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ReportagemQuanto vale um spoiler?
Uma das entidades mais temidas pelos fãs, o spoiler vem ditando regras e integra estratégias de marketing dos grandes estúdios de Hollywood
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Quanto vale um spoiler?
Uma das entidades mais temidas pelos fãs, o spoiler vem ditando regras e integra estratégias de marketing dos grandes estúdios de Hollywood
No ano de 1971, o roteirista e escritor americano Douglas Kenney teve uma ideia ousada que viria a mudar a indústria audiovisual — mas ele, é claro, não fazia ideia nenhuma disso. Cofundador e editor da revista National Lampoon, então o suprassumo do humor satírico baseado na cultura pop, ele propôs revelar na revista o twist de alguns grandes filmes e livros, de “Cidadão Kane” (1941) a “Psicose” (1960), como uma forma de evitar o incômodo de precisar assistí-los ou lê-los. “Poupa tempo e dinheiro!”, declarou ironicamente. A essas revelações ele deu o nome de spoilers.
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O termo já dizia a que vinha em sua própria tradução. Derivado do verbo spoil, que significa estragar, o spoiler pode ser lido como um verdadeiro estraga prazeres. Em mais de 50 anos desde a sua criação, a palavra foi ganhando notoriedade a ponto de se tornar um dos maiores medos de qualquer fã de cinema ou TV. E não é para menos. Imagine ficar sabendo com detalhes o final de “Sexto Sentido” (1999) ou os twists de “Parasita” (2019) antes mesmo de assistir.
Como com grandes poderes também vêm grandes responsabilidades, o impacto sem precedentes que o spoiler tem sobre a comunidade nerd vem frequentemente sendo usado como arma, para o “bem” ou para o “mal”. Se o diretor Alfred Hitchcock aplicou a tática do segredo absoluto para alavancar a bilheteria de seu “Psicose”, pedindo que a plateia não revelasse pontos-chave da trama, há também casos como o da comediante americana Rosie O’Donnell, que revelou o twist final do filme “Clube da Luta” (1999), do qual não era grande fã, em seu talk show. Spoilers, aliás, também já foram usados como arma contra filmes em outras ocasiões. O longa “Instinto Selvagem” (1992), por exemplo, foi alvo de ativistas que berravam a conclusão da trama em filas de cinema como protesto contra a forma como ele retratava personagens LGBTQIA+.
Cenas dos filmes “Clube da Luta” (1999) e “Psicose” (1960) Divulgação
Mas, se spoilers são assim tão execrados pelo público, significa que a indústria audiovisual faz tudo ao seu alcance para evitar qualquer tipo de vazamento, certo? No geral, a resposta é sim, mas a questão é mais complicada do que parece. “Os relações públicas de Hollywood sempre souberam controlar as informações que eles querem ou não vazar”, revela o jornalista, crítico de cinema e escritor Franthiesco Ballerini, autor de “História do Cinema Mundial” (Summus, 2020). Ele lembra dos acordos de confidencialidade assinados por jornalistas e influencers que têm acesso prévio a um filme ou série. “Quando esses embargos existem, é porque elementos ao longo da trama, como um gancho para um próximo filme ou spinoff, existem. Isso realmente pode vazar.”
O multiverso dos spoilers
Essa preocupação, inclusive, não se limita só a longas e séries de ficção. “Existem histórias muito famosas aqui no Brasil de telenovelas que faziam um controle muito rígido, gravando o último capítulo no dia da exibição. O que é uma doideira, considerando todo o processo de edição e finalização”, aponta Ballerini. É assim que segredos como quem matou Odete Roitman na novela “Vale Tudo” (1988-1989) historicamente vêm sendo guardados a sete chaves por aqui.
Todo esse tipo especial de proteção movimenta um montante relevante de dinheiro dentro das mais variadas mídias. Lá em 2007, a editora britânica Bloomsbury gastou cerca de 10 milhões de libras numa estratégia para impedir o vazamento do último livro da saga Harry Potter — que, ainda assim, acabou pipocando na internet alguns dias antes do lançamento oficial.
Como os nomes dos finalistas da temporada 2021 do reality show MasterChef Brasil vazaram com meses de antecedência, a Band e a Endemol Shine, empresa responsável pelo formato no mundo todo, optaram por gravar dois finais diferentes para o programa. Assim, evitaram que o público soubesse o principal resultado de antemão, já que o último episódio precisou ser gravado com antecedência devido à pandemia — geralmente, esse anúncio acontece ao vivo. A Endemol Shine Brasil esclarece que já teve que lidar com vazamentos inúmeras vezes, o que também mostra a relevância dos programas e formatos que produz. “Se estão falando e especulando sobre eles, é porque causam interesse e desejo nas pessoas. A audiência só especula em cima do que gosta”, afirma o vice-presidente de criação da empresa, Eduardo Gaspar.
