Cauê Tessuto: o homem dos peixes brasileiros — Gama Revista
Qual a sua história com o mar?
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Ilustração: Isabela Durão. Foto: Reprodução / Instagram @mardireto

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Este homem quer que você coma peixes brasileiros

De cozinheiro a distribuidor, Cauê Tessuto trabalha com peixes de todo o litoral brasileiro e é responsável pela popularização de espécies como a prejereba e a sororoca na alta gastronomia

Isabelle Moreira Lima 21 de Janeiro de 2024

Este homem quer que você coma peixes brasileiros

Isabelle Moreira Lima 21 de Janeiro de 2024
Ilustração: Isabela Durão. Foto: Reprodução / Instagram @mardireto

De cozinheiro a distribuidor, Cauê Tessuto trabalha com peixes de todo o litoral brasileiro e é responsável pela popularização de espécies como a prejereba e a sororoca na alta gastronomia

“Se o assunto for peixe, fale com Cauê Tessuto, ele é o homem do peixe.” Este foi o conselho que recebi de uma colega nos meus primeiros dias como repórter de comida e bebida em um jornal de São Paulo. Era 2015, mas podia ser hoje. Naquela época, Tessuto já tinha uma década de cozinha com passagens por diferentes países (Espanha, Argentina e Chile) e chefiava um restaurante especializado em peixes e frutos do mar, A Peixaria, que reproduzia um mercado de pescado. Hoje, ele comanda o Mar Direto, responsável pelo abastecimento de restaurantes estrelados e por levar ao público muitas espécies brasileiras só conhecidas por pescadores ou desacreditadas até por eles.

A prejereba é o maior e melhor exemplo do que ele faz. O peixe de nome esquisito, até 2010, era um ilustre desconhecido na cidade e um pária na praia. “Ninguém queria saber dela, ninguém comia. O próprio pescador não tinha interesse, ela não tinha valor cultural nem de venda. Mas quando eu a trouxe pela primeira vez entendi que era exatamente o que o mercado queria”, ele conta. E o que o mercado queria era um peixe de carne branca, capaz de ser cortado em filés altos e suculentos e blindado contra os erros de um cozinheiro menos experiente sobre o ponto de cocção. De quebra, a prejereba era barata.

Me achavam o ser mais louco do mundo, apostavam que eu não ia conseguir vender aquele peixe de segunda linha

“Foi uma baita oportunidade, eu conseguia pagar mais para os caras do litoral, que me achavam o ser mais louco do mundo; apostavam que eu não ia conseguir vender.” Mas Tessuto não só vendeu como fez com que a prejereba fosse um dos peixes mais consumidos em São Paulo. Hoje, já está no alvo de outros fornecedores e figura como estrela até no novo menu do restaurante Maní, de Helena Rizzo, por exemplo.

A prejereba, peixe desprezado por pescadores mas que virou febre entre restaurantes paulistanos por ser à prova de erros, com sua carne branca e suculenta
A prejereba, peixe desprezado por pescadores mas que virou febre entre restaurantes paulistanos por ser à prova de erros, com sua carne branca e suculenta
Reprodução / Instagram @mardireto

Obsessão espanhola

Paulistano do Jaçanã, na zona norte da cidade, Tessuto iniciou sua relação com o mar de forma recreativa ainda na infância, quando os pais hippies viajaram pelo litoral paulista. “Eles acampavam em tudo quanto é praia. Uma história engraçada é que achei uma foto minha, pequeno, em um camping em Toque Toque Grande. Depois fui saber que o dono do camping é pai de um produtor que virou meu amigo. Tenho também memórias fortes em Cananéia, de pescar com meu avô.”

Quando terminou a escola, queria um curso rápido e encontrou o de cozinha, na FMU, com duração de dois anos. “Eu curti muito e um amigo me emprestou um livro do [chef espanhol Ferran] Adrià, que falava da história da cozinha fusion espanhola. Fiquei com aquilo na cabeça, tinha que dar um jeito de ir pra lá”, conta. Em São Paulo, a realidade de Tessuto então era bem menos experimental, embora já trabalhasse em restaurante “de chef”, o Na Mesa, que entre os sócios tinha Alex Atala. “São Paulo era isso, o Alex e alguns franceses. E eu queria algo diferente”, conta sobre a obsessão pela cozinha também chamada de tecnoemocional dos espanhóis.

Cauê Tessuto, que comanda o Mar Direto e distribui peixes da costa brasileira de Norte a Sul do país para restaurantes de alta gastronomia
Cauê Tessuto, que comanda o Mar Direto e distribui peixes da costa brasileira de Norte a Sul do país para restaurantes de alta gastronomia
Rafael Salvador / Divulgação

Com ela na cabeça, o recém-formado deu um jeito de perseguir seus recém-adquiridos ídolos. Mas o dinheiro era curto e, em vez de Madri ou da Catalunha, foi parar em Málaga, na Costa do Sol, onde por quase seis anos frequentou cozinhas subterrâneas de xinringuitos, como é chamada a versão espanhola da barraca de praia brasileira. “Trabalhei nos piores, os mais toscos e rasgueira, fritando peixe por grana mesmo. Não eram nada gastronômicos. E isso foi me desanimando, eu tava meio perdido, queria muito andar de skate pela Espanha, mas aí conheci um cara que foi fundamental para mim.”

