O machismo na cultura geek — Gama Revista
Os nerds venceram?
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Divulgação/Mariana Simonetti

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Reportagem

A vingança dos nerds contra as mulheres

Maiores consumidoras de games e filmes, mulheres têm representatividade pequena e sofrem preconceito na cultura nerd

Ana Mosquera 29 de Maio de 2022

A vingança dos nerds contra as mulheres

Ana Mosquera 29 de Maio de 2022
Divulgação/Mariana Simonetti

Maiores consumidoras de games e filmes, mulheres têm representatividade pequena e sofrem preconceito na cultura nerd

Uma mãe e um filho de controle na mão, e uma família inteira reunida e de olhos vidrados em frente à máquina colorida e luminosa. Essa era a propaganda do Atari, empresa de jogos eletrônicos estadunidense, fundada na década de 1970, por Nolan Bushnell e Ted Dabney. Como comenta em episódio do podcast Quem Somos Nós? a pesquisadora em games e ativismo digital, Beatriz Blanco, o videogame nasceu para a família, mas, após uma queda prematura, só voltou a dar os próximos passos com os jogos ditos “para meninos”.

Nos bastidores, contudo, as mulheres nunca deixaram de jogar – hoje, inclusive, representam mais de 50% dos gamers –, apesar de terem que se adaptar a opções pouco representativas e figuras femininas estigmatizadas. Ainda não é incomum que as personagens de games apareçam ora como princesa e “prêmio” do vencedor da batalha, ora como guerreira erotizada.

Nas salas online, jogadoras se escondem por trás de codinomes e evitam usar a voz para não revelarem sua verdadeira identidade: a de mulher. “Enquanto ser mulher na rua for chato, vai ser chato ser mulher no videogame. Esses espaços virtuais são análogos aos analógicos, e essas coisas se reproduzem”, fala uma das entrevistadas da Gama, que preferiu não se identificar.

Para alguns usuários, por outro lado, utilizar de avatares e pseudônimos tem função distinta: destilar o ódio de gênero, que, nesse caso, tem nome: incel – da expressão involuntary celibates, ou celibatários involuntários. Por definição, esse é a pessoa que alega que a principal culpa pela sua dificuldade de se relacionar e manter uma vida sexual está com elas. As ofensas às supostas vilãs dessa sua narrativa solitária variam em teor e intensidade. Como sintoma do mesmo machismo que atinge outras áreas da sociedade, os comentários resvalam na aparência e na capacidade intelectual dos alvos femininos, e o assédio pode ir do moral ao sexual.

Enquanto ser mulher na rua for chato, vai ser chato ser mulher no videogame

Se alguns discursos misóginos permanecem nos chans (fóruns anônimos) da deep web ou em canais mais nichados da cultura geek, as opiniões sobre as adaptações dos quadrinhos para as telas do cinema, assim como esses produtos, chegam ao mainstream com mais vitalidade. Entre casos famosos de assédio virtual, estão o da atriz Natalie Portman, questionada sobre seu porte físico antes mesmo de começar os preparativos para viver a Poderosa Thor, o de Brie Larson, a Capitã Marvel, cancelada pela participação em uma comédia romântica de 2013, e o de Kelly Marie Tran e Daisy Ridley, ambas da saga Star Wars, que se afastaram das redes sociais por longo período após ataques cibernéticos.

Kelly Marie Tran e Daisy Ridley  Divulgação

Outra polêmica recente envolveu a escolha de uma atriz negra, Halle Bailey, para interpretar a sereia Ariel no remake live action, da Disney, previsto para ser lançado em 2023. “Eu acho interessante que temos lendas sobre sereia em praticamente todos os lugares do mundo. Mas a gente está falando de sereias, que são seres que não existem! Tem a questão do racismo, mas tem a maneira como consumimos audiovisual. A gente não consome aquelas obras como se fosse um material que te afeta como arte ou não, consome hoje como se aquilo nos pertencesse e não pudesse ser alterado”, diz Thaís Hern, roteirista e colunista do PerifaCon, portal do grupo que criou a primeira Comic Con das favelas.

“Tem uma coisa no fandom [grupos de fãs] que é defender a essência. Eles se sentem donos desse texto midiático que eles adoram“, acrescenta Giovana Santana Carlos, pesquisadora de cultura pop e cultura de fãs, sem deixar de citar a tal “carteirinha nerd”, que é cobrada das mulheres o tempo todo. Bastou elas saírem com uma camiseta deste ou daquele personagem, jogo ou banda para terem que provar que entendem do assunto.

É nessa mulher geek que o nerd saudosista vai encontrar o mais conveniente bode expiatório. “Ser homem é ter direito a esse privilégio no mundo e se eu não tenho me ressinto e sinto raiva de quem está tomando esse espaço”, fala a entrevistada da Gama que optou por manter sua identidade em sigilo, relembrando o nascimento de discursos conservadores e conspiratórios dentro de fóruns virtuais, há mais de dez anos.

Playground masculino

Mas não é só quando à frente dos filmes, dos games e dos quadrinhos que a presença feminina incomoda. Nos bastidores, ainda é restrito o número de autoras, diretoras, roteiristas, desenvolvedoras, apresentadoras e produtoras de conteúdo. “Tem que ser diverso não só com a câmera ligada, para que essas discussões consigam produzir algo novo”, fala Hern sobre o interesse financeiro das grandes franquias em promover a diversidade nas telas.

