O que é verdade nas adaptações da realidade para o cinema e a TV — Gama Revista
Qual é a verdade?
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Depoimento

Baseado em fatos reais

Diretores, roteiristas e atores contam a Gama como funciona o processo de adaptar a realidade para as telas e quais são os limites entre o registro histórico e a liberdade artística dentro da ficção

Andressa Algave e Daniel Vila Nova 12 de Setembro de 2021
Reprodução, Divulgação/SBT

Baseado em fatos reais

Diretores, roteiristas e atores contam a Gama como funciona o processo de adaptar a realidade para as telas e quais são os limites entre o registro histórico e a liberdade artística dentro da ficção

Andressa Algave e Daniel Vila Nova 12 de Setembro de 2021

Fazer uma adaptação para cinema ou TV não é fácil. Além de toda a expectativa que tais produções geram, afinal estamos falando de figuras célebres, há o desafio de encontrar o equilíbrio entre ficção e realidade. Da fidelidade histórica ao respeito com quem está sendo retratado, as preocupações dos realizadores são diversas. Mas no fundo, todos parecem concordar com uma coisa: o que realmente importa é uma história bem contada que seja, de alguma maneira, fiel ao espírito do biografado (mesmo que para isso, algumas mentiras tenham que ser filmadas).

Entre verdades, mentiras e meia-verdades, atores, diretores e roteiristas buscam o ponto ideal entre fato e ficção e apostam na liberdade criativa para produzir narrativas biográficas. A Gama, nomes como César Mello, Daniel Rezende, Fabrício Boliveira e Andréia Horta relataram como é o processo de adaptar à realidade para as telas:

Divulgação, Wikimedia Commons

“Busquei dar voz aos textos que ele escreveu, não o contrário”

César Mello, ator de “Doutor Gama”(2021)

“Era impossível não tomar algumas liberdades criativas, Gama é um homem sem voz e sem andar, não há registros históricos de como ele se portava nesse sentido. Minha porta de entrada, então, foram os muitos escritos que ele deixou. Li tudo o que ele escreveu e em voz alta por horas para entender como ele construía suas frases e seus pensamentos. Compreendendo como ele pensava, compreendi como ele falava. Busquei dar voz aos textos que ele escreveu, não o contrário. Enquanto pessoa negra, não há como adentrar no mundo da escravidão e não sentir dor. É difícil para mim dizer o que é a dor do César e o que é a dor do Gama dentro do filme, as coisas se misturam de maneira muito forte, mas eu usei toda essa dor a favor do personagem.

O filme alterou algumas coisas, mas isso significa que é uma mentira? Para mim, é verdade. O pensamento da sociedade brasileira era daquele jeito, Gama de fato existiu e libertou mais de 500 pessoas. Não há como olhar para o filme e dizer que é uma mentira, a ideia é que o contexto histórico alimenta o drama e, consequentemente, o drama alimenta o contexto histórico. É como uma dança.”

Reprodução, Divulgação/SBT

“A vida real é interessante para ser vivida, mas precisa de condução narrativa na tela”

Daniel Rezende, diretor de “Bingo: O Rei das Manhãs”(2017)

“Ser o mais fiel possível a uma história não é uma contraposição à liberdade artística, às vezes é mais importante ser fiel a uma sensação. Somos contadores de histórias e tudo o que narrarmos, até o mais realista dos documentários, ainda é uma ficção — um ponto de vista do contador. A vida real é muito interessante para ser vivida, mas ela precisa de uma condução narrativa na tela e a liberdade artística é intrínseca a esse processo. Em ‘Bingo’ [‘Bingo: O rei das manhãs’, 2017], nós queríamos entender a essência do Arlindo Barreto — o palhaço original — e transpor isso para o filme. Isso não quer dizer que nós filmamos todas as cenas exatamente como aconteceram na vida dele, nós fundimos personagens e mexemos nas ordens de alguns acontecimentos, mas a essência do personagem é a essência do Arlindo.

A questão dos direitos autorais foi importante, sabíamos que não teríamos de alguns programas. E, mesmo se tivéssemos, não teríamos a liberdade criativa necessária para contar a história que queríamos. Eles poderiam ter barrado a liberdade de contarmos a narrativa verdadeira.