Era o hoje premiado chef Fernando Rivarola, que o levou a Argentina com a ideia de abrir um restaurante verdadeiramente gastronômico, baseado em experiências anteriores de casas com estrelas Michelin. De lá, Tessuto foi para o Chile e entendeu que estava pronto para voltar à Espanha.

A relação profissional com o mar se firmou em 2011, quando mudou-se para o País Basco. Lá, em uma cozinha do expoente da cozinha local Martín Berasategui, ele foi parar na praça do peixe, que exigia delicadeza e atenção no manuseio. Sua experiência girou em torno do cais. “Comprava peixes à beira mar, participava de leilões de pesca no porto, cheguei a fazer pesca submarina. Tudo isso foi me dando um barato enorme sobre o caminho do peixe. Passei a pensar nele para além do prato”, conta.

Nasce uma estrela, a sororoca

Esse passado foi fundamental para o Mar Direto porque a descoberta da prejereba como “it fish” e de outras espécies veio de uma necessidade que Tessuto conhecia por também ser cozinheiro. Nos tempos da Peixaria, sem encontrar o que precisava em São Paulo, começou a sair rumo ao litoral semanalmente. Para ter um bom peixe, precisava fazer o processo inverso da cadeia, saber de onde ele vinha, compreender os problemas da produção que faziam com que o insumo não chegasse em seu melhor estado à capital. “E o engraçado é que ele começou a ensinar aos pescadores técnicas para se ter um peixe melhor”, lembra a jornalista especializada em gastronomia Patrícia Ferraz.

Cheguei a trazer pescadores a São Paulo para verem como o peixe chegava aqui, a diferença de um bem tratado para um negligenciado

“Eram coisas muito simples, muito básicas, como gelar o peixe da melhor maneira. Outra questão era o abate. Foi difícil eles entenderem que alguns peixes tinham que ser descartados quando passavam algum tempo na rede. Cheguei a trazer pescadores para São Paulo para ver como o peixe chegava aqui, a diferença de um bem tratado para um negligenciado. Levei alguns para comer nos restaurantes”, lembra Tessuto.

Esse investimento fez com que formasse uma rede de fornecedores bem informados que traziam um peixe mais preservado do que o comum. As compras eram também cada vez maiores. Quando exagerava e trazia mais peixe do que precisava, ligava para cozinheiros amigos para saber se alguém estava interessado em ficar com o excedente.

Foi nessa época que começou a trazer de Cananéia a sororoca, sua primeira grande aposta, uma espécie menos valorizada pelos caiçaras, que preferem a cavala, de tamanho equivalente. Tratada como peixe de segunda linha, ela tem o preço mais barato. Em cada região, desde os mares do Pará, até o Sul do Brasil, assume sabor e textura diferentes. “Para mim, é um peixe incrível, de fibra boa, com um acúmulo de gordura na carne incrível. Quando é assado, não desenvolve sabor metálico. Cru é um dos meus favoritos, tem uma viscosidade ideal e muito sabor”, afirma.

O chef espanhol Daniel Redondo (1977-2023), que dividia então a cozinha do Maní com Rizzo, ficou encantado. “Ele pirou na sororoca, disse que era o mackerel da Espanha, algo que nem sabia que tinha aqui. Ele foi o cara que me deu volume, enfiava a sororoca onde podia, até hambúrguer se desse ele faria. E, para muitos, essa espécie era considerada ‘tranqueira’”, conta. Hoje, de tão reconhecida a sororoca virou até nome de restaurante badalado no descolado bairro de Pinheiros, na zona oeste da capital paulista.

Tessuto fazia incansáveis bate e volta para Cananéia. “Fechava o restaurante no almoço, duas vezes por semana. Se o peixe acabasse rápido demais, eu ia uma terceira vez.” Mas esse vai e vem foi ficando difícil, com seus dois filhos pequenos (o mais velho nasceu em 2011 e o mais novo em 2013). “Ficou impossível conciliar restaurante, viagens e crianças pequenas. Tive que fazer uma escolha.”

A sororoca, que encantou chefs como o espanhol Daniel Redondo (1977-2023), ex-Maní, e que é uma das favoritas de Cauê Tessuto
A sororoca, que encantou chefs como o espanhol Daniel Redondo (1977-2023), ex-Maní, e que é uma das favoritas de Cauê Tessuto
Reprodução / Instagram @mardireto

Burocracia “divertida”e outras tretas

A escolha gerou certa “confusão mental” e ele não abriu mão da ideia de um restaurante tão fácil assim. Instalou a sede de sua distribuidora na Vila Madalena, reduto gastronômico e boêmio da cidade, que poderia ser convertido em cozinha e salão se assim desejasse. Mas rapidamente o novo negócio ocupou o espaço físico e chegaram também os problemas burocráticos.