Ainda existe no ar uma dúvida sobre se os spoilers ajudam ou atrapalham, já que vazamentos de determinadas informações, como nomes de finalistas ou vencedores, podem até incentivar o público a assistir e raramente geram perda de interesse ou queda de audiência, diz o executivo. “No fim das contas, o que a audiência quer é acompanhar todo o desfecho, checar se aquela pessoa ganhou mesmo e como tudo se desenrolou até aquele momento.” Apesar de a Endemol manter cláusulas de confidencialidade com todos os envolvidos em suas produções, Gaspar admite ser difícil guardar essas informações a sete chaves, mas enfatiza a importância do elemento surpresa para essa modalidade de produção. “É uma situação que faz parte, por isso a ideia é justamente utilizar essas fofocas para também espalhar uma propaganda e criar um buzz em torno dos formatos.”
Inimigo ou aliado?
Em relação ao cinema, os spoilers também nem sempre são tão nocivos assim para a trajetória de um filme. O nacional “Tropa de Elite” (2007), por exemplo, ganhou fama inicialmente não só por um ou dois spoilers, mas porque o longa inteiro vazou na internet, indo parar nas bancas e camelôs de todo o Brasil — o que não impediu que ele virasse também um sucesso de bilheteria, assim como sua continuação. Mais recentemente, o filme “Homem-Aranha: Sem Volta para Casa” (2021) se revelou um marco na cultura nerd, permanecendo por meses antes da estreia como um dos assuntos mais comentados da internet justamente por conta de especulações sobre a presença das versões do herói vividas por Tobey Maguire e Andrew Garfield, que acabaram se confirmando.
O último exemplo levanta até uma dúvida quanto à existência de vazamentos controlados pelos estúdios para gerar hype, de acordo com o pesquisador de história do cinema e mercado cinematográfico Pedro Butcher. “É um caso em que não vai fazer tanta diferença. Não é que menos pessoas vão ver o filme por causa do vazamento”, afirma Butcher, que lembra que as redes sociais tornaram o engajamento e a dinâmica com o público muito mais intensa nos últimos anos. E, se tem uma coisa que atiça a comunidade nerd online é a possibilidade de discutir pontos importantes do roteiro e teorias sobre seus filmes e personagens favoritos. “Hoje existe toda uma tensão entre o que pode e o que não pode ser controlado.”
Para Ballerini, se a informação foi revelada de caso pensado pelo estúdio, se trata de uma estratégia válida. “É sim um spoiler, pois você está contando parte do desfecho da história, mas, por outro lado, é também uma informação que envolve a produção do filme”, diz o escritor. “O fã do Homem-Aranha não ficaria tão irritado, enquanto a natureza do spoiler é irritar, porque ninguém gosta de saber o final antes.”
Segundo Butcher, o atual interesse despertado pelos spoilers, no entanto, revela uma preocupação excessiva com o conteúdo em detrimento de outros aspectos. Apesar de ter sido um dos primeiros a usá-los para atrair a atenção para um de seus filmes, de acordo com o pesquisador, Hitchcock sabia que a base de um bom suspense não era surpreender o público. Pelo contrário, o cineasta costumava entregar de cara os vilões e mistérios de suas tramas — “Psicose” foi uma notória exceção. A questão é que, embora os espectadores soubessem de tudo, o protagonista continuava no escuro. “Então você via o vilão instalando uma bomba debaixo de uma cadeira e logo depois o herói se sentando ali”, exemplifica Butcher. “Talvez o que Hitchcock tenha percebido é que um filme era uma experiência mais sensorial do que conteudística. O que uma obra te proporciona influencia mais suas emoções do que sua capacidade de acompanhar a história.”
A indústria dos spoilers
Apesar de uma ênfase no grande segredo da trama ser uma estratégia de marketing utilizada há tempos no cinema, hoje os filmes usam o spoiler principalmente como uma ferramente de escassez, afirma a youtuber Míriam Castro, conhecida como Mikannn — assim mesmo, com três enes, como ela frisa no início de seus vídeos. “Você vai ver o quanto antes porque precisa saber o que estão guardando para o público, mas só quando você assistir. Ninguém quer descobrir o segredo através de algum comentário no Twitter.”