Buscamos não cair na caricatura, mas não há nada mais caricato do que os anos 80. A única personagem que nós realmente assumimos e não mudamos o nome foi a Gretchen. Eu queria que houvesse um elemento que colocasse o espectador nos anos 80 e que não fosse ficcional. Além disso, não havia como fazer esse filme e não colocar ‘Conga, Conga, Conga’ na trilha sonora.”

Paprica Fotografia, Wikimedia Commons

“Não quis ficar somente no ‘olha só como ele está igualzinho'”

Fabrício Boliveira, ator de “Simonal” (2019)

Havia muito material sobre o Simonal, vídeos, álbuns, filmes e dois livros biográficos. Eu busquei entender quem ele era por diversos olhares e, a partir disso, construir uma outra narrativa sobre esse homem. Parti do que havia de afinidade entre Fabrício e Simonal, dois homens pretos e artistas. Ele amava dançar e eu também amo, então essa parte física já se tornou um recorte do meu Simonal, mas não adotei todos os trejeitos dele. Nossos quadris, por exemplo, conversaram bastante, mas houveram outros lugares em que isso não ocorreu. Também fiz aulas de canto para conseguir cantar na nota certa, mas não chego nem perto dele. Eu o dublei, mas brincava com isso, fazendo com que as pessoas tivessem dúvida se eu estava dublando ou não. Para mim, foi maravilhoso poder respeitar o maior talento dele e potencializar minha atuação em outros lugares.

Ele tem uma pele muito mais clara do que a minha, então logo de partida nós não nos parecemos, mas havia uma identificação maior do que a visual. Eu não busquei fazer o Simonal, mas sim criar o personagem de um artista que se chama Simonal. Há muita coisa ali além de uma caricatura, não é simplesmente construir o personagem e deixar a história dele passar por mim. Eu fiz um recorte político, social, racial e histórico de qual Simonal eu queria nessa história. Queria que houvesse uma identificação que surgisse por outros lugares que não o ‘olha só como ele está igualzinho’.”

Globo/João Faissal, Divulgação

Tratar desses assuntos difíceis é bom, faz com que as pessoas queiram discutir, tem um aspecto que vai além da arte

Mini Kerti, diretora de “Sob Pressão” (2017)

“Desde o início, tínhamos um certo medo. Tem um lado da série que é muito cru — as operações, as doenças, as dificuldades de cada um, tudo em um retrato muito honesto do que é o Sistema Único de Saúde. Há uma realidade crua e nós tínhamos medo de como o espectador iria reagir a isso. Ao longo das temporadas, fomos entendendo o que funcionava.

Há uma equipe de pesquisa que nos auxilia, todos os atores e a direção vão aos hospitais para entender como é a dinâmica lá. O Márcio Maranhão, que é médico, está com a gente desde a primeira temporada. Ele faz a consultoria médica do roteiro ao set, apontando o que tem que ter nas cenas, se precisa de próteses, quais são os procedimentos, etc. Ele está no set em todas as cirurgias e atendimentos, ensinando os atores o que eles têm que fazer para parecer realista. Na quarta temporada, há uma história de uma avó que perde um neto por uma bala perdida e essa é uma questão que é do cotidiano do brasileiro. Sempre ouvimos esse tipo de noticia, e lidar com a violência urbana é algo que a gente está sempre tratando. Mas tratar desses assuntos difíceis é bom, faz com que as pessoas queiram discutir, há um aspecto que vai além da arte. Você está fazendo entretenimento, mas com um objetivo que vai além da diversão.”

André Carioba, Wikimedia Commons

“O medo de cair em uma caricatura sempre existe. O que fiz para tentar fugir foi trabalhar incansavelmente”

Andréia Horta, atriz de “Elis” (2016)

“A preparação foi intensa, foram três meses, seis dias por semana. Montei um time com três preparadores, para cena, corpo e voz. Assistir aos registros da Elis também foi fundamental. Ela era o foco. O meu trabalho precisava mexer com a memória das pessoas. Senti um medo enorme, junto com um desejo louco de experimentar. Eu achava que se eu fracassasse seria expulsa do país! Só relaxei quando entendi que só seria bom se eu dançasse junto com ela. Aí foi só prazer. A responsabilidade era condição porque falávamos de uma grande mulher em uma fase tenebrosa da história do Brasil. O medo de cair em uma caricatura sempre existe. Para tentar fugir dele, trabalhei incansavelmente.”