“Vender peixe simplesmente, pegar do produtor e vender para o restaurante, era ilegal do ponto de vista sanitário. É preciso ter uma série de licenças. Em 2019, vi que a solução seria criar um frigorífico de peixes, que fosse fiscalizado pelo Ministério da Agricultura. Não existia um modelo do que eu queria, ninguém trabalhava com o peixe fresco inspecionado em São Paulo, foram muitos os desafios”, conta.

É difícil acreditar, mas ele jura que foi “divertido” vencer a burocracia, e diz que o fiscal do MAPA, uma figura assustadora naquela época, hoje não mete medo. Outras dificuldades burocráticas continuam a ser vencidas: a cada novo produtor parceiro, uma batalha é travada. E considerando que as viagens e compras de Tessuto se expandiram pelo território nacional — seus parceiros estão nos estados do Amazonas, Pará, Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina — e que agora ele pode vender também para todo o país, você consegue imaginar o tamanho da encrenca.

Acontece que, além de ser o homem do peixe, Tessuto gosta de uma encrenca. E ele dá pistas bem claras disso. Ao comentar sobre o atual estado do mercado de peixes para restaurantes hoje, ele comemora a diversidade de restaurantes especializados, especialmente em relação a quando cozinhava, mas fala sobre uma “ansiedade dos chefs” em reproduzir o que vêem nas redes sociais. “Eles criam uma pressão, uma expectativa que eles não vão conseguir no ambiente nacional. O Brasil não tem estrutura para ter um restaurante tipo o Fish Butchery, da Austrália, que eles querem copiar. Nossa pesca não é como a das da Califórnia, que traz um peixe ‘perfeito’, com morte medular”, diz ao referir-se a uma técnica japonesa Ikejime, que virou febre entre os chefs mais descolados. “Nosso cozido é mais demorado, eles querem o prato antes da hora.”

Adoraria que as pessoas parassem de comer salmão

Também desabafa sobre certa frustração com o paladar nacional. “Adoraria que as pessoas parassem de comer salmão”, declara. Ele avalia que este peixe de sabor mais adocicado e untuoso teve um lugar importante na dieta do brasileiro, foi “educativo” ao mostrar as possibilidades da cozinha japonesa, da não cocção, “uma porta de entrada para muita gente”. Mas acredita que o paladar brasileiro já está “desenvolvido o suficiente” para se aventurar por outras espécies. “Quando vai para esse lugar de monocultura, como ocorre no Chile, faz mal para o consumo. Eu ainda vendo na lojinha virtual, atendo alguns clientes, ele ainda paga minhas contas, mas não é o nosso foco.”

Prove esses peixes brasileiros

Então o que o brasileiro deveria experimentar? Para ele, dois peixes estão no topo da lista. O primeiro é o porquinho, um peixe da estação no litoral norte de São Paulo. Ele lembra que é uma espécie conhecida e popular e disseminada como uma friturinha à beira mar. “Mas há dezenas de outras preparações. Logo que eu comecei a trazer peixes do litoral sul, eu nem os conhecia direito e levava para alguns chefs me ajudarem. O Alex Atala me mostrou que ele cru, como se come no Japão, e o seu fígado eram incríveis. Ele fez um patê com o fígado que foi uma coisa de louco”, conta.

A outra espécie é o bagre branco de mar, cujas ovas têm virado caviar. Sua carne, no entanto, anda longe do hype. “O peixe filhote, que vem do Pará, é tão celebrado, mas ninguém se liga de que ele é um bagre, que é um peixe maravilhoso, cujo preço não disparou. A carne tem suavidade, espinhas fáceis de tirar. Eu adorava cozinhar quando tinha restaurante.”

Ele também já conseguiu espécies inimagináveis para restaurantes supersofisticados, como uma moreia para Ivan Ralston, chef do Tuju. “Eu sempre quis trabalhar com moreia. E ele conseguiu trazer. É um peixe muito interessante de trabalhar porque ele tem uma pele que, cozida, parece de porco, supergordo”, conta.

Mas apesar desses exotismos o best-seller da Mar Direto ainda é um peixe bastante internacional, o atum. Mas, claro, pode assumir certa brasilidade. Tessuto explica que, assim como é comum em outras espécies, ele assume uma personalidade em cada zona de convergência. Isto é, em cada local onde for pescado vai ter um sabor e uma cor específica. “Em cada local ele vai ser um peixe diferente, e eu preciso andar o Brasil inteiro atrás de diferentes atuns para manter o perfil que cada cliente quer”, explica. Dessa forma, a Mar Direto tem atum cearense, potiguar, pernambucano, baiano, capixaba, fluminense.

“Pouca gente sabe, mas o Cauê é um dos maiores distribuidores de São Paulo”, diz o chef Ivan Ralston. “Ele cresceu muito, começou muito pequeno e especializado em restaurantes como o meu, mas hoje atende também operações maiores. Tem uma estrutura muito boa e eu admiro isso, a trajetória de ter conseguido fazer empresa lucrativa, que cresceu tanto.”