Em seu canal no YouTube, onde fala aos fãs de cultura pop, abordando de filmes e séries a animes e mangás, Mikannn invariavelmente inclui um aviso sempre que analisa uma produção recém-lançada: sem spoilers. Apesar disso, ela é contra a corrente atual, que é forte na comunidade nerd e considera que qualquer informação sobre o enredo de um filme pode estragar a experiência de assisti-lo. “As pessoas desvirtuaram um pouco o termo. Tem gente que pensa que o Homem-Aranha usar uma determinada roupa é spoiler. Eu não acho que seja, pelo menos para a maioria do público.” Entre os spoilers de verdade, daqueles que irritam assim que você ouve, ela inclui mortes de personagens, casais que terminam juntos e reviravoltas, como a revelação do grande vilão da trama.
Presente em sequência do trailer de “Vingadores: Guerra Infinita” (2018), Hulk não aparece na cena do filme Divulgação
As tentativas da indústria de manter ocultas partes importantes das tramas também têm levado a mudanças profundas na forma como estúdios divulgam suas superproduções. E poucas coisas são tão reveladoras dessa tendências quanto os trailers. No caso da Marvel, afirma Mikannn, alguns dos últimos exemplares não só tentam iludir o público como chegam a mentir, incluindo ou apagando digitalmente personagens de determinadas cenas. Aconteceu no trailer de “Vingadores: Guerra Infinita” (2018), que incluía uma aparição do Hulk em todo seu glorioso verde oliva, personagem que (spoiler alert!) praticamente não dá as caras no filme. “Isso também acontece porque as empresas que fazem os trailers não são as mesmas que produzem os filmes. Há uma tentativa de evitar spoilers, é claro, mas eles talvez nem saibam qual a trama geral”, aponta a influenciadora.
De acordo com a youtuber, os estúdios ainda podem “vazar” roteiros ou informações falsas como forma de confundir os espectadores e diluir a atenção recebida por vazamentos reais. Ou então, em casos extremos, vale até fazer ameaças. Foi o que aconteceu com os roteiristas de “Westworld”. Irritados com o fato de que fãs adivinharam boa parte das reviravoltas da primeira temporada da série, eles prometeram postar um vídeo detalhando todos os principais twists da segunda temporada. Porém, no final tudo acabou se provando uma grande brincadeira para assustar os fãs.
O monstro escondido
Existe uma grande contradição no fato de que os nerds, que costumam fugir de spoilers como de zumbis famintos, são as mesmas pessoas que buscam e até criam teorias na internet antes que o próximo episódio da sua série favorita vá ao ar, diz Richard Greene, professor de filosofia da Weber State University, em Utah. Greene, que é autor do livro “Spoiler Alert!” (Open Court, 2019) , sobre a filosofia dos spoilers, lembra do caso daqueles que chegam a ir até sets de filmagens para depois relatar tudo que viram na internet. “Pode ser que pensem que não se tratam de spoilers ou então a necessidade de ser o portador das boas novas se torna irresistível demais.”
Para o especialista, toda a conversa sobre spoilers funciona como publicidade gratuita na conta dos grandes estúdios, suspeitos de botar lenha na fogueira. “Minha impressão — e eu não tenho nenhuma evidência disso — é que os próprios estúdios começam as campanhas contra spoilers nas redes sociais um mês antes do lançamentos, como forma de incentivar as pessoas a falar do assunto.” Mas a própria inclusão de um aviso para não revelar o final de uma trama faz com que o público tenha vontade de fazê-lo, diz Greene. Sem contar que, quando você faz esse tipo de coisa, acaba chamando atenção demais para suas habilidades narrativas e, caso não corresponda às expectativas, pode decepcionar. “Se você não é um Hitchcock, corre sim um certo risco.”
Na opinião da influencer Mikannn, uma mensagem direta como essa para o público liga imediatamente o alerta para uma possível reviravolta na história, o que em si já é um grande spoiler. “Quando você faz as pessoas assistirem ao filme só para saber o final, elas deixam de prestar atenção no resto e ficam tentando adivinhar o tempo todo. Isso pode matar a experiência.” “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” (2022) foi um dos longas recentes que geraram grande interesse e uma dose considerável de teorias e especulações antes mesmo do lançamento, já que sua história permitiria uma infinidade de participações especiais. E, embora o estúdio não tenha dado indicações de nada disso, a alta expectativa que se criou acabou decepcionando muita gente. “O filme entregou muitos crossovers, só não foi o que as pessoas acharam que ia ser”, conta Mikannn.
A youtuber faz um paralelo ao lembrar que, quanto menos se sabe sobre o monstro de um filme de terror, mais assustador ele se torna. “Quando você apresenta o monstro em todos os detalhes, as pessoas conseguem ver que ele é feito de espuma.” Algo pareceido estaria acontecendo em relação aos spoilers. “Se você diz que não se pode contar a trama de um filme para ninguém, porque é muito impactante, nada que fizer vai superar a expectativa que a pessoa colocou. É aquilo, a imaginação humana não tem limites.”
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