A gente está importando essa tendência, principalmente em clínicas privadas.
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G |O aumento dos distúrbios psicológicos em crianças e adolescentes também tem levado a uma maior medicalização nessa faixa etária?
RML |A pandemia teve um efeito nas crianças e adolescentes que ainda não conseguimos quantificar. Mas o sofrimento de forma geral aumentou, e eles acabam participando nesse movimento de maior acesso à medicação, consumindo mais medicação psiquiátrica do que antigamente. Antes, existia uma maior restrição desse uso entre adolescentes, mas nos últimos cinco anos essa barreira tem ficado mais tênue. Crianças e adolescentes vêm sendo medicados com mais liberalidade. Nessa idade, o sofrimento mental costuma ter relação com a família e a escola, os ambientes que a criança frequenta. Com a medicalização, corre-se o risco de assumir que o problema é a criança, e não outras questões que podem estar influenciando seu comportamento. O segundo risco são os efeitos colaterais, que podem comprometer o desempenho escolar, piorar a cognição, a concentração e a memória. Então é particularmente importante pesar os riscos e benefícios de medicar. Como a principal via de tentativas de suicídio entre jovens no Brasil é a ingestão de medicamentos, o acesso aos remédios dentro de casa também eleva esse índice. Mas é sempre bom destacar que jovens com quadros mais graves, como risco de suicídio, agressividade ou sofrimento muito grande, podem se beneficiar desse uso. Os tratamentos mais bem-sucedidos são os que associam remédios com intervenções psicossociais e avaliam como as famílias e a escola lidam com essas crianças e adolescentes.
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G |Essa popularização induz as pessoas a buscar medicamentos e tratamentos alternativos, muitas vezes sem eficácia comprovada?
RML |Quando as pessoas começam a se deparar com as limitações dos medicamentos tradicionais, como os efeitos colaterais, as outras opções, como derivados da cannabis e psicodélicos, adquirem um hype muito grande. São promessas de evitar os inconvenientes das medicações convencionais. Evidentemente existem estudos nessas áreas, mas às vezes a pessoa também acaba se expondo a intervenções sem nenhuma evidência científica. Esse, no melhor dos cenários, é um uso inócuo, quando não traz malefícios. Mas pode haver também alguma consequência indesejada.
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G |A questão da saúde mental ainda é vista com um certo preconceito em determinados casos?
RML |Costumo dizer que vivemos uma redução do estigma da consulta e do uso de medicamentos psiquiátricos. As pessoas têm cada vez menos vergonha de dizer que usam medicação, o que era um tabu até alguns anos atrás. O que não mudou é a percepção social da pessoa que sofre de transtorno mental, principalmente quando ele é grave. A capacidade de inserção dessas pessoas na sociedade ainda é muito precária. Na prática, não existe. Se for alguém de uma classe social menos favorecida, não vai ter possibilidade nenhuma de trabalhar ou participar da sociedade. Nesse sentido, avançamos muito pouco. Quando observamos as discussões sobre a Cracolândia e outros espaços abertos de uso de drogas, percebemos que a opinião da sociedade é de que essas pessoas não atrapalhem o espaço público ou que sejam mesmo retiradas do convívio social, porque incomodam. Então a gente vive uma situação paradoxal de redução do estigma. Se melhorou por um lado, por outro pode haver até um aumento, principalmente quando existe esse componente social de miséria. Aí esse estigma fica ainda mais intenso.
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G |Esta semana se celebra o Dia da Luta Antimanicomial no Brasil. A defesa da política de saúde mental no Brasil segue sendo relevante?
RML |Historicamente, desde a Idade Média, a tendência das sociedades é excluir a pessoa que tenha qualquer alteração gritante de comportamento, com soluções restritivas ou coercitivas. Ou seja, retirá-la do convívio, colocando-a num hospital ou deixando-a afastada. A lembrança que essa data traz é que essa é uma tendência latente e a gente precisa sempre estar dialogando com isso. Os usuários de drogas são os indesejáveis, as pessoas mais estigmatizadas dentro da saúde mental no momento. E existe essa tendência de querer interná-los em comunidades terapêuticas. Então essa discussão continua muito atual. Apesar de os manicômios terem sido fechados ao longo dos últimos 30 anos no Brasil, eles persistem em alguns lugares do país e a tendência manicomial ainda se sustenta. Ela acaba sendo um apelo fácil da sociedade. A gente precisa comemorar esse dia e despertar a consciência das pessoas sobre esse risco. O tratamento real são mecanismos que possibilitem a inserção dessas pessoas, e não reforcem a exclusão. O manicômio é um instrumento da exclusão social.
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G |Em relação aos medicamentos, assim como existe uma desigualdade no acesso à consulta psiquiátrica, também há uma parcela da população que fica à margem desse consumo. Que efeitos isso causa?
RML |Quando a gente fala de saúde mental, precisa ter em mente o recorte de classe social. Dentro do privado, cabe a questão da generalização e popularização do uso de medicamentos. Mas, em relação à população mais carente, há uma dificuldade de acesso a tratamentos adequados. Não é um problema só do Brasil, mas do mundo todo. Enquanto entre os mais ricos sobram diagnósticos, entre os mais pobres falta. Isso tem relação com a falta de investimento financeiro em políticas de saúde mental, conflitos políticos e ideológicos dentro da área e a pressão de setores privados, que acabam drenando recursos do sistema público. É um cenário multifatorial de problemas. Ele repercute no panorama esquizofrênico que a gente vive, com uma classe social recebendo remédios a mais e outra a menos. São dois cenários que precisam ser analisados de forma distinta.
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