Heloisa Teixeira e a cultura na Ditadura Militar brasileira — Gama Revista
Por que não esquecer o golpe de 64?
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Conversas

Heloisa Teixeira: "Acho terapêutico falar do trauma da ditadura, para que não aconteça de novo"

Professora emérita da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras analisa em seu novo livro a influência da ditadura militar e da censura na produção cultural do país durante os anos 1960 e 70

Luara Calvi Anic 31 de Março de 2024

Heloisa Teixeira: “Acho terapêutico falar do trauma da ditadura, para que não aconteça de novo”

Luara Calvi Anic 31 de Março de 2024
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Professora emérita da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Letras analisa em seu novo livro a influência da ditadura militar e da censura na produção cultural do país durante os anos 1960 e 70

Ler Heloisa Teixeira sobre os anos 1960 e 70 no Brasil é ter contato com uma combinação entre pesquisa acadêmica e vivência pessoal. A professora emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que em 2023 tomou posse como imortal na Academia Brasileira de Letras (ABL), não apenas esteve perto da juventude desse período, como realizou entrevistas e escreveu livros e inúmeros artigos sobre o tema.

Foi nas areias das praias cariocas, frequentando os CPCs (Centro Popular de Cultura, ligados à União Nacional dos Estudantes), e em tardes passadas no icônico Teatro Opinião que, ainda jovem, pôde acompanhar de perto as diferentes produções e comportamentos da época. E é como pesquisadora dos movimentos culturais no país que vai dando contorno aos fatos desse período. “Foi uma época de denúncia mas também de muita euforia”, diz a Gama.

Aos 84 anos, Teixeira (que em 2023 abandonou o Buarque de Hollanda, sobrenome de seu primeiro marido) faz uma revisão dessa época em um novo livro. “Rebeldes e Marginais: cultura nos anos de chumbo (1960-1970)” (Bazar do Tempo, 288 pág., R$ 78) relembra a efervescência que vai do começo dos anos 1960 até o golpe militar, em 31 de março de 1964; e o baque de 1968, quando é instituído o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que restringiu liberdades, perseguiu, torturou e matou aqueles que questionassem o regime. O livro traz ainda QR Codes em que é possível ter acesso ao seu material de pesquisa.

O lançamento reune um panorama que vai do Cinema Novo e do Tropicalismo às artes plásticas, culminando na poesia marginal pós-1968, tema no qual ela se aprofundou ao longo de sua carreira. Em 1976, Teixeira editou “26 poetas hoje”, que lançou nomes como Ana Cristina Cesar e Chacal. O livro foi reeditado pela Companhia das Letras em 2021, quando também foi lançado pela editora “As 29 poetas hoje”, reunindo poetas contemporâneas.

Na conversa com Gama, a carioca indica ao leitor as características de cada fase da ditadura no Brasil, tal qual o livro, e ressalta a importância de revisitar fatos históricos sob o olhar do presente.

É um mundo diferente, mas a direita permanece com um papel bastante parecido

  • G |Em 1982, você escreveu “Cultura e Participação nos anos 1960”, com Marcos A. Gonçalves. Como é retomar a esse tema tanto tempo depois? O que mudou na sua abordagem?

    Heloisa Teixeira |

    O que eu queria com esse livro não era uma análise, era um contar dessa época. Eu queria que as pessoas jovens, que não participaram, ou mesmo as que participaram, revivessem aquilo. Então, o cuidado da escrita foi todo de trazer de volta uma emoção, um clima. Eu só mexi um pouquinho no tom, algumas palavras que eram repetidas ad nauseam… “segmentos estudantil”, “a burguesia”. Eram umas palavras de ordem, uns cacoetes de linguagem chatíssimos. Em geral, tentei voltar, pegar os textos mais antigos e revivê-los, mudar um pouquinho, articular. Foi um trabalho em cima de textos que eu já tinha escrito, alguns poucos são novos. Mas a ideia foi escrever como se o período estivesse sendo vivido de novo pelo leitor.