Quando elas aparecem na produção, entretanto, a diversidade e a representatividade ficam evidentes pelo conteúdo. Carlos dá o exemplo de Red – Crescer é Uma Fera, primeira animação da Pixar com equipe exclusivamente feminina, que tem como diretora a sino-canadense Domee Shi. O filme conta a história da protagonista Meilin Lee, garota tida como desajeitada, e cercada por três amigas bem autênticas, que se transforma em panda vermelho quando atingida pelas fortes emoções da adolescência.

O universo geek é um playground muito masculino. É uma batalha bem grande para mulheres se afirmarem ali

Infelizmente, a exceção prevalece, e a oferta vem em desequilíbrio com a demanda. Se metade do público da Marvel é formado por mulheres, por que a presença de temas que envolvem o universo feminino ainda é tão irrisória? “Eles não fazem coisas específicas para meninas, porque elas consomem coisas que seriam só para homens. O contrário não acontece“, revela Carlos. Também pesquisadora de romances de amor, ela conta que enquanto esses raramente contam com leitores, os livros de fantasia e ficção científica são mais aceitos pelos homens, por serem menos sentimentais – ainda que todos sejam classificados como cultura pop.

Para a pesquisadora de sociologia de gênero, Débora Carvalho, é fundamental esse ponto de enxergar as mulheres para além de consumidoras, mas como criadoras dentro do universo geek. “Ainda é um playground muito masculino. É uma batalha bem grande pra gente se afirmar ali”, diz a editora do Garotas Geeks, iniciativa que aborda universo pop e feminismo, no Brasil, desde 2010. Ainda assim, ela vê a nova cena nerd com otimismo, e cita o exemplo da Ms. Marvel, série da Marvel cuja heroína é uma garota de origem muçulmana, que tem roteiro da britânica-paquistanesa, Bisha K. Al.

Ms. Marvel  Divulgação

A jornalista de games e apresentadora do The Enemy, Isadora Basile, também oscila na opinião sobre esse cenário. Ainda que perceba que hoje há mais apresentadoras e mulheres em cargos de liderança, por exemplo, admite que é necessário transpor grandes pedras no meio dessa caminhada. “A perspectiva que tenho é que, como estamos em menor número, sempre tem uma comparação muito absurda. Principalmente os ‘caras’, eles nunca conseguem enxergar uma parceria entre mulheres”, desabafa, sobre o incentivo à competição dentro das empresas, como se só houvesse espaço para “a melhor” representante do sexo feminino.

Além disso, existe a questão do assédio – moral e sexual, ambos bem exemplificados nos casos que envolvem uma das maiores empresas de games do mundo, a Activision Blizzard –, que afetam tanto o lado profissional quanto emocional das trabalhadoras do meio. “É muito ‘terra sem lei’, porque sempre acontece alguma coisa, a gente olha esse absurdo e vê que deu meio passo para frente”, comenta Basile. Para ela, as mulheres não são vistas como seres humanos, “A gente é um degrau pro homem fazer a caminhada do herói dele até a maturidade absoluta”.

Quem lacra só lucra

“‘Virou mainstream só porque mulheres começaram a assistir mais e não estão tão dedicadas quanto eles. Tem minoria, não presta. Mulher sendo protagonista ou tão forte quanto personagem masculino, é lacração'”, Carvalho dá exemplos de comentários escutados na esteira da máxima “Quem lacra não lucra”, que também respinga no universo nerd. Junto à misoginia, ataques racistas e lgbtfóbicos também são disseminados por nerds radicais, conferindo hostilidade aos lugares que deveriam ser ocupados por todas, todos e todes com segurança. Além das consequências morais e físicas do preconceito, se não há diversidade, a troca de aprendizado fica prejudicada.

“A gente não é dono do conhecimento”, compartilha Hern. No PerifaCon, a proposta é cruzar assuntos que são pertinentes à população periférica com temas atuais, além de facilitar o acesso a esse tipo de evento. “Nós não chegamos a esses espaços, nós somos novamente invisíveis. Existem camadas de opressão dentro desses nichos. Não somos nem vistas como pessoas que consomem. Quando vistas, e aceitas, estamos no grupo da sexualização”, ela pontua, sobre as mulheres negras, e diz que considera a periferia um espaço menos hostil dentro da cultura geek, “Porque são locais matriarcais. Porque temos uma presença muito maior de mulheres envolvidas em projetos sociais e sendo líderes nas famílias”.

Hern rememora que as minorias sociais consomem cultura nerd há muito tempo, fato anteriormente ignorado por quem domina esses locais. “Agora as pessoas estão mais vocais. Eu sinto que as mulheres se sentem mais à vontade para falar se gostam ou não da cultura pop”, acrescenta Carvalho, lembrando que é inevitável e imprescindível que os discursos que tangenciam a sociedade marquem presença no mundo geek, “Não tem arte que exista alheia à sociedade”.

Fato é que a estrada da mulher geek não é tão pavimentada quanto a do homem nerd, por isso é preciso ir “acumulando vidas” e parceiras de jornada para fazer desse trajeto um pouco mais saudável.

Para Basile, é fundamental que a mídia cubra e se posicione com relação aos casos de assédio, “É uma luta que vai estar sempre presente. Sinto que tem coisas que melhoraram, sendo que tudo era mato. Mas eles [os homens] têm um escudo imenso em volta deles“. Na opinião de Carvalho, entre outras coisas, é preciso dar mais espaço para as mulheres, para que o foco saia do gênero e fique na qualidade do seu trabalho. Segundo Hern, a questão é tomar os espaços e valorizar os que já existem, sem dar fôlego para gritos preconceituosos. “Quanto mais conseguir produzir o que é positivo, mais pessoas se sentem inspiradas. Eles precisam entender que tem coisas sendo feitas e que não são só eles que falam”, finaliza a integrante do PerifaCon.