Divulgação, Reprodução

“As histórias não são nossa vida, mas metáforas para a vida”

Thiago Dottori, roteirista de VIPs (2010)

“A vida do Marcelo tem eventos muito extraordinários, é a típica história que você fala ‘caramba, isso daria um filme’. Um cara super esperto, um psicopata, mas foi pego de maneira boba. Ele dá a entrevista como filho do dono da Gol para o Amaury Jr., a entrevista vai ao ar e ele permanece naquele personagem por dois dias, quando finalmente é pego pela polícia. Nós ficamos nos perguntando como um golpista experiente não previu isso, mas uma resposta dele em uma entrevista nos norteou — ele disse que não conseguiu sair do personagem e por isso foi pego. Com essa resposta, construímos a nossa narrativa de um cara que não conseguia sair daquele personagem porque aquilo dava a ele algo que faltava. Os golpes não eram por simples diversão, mas uma busca por uma completude que ele não conseguia encontrar na própria vida ordinária, nós passamos a entender o filme sob essa perspectiva.

Outros autores poderiam encontrar outro viés e essa é parte da graça. Não existe um recorte da verdade absoluta, existe a verdade que você vai querer contar com aquela história. As histórias não são nossa vida, mas metáforas para a vida. A pessoa Marcelo é um pouco diferente de outras figuras históricas, ele não era uma figura pública. Não há nenhum tipo de discurso sobre a história ou a importância dele em um contexto maior, isso fez com que tivéssemos mais liberdade. Walter George Durst, autor que fez grandes adaptações literárias para a TV, falava que ‘adaptar é trair por amor’. Acho que isso vale para a ficção de figuras históricas — a realidade não é contada, ela só acontece. Contar uma história sempre acarretará em reinventá-la.”

TV Globo/Ique Esteves, Divulgação

“O biógrafo só é dono da própria versão do biografado”

Marcel Souto Maior, autor do livro “As Vidas de Chico Xavier” que inspirou o filme “Chico Xavier” (2010)

“O processo de escrita do roteiro foi centralizado no Marcos Bernstein e no Daniel Filho, mas li várias versões do roteiro e tivemos muitas trocas interessantes. Acredito que o filme foi muito fiel à minha biografia, com as devidas licenças que fazem parte desse processo de adaptação. Não há como não fazer determinados ajustes, existe uma licença cinematográfica que torna a narrativa mais veloz e envolvente. No meu livro, por exemplo, as personagens do Tony Ramos e da Christiane Torloni — pais enlutados que conversam com o filho morto através de Chico — não existem. Mas o cinema pede que você potencialize a emoção e reúna diversos personagens em um só. Aqueles personagens concentram e simbolizam a dor, a angústia e a saudade de diversas famílias com as quais Chico Xavier lidou ao longo dos anos.

Biografar é um trabalho de contar a verdade, mas seria um tanto prepotente para um biógrafo se considerar o dono dela. Na realidade, ele é dono da sua própria versão, uma que ele apurou em pesquisas, fontes, entrevistas e checagens. O biógrafo vai combinar as várias versões sobre aquela figura e criar a sua versão final, mas não deixa de ser um olhar sobre aquela personagem, é sempre uma verdade entre aspas. Quantas biografias existem sobre um mesmo personagem? São vários olhares cruzados sobre a mesma pessoa.”

Divulgação, Reprodução/Phillips Records

“Eu fiz o meu Cazuza”

Sandra Werneck, diretora de “Cazuza – O Tempo Não Pára (2004)

“Eu nunca havia trabalho com shows e com música, mas fui convidada para dirigir o filme. Li o livro ‘Cazuza: Só as Mães São Felizes’ (Globo Livros, 2014) e adorei, fui anotando o que me interessava e topei fazer o filme. Tentei ser bem fiel ao livro, mas é óbvio que existem sequências que foram inventadas.

Eu queria fazer um filme sobre o Cazuza, não contaria outra história que não fosse a dele. Não iria fazer algo leve, só me interessava o Cazuza verdadeiro. Eu e o Daniel de Oliveira tentamos capturar a alma do Cazuza, a transgressão, a poesia, não queríamos cair em algo tão clichê. O filme é uma das muitas verdades sobre Cazuza, se outra pessoa fizesse ‘Cazuza’, seria diferente. Eu fiz o meu Cazuza.”