  • G |E você imaginou um leitor específico enquanto escrevia?

    HT |

    Eu imagino aqueles que acham que os anos 60 foram o máximo… e não foram. Foram autoritários, de uma voz só. Mas também foram incríveis. Havia uma paixão que rolava, um sonho inviável, tinha muita voltagem, era erótico, potente, realmente não vi outro [período] igual. Era um momento de virada, inclusive da economia. Os anos 60 foram uma década de economia equilibrada no mundo inteiro. Todo o mundo estava estável, então podia berrar e fazer malcriação à vontade. Quando veio a crise do petróleo em 1973 [que resultou em inflação, recessão e crise energética], e o John Lennon decreta “o sonho acabou” [na canção “God”, de 1970], o sonho acabou mesmo, e aí todo mundo volta para os seus empregos, para suas universidades, tem que trabalhar porque o dinheiro não era o mesmo. Estávamos numa crise econômica brava. Mas a euforia, para o Brasil, acabou com o AI-5, em 1968.

  • G |Quando você lista o provincianismo que o movimento militar trouxe, como a marcha da família por Deus, a ameaça a padres considerados comunistas, a vigilância moral sobre o comportamento, é impossível não relacionar com a atual ascensão da extrema direita no Brasil e no mundo. Como você relaciona esse período do seu livro com os tempos atuais?

    HT |

    Naquele momento, o mundo não era globalizado e nem tinha internet. São duas grandes mudanças políticas e econômicas que vemos hoje, resultando em outro mundo. Eu me lembro que nós éramos contra os Estados Unidos, “abaixo ao imperialismo”. Era mais fácil identificar o inimigo único: o militarismo e os Estados Unidos. Você brigando com os dois dava tudo certo. E hoje não vemos o inimigo, hoje são fluxos econômicos, são interdependências. Há uma lógica global que muda absolutamente tudo, inclusive a direita. Essa direita que está aí é bastante radical. É uma direita com o fundo ideológico até muito mais forte do que o de 64, quando já tinha esse tema dos costumes, de Deus, da pátria, da família. Hoje, além dos costumes, tem uma moral mais complicada, uma pluralidade de gênero que eles chamam de ideologia de gênero, que precisa de uma mão mais pesada para segurar, mais pesada do que antes. Em 1967, um livro proibido foi “Lucia McCartney”, do Rubem Fonseca, que falava de uma prostituta. Hoje o foco [de coerção] está mais nessa pluralidade de gênero. Então é um mundo diferente, mas a direita permanece com um perfil bastante parecido.

  • G |Um tema central do seu livro é o quanto a cultura e a política estavam especialmente próximas. É quando nasce “o novo artista revolucionário”, como você escreve. Havia uma cobrança por parte de movimentos sociais para que a arte do período fosse pedagógica. Na sua opinião, ter essa reivindicação no ar atrapalhou a produção cultural da época?

    HT |

    Antes de 64, com os CPCs [Centros Populares de Cultura, ligados à União dos Estudantes e que tinham como objetivo promover a cultura como forma de conscientização política], a arte era claramente pedagógica. Você ia para as favelas para ensinar, para dizer o que a favela devia estabelecer como demanda. Hoje não dá para ir numa favela e dizer “vocês precisam pedir isso ou aquilo”… E quem fazia isso era a classe média, porque depois de 64 houve uma ruptura forte entre sindicatos, nas ligas camponesas, no movimento operário: tudo isso não teve mais vez, foi tudo desmantelado [pelos militares]. Nesse período você tem o “Opinião” [espetáculo musical], que aparece logo no primeiro ano tematizando isso, veio para botar a questão da ligação entre classe média e classes pobres. Então, no palco tinha o Zé Keti, que era a favela, e a Nara Leão, que era a princesinha da Avenida Atlântica [na Zona Sul carioca]. O Zé Keti pergunta “ei, moça, o que você tá fazendo aqui?”. E ela responde “eu tô tentando”. O Zé Keti conversando com ela diz “qual é? Eu tenho a minha voz. Eu tenho a voz do samba, a voz do morro”. E ela tem que ouvir a voz do morro e tem que aderir, tem que dialogar. É uma peça muito, muito importante.

  • G |É uma peça que no livro você coloca como “uma primeira resposta ao golpe”, um teste em relação aos limites de expressão da cultura e do teatro. Como isso se dava?

    HT |

    Sim, ela traz denúncias que a gente nunca imaginou que fossem passar. O Ferreira Gullar vem em voz off durante a peça inteira dizendo: “Temos tantos milhões de analfabetos, tantos milhões de miseráveis”, ele dá um IBGE geral da miséria enquanto a peça rolava, é uma coisa forte. Depois, a fala do Ferreira Gullar culmina com o “Carcará”. Era Bethânia em uma música violenta, “pega, mata e come”. Então, você vai ter essa convivência e a colocação em pauta da diferença de classes e de que talvez o povo tivesse algo a revelar. É uma época de denúncia mas também muito eufórica. É quando a classe média descobre que não vai falar pro povo, vai falar para ela mesma. Vai formar um segmento político importante dentro da classe média, são jovens que ou vão para guerrilha ou para o rock.

  • G |O que nasce desse movimento?

    HT |

    Cria-se ali, por exemplo, a MPB, que não existia antes. O que é a MPB? É a música popular brasileira de classe média. Porque a música popular brasileira vinha do samba, da favela. E a música popular brasileira criada nos anos 60 vem da classe média. É Chico Buarque, enfim, são famílias ricas, remediadas pelo menos, que não vêm absolutamente do povo. É sobretudo universitária. E então é um gênero novo que demonstra essa formação política da classe média. A universidade começa a ganhar força e a aumentar nesse sentido de massa. O Teatro Opinião foi incrível porque a gente ia para se encontrar, virou quase um laboratório de classe média para pensar o que fazer agora que não existiam mais os apoios populares, que estavam todos presos. E se você se referisse, se tentasse se articular com qualquer segmento popular, iria preso. Com esse corte vimos uma reinvenção da classe média universitária que pega em armas e vai em frente.

  • G |O que teria sido da produção cultural brasileira se não tivéssemos sido surpreendidos pelo golpe de 1964?

    HT |

    Se olhar internacionalmente, a contracultura está muito forte nesse período. A rebeldia, a invenção de outro sistema sem família, sem universidade, sem mercado, então são aqueles grupos que se juntam fora do sistema. “Eu vou saltar fora” significava abandonar aqueles valores e criar um outro mundo. Até 1968, os produtores de cultura no Brasil não se envolveram realmente com a contracultura que já estava acontecendo internacionalmente. Ficaram nos protestos do Teatro Opinião, do Teatro de Arena, dizendo o que pensam e tendo opinião, que era também o lema daquele momento. A coisa de continuar com a sua opinião era muito importante, o “fora a ditadura”, “vamos mudar o mundo.” Depois do AI-5 é que a contracultura foi mais bem-vinda [pelos jovens]. Você já não podia mais fazer isso e aquilo, já entrava censura em todos os lugares, dentro do teatro, dentro da imprensa. Nessa época houve uma pausa na denúncia, no encontro, no confronto. Uma porção de lideranças foi embora. Você tem o tal vazio cultural do qual falou Zuenir Ventura [jornalista, autor de “1968 – O Ano que Não Terminou”], porque todo mundo foi embora para a Europa, para a África, se picaram, então você não tinha mais ninguém aqui segurando aquela cultura eufórica. E quem sobrou estava abatido, sem força, e começa a trabalhar sub-repticiamente.

  • G |É aí que surge a poesia marginal, tema que você investiga na sua tese de doutorado e aparece na última parte do livro ao lado do cinema marginal. Por que esse interesse em ser marginal durante esse período?

    HT |

    Eu comecei a perceber um movimento quase invisível, mas nem tanto, de uma cultura que estava registrando essa experiência. A poesia marginal era tão antissistema que não queria ser publicada por editoras. Então faziam livrinhos domésticos, de mimeógrafo, de offset, todos independentes. Saíam do sistema literário e faziam o seu, que era vender de mão em mão na fila de cinema, no restaurante. Nada mais institucional, agora tudo por baixo. A poesia marginal era uma geração do sufoco, sem informação, amedrontada e que não sabia o que fazer, era muito explícito isso na produção. Tinha um poema do Charles Peixoto que era assim: “Estava às três em ponto de bobeira esperando uma pera cair na minha cabeça”. Um outro livrinho chamado “Quamperios”, do Chacal [pseudônimo do carioca Ricardo de Carvalho Duarte] era a descrição da vida dele estudantil. Ele estava olhando o rabo da professora, mas com olho na porta porque podia ter um espião, um delator ali. Então era todo mundo assim sufocado e amedrontado e, apesar de falarem de outras coisas, o pano de fundo era esse.

  • G |Essa figura marginal aparece em outras frentes das artes. Por que esse interesse permanece?

    HT |

    Uma figura muito importante tanto na literatura de prosa quanto nas artes plásticas, com Hélio Oiticica, é o bandido. O bandido é o rei dessa literatura marginal e Hélio sai na frente com “Seja marginal, seja herói”. Esse marginal é aquele que não concorda com o sistema, uma grande alegoria dos que não aderem à ditadura. E aí, toda aquela representação da polícia que corre atrás, mata, prende o marginal. O bandido significa aqueles que são marginais e que são os próprios artistas. Nessa época, tem os filmes “Matou a família e foi ao cinema” [1969, de Julio Bressane], “O Bandido da Luz Vermelha” [1968, de Rogério Sganzerla]. A arte conceitual desse período é mais explícita. A obra “Trouxas Ensanguentadas”, de Artur Barrio, é uma trouxa cheia de pregos ensanguentada e todo mundo vê aquele sangue soltando, aquela espécie de cadáver. Tem muito essa coisa da representação do cadáver. São denúncias graves, sérias e explícitas, mas mais nas artes plásticas; o restante ficou mais focado no comportamento. Você vê os Novos Baianos entrando aí, o Asdrubal trouxe o Trombone [grupo carioca de teatro formado no final dos anos 1970] que termina a peça com todos gritando “eu tenho o direito de ser feliz!”.

  • G |A que você associa esse interesse do ex-presidente Jair Bolsonaro e de seus seguidores em dizer que a ditadura não existiu? E também a escolha recente do presidente Lula em não promover atos neste aniversário dos 60 anos do golpe. Como você recebe isso e como o brasileiro lida com esse trauma?

    HT |

    Acho que é terrível não falar, é terapêutico falar sobre o trauma [da ditadura] e não deixar esquecer para que não aconteça de novo. Agora, o presidente Bolsonaro trouxe isso muito acintosamente, quando ele votou contra Dilma [durante o processo de impeachment, em 2016], votou a favor do torturador General Ustra, ele fez essa homenagem, então ele trouxe aquilo de uma forma violenta para dentro e pretendeu dar um outro golpe. Já o Lula está evitando mexer com o exército porque o exército não está 100% com Lula, e mexer com os militares aparentemente para o Lula é uma catástrofe neste momento, e ele preferiu passar batido. Seria uma provocação juvenil do ponto de vista dele, não do meu. Eu acho que essas coisas não podem passar em branco, mas ele decidiu assim [porque] eu acho que ele está muito enfraquecido, sem congresso, a situação dele é muito frágil. Eu não sei o que eu faria na situação dele.

Heloisa Teixeira na juventude/arquivo pessoal
Heloisa Teixeira na juventude/arquivo pessoal
Arquivo pessoal