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EspecialA luta nunca termina
Sob o guarda-chuva LGBTQI+, cada letra guarda uma história que merece ser ouvida, celebrada e defendida. Gama elencou marcos históricos e conquistas que definiram a batalha por direitos no Brasil e no mundo
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EspecialA luta nunca termina
Sob o guarda-chuva LGBTQI+, cada letra guarda uma história que merece ser ouvida, celebrada e defendida. Gama elencou marcos históricos e conquistas que definiram a batalha por direitos no Brasil e no mundo
Stonewall: a luta ganha visibilidade
O incontornável marco na luta por direitos fez meio século ano passado. Tudo começou na virada de 28 para 29 de junho de 1969, em Nova York, numa época em que se relacionar com alguém do mesmo sexo era ilegal. Foi quando a repressão policial contra homossexuais e travestis se deparou com um “basta” no bar Stonewall Inn.
Pedras foram atiradas contra a polícia. Prisões ocorreram, num motim que entrou para a história como início de uma revolução. +“Stonewall se tornou icônico, pois ocorreu no contexto pós-68, na onda de protestos contra a Guerra do Vietnã e por direitos civis”, explica Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp. “Foi um ponto de inflexão.” Na época, a cobertura se restringiu a notinhas em jornais. Mas, para a comunidade LGBTQI+, seria o estopim para uma batalha longa e sem volta.
O próprio marco seria alvo de disputa — simbólica. “Nos anos 70 surgiu uma onda, cooptada pelo mercado, que impôs não só um padrão de macho entre os gays como consolidou a hegemonia GGGG”, diz Quinalha. A narrativa, apropriada por homens CIS brancos gays, contava um só lado da história.
Nos últimos anos, porém, Stonewall tem sido ressignificada, destacando a participação de mulheres trans como Marsha P. Johnson. “Pra gente, Stonewall existe a partir da luta dela”, diz a ativista Symmy Larrat. “Afinal, tudo começou com a população negra”, frisa Washington Dias, da Rede Afro LGBT. “Foram os corpos negros que enfrentaram a polícia, como sempre”, diz. “Agora sabemos que a primeira pedra foi jogada por uma lésbica negra”, conclui Quinalha. Hoje, a maioria do espectro da sigla se reconhece em Stonewall.
Tudo começou com a população negra. Foram os corpos negros que enfrentaram a polícia, como sempre
ASSISTA
The Death and Life of Marsha P. Johnson (2017), filme parte da morte suspeita da ativista para contar sua história de luta
Happy Birthday, Marsha! (2018), documentário que mergulha na vida da travesti horas antes da revolta de Stonewall
Sylvia Rivera: A Tribute (2012), sobre a história da fundadora do movimento transgênero nos Estados Unidos
Stonewall Outloud (2019), dos produtores de Rupaul’s Drag Race, com depoimentos raros encontrados em arquivo
O orgulho veio para ficar
Prova de que a “revolta de Stonewall” daria impulso a um movimento sem fim de luta por direitos é que, já no ano seguinte, no aniversário do incidente, as primeiras paradas do orgulho gay ganharam os Estados Unidos, espalhando-se nos anos seguintes pela Europa: em Londres, a primeira ocorreu em 1972, no aniversário de três anos do evento; em 30 de junho de 1979, aniversário de dez anos da revolta, foi a vez de Berlim.
Aos poucos, elas chegaram à América Latina, à Ásia e à África nos anos 90, ocorrendo mesmo em países onde ser gay ainda é ilegal. E assim junho se tornou o mês oficial do orgulho e da diversidade LGBTQI+.
ASSISTA
“Divinas Divas” (2016), filme brasileiro sobre as drags que se apresentavam no Teatro Rival nos anos 1960
“São Paulo em Hi-Fi” (2013), resgata a era de ouro da noite gay paulistana, dos anos 60 a 80, do glamour à ditadura e à AIDS
OUÇA
“Lola” (1970), de The Kinks, música sobre uma mulher diferente, que “andava como uma mulher, mas falava como um homem”
> No final desta matéria, escute a nossa playlist de hits que marcaram o movimento LGBTQI+
ASSISTA
“That Certain Summer” (1972), primeiro filme de temática gay feito para televisão
“Cabaret” (1972), musical de John Van Druten sobre um triângulo bissexual, adaptado por Bob Fosse ao cinema, com Liza Minelli
“Dzi Croquettes” (2009), documentário sobre o grupo de teatro mais transgressor do Brasil, com seus atores cheios de purpurina
OUÇA
“Walk on the Wild Side” (1972), de Lou Reed, canção sobre uma mulher trans, de um músico icônico da diversidade sexual
Gay na política? Vai ter sim
Quem viu Sean Penn no filme de Gus Van Sant (“Milk”) conhece o primeiro homem abertamente gay a ser eleito a um cargo público na Califórnia, Estados Unidos. A eleição de Harvey Milk em 1977 (e seu assassinato um ano depois) foi um marco na luta por representatividade na vida pública.
Só oito anos depois de Stonewall, um supervisor da cidade defendia políticas públicas para a comunidade LGBTQI+. Foi de Milk, aliás, o pedido para que o artista Gilbert Baker desenhasse um símbolo para o movimento — a bandeira do arco-íris ganhou as ruas em 1978, representando até hoje a causa da diversidade em todo o mundo. Mas sua eleição foi ainda mais marcante: afinal, o país perseguiu homossexuais no serviço público até os anos 60, lado pouco conhecido da caça às bruxas do macartismo.
Em 1953, o presidente Eisenhower declarou que gays e lésbicas eram uma “ameaça” e logo “inadequados” para o serviço público. Milhares perderam empregos, o que ficou conhecido como The Lavender Scare. Milk, na contramão, foi a prova de que ia ter gay na política sim.
ASSISTA
“The Times of Harvey Milk” (1984), documentário sobre a vida do político e ativista
OUÇA
“I Feel Love” (1977), de Donna Summer, que antecipou a modernidade eletrônica das pistas gays
“I Will Survive” (1978), de Gloria Gaynor, música que foi trilha de “Priscila: A Rainha do Deserto”, virando hino gay insuperável
Uma luz para os gays na esquina
“Mas qual é o crime deste rapaz?” Eis a manchete da edição zero do primeiro jornal a abordar as questões da comunidade gay no Brasil — em plena ditadura militar.
O “Lampião da Esquina” foi fundado no Rio na dita distensão da ditadura, quando “ventos favoráveis” insuflavam ideias democráticas, como dizia o editorial “Saindo do gueto”, assinado por um conselho com Darcy Penteado, João Silvério Trevisan e Aguinaldo Silva. A partir daí surgiria o “Somos: Grupo de Afirmação Homossexual”, primeiro do tipo no país, na onda de insurreição contra o autoritarismo vigente que ganhava força com os movimentos negro e feminista.
Uma luta encabeçada em parte pelo ativista João Antônio Mascarenhas — foi quem convidou o editor do “Gay Sunshine”, de São Francisco, a vir palestrar no Brasil em 1977, o que resultaria na organização do jornal. Já havia panfletos de temática gay, como “O Snob”, distribuído em cafés e bares da noite carioca. Mas “O Lampião” foi a primeira publicação a debater questões políticas e lutar por direitos e visibilidade. O acervo foi digitalizado — o que permite um vislumbre sobre como era ser gay no Brasil de então.
ASSISTA
The Hope Speech, de Harvey Milk, pronunciado em 1978 em frente à prefeitura de São Francisco, aqui lido por Sir Ian McKellen
OUÇA
“Don’t Stop Me Now” (1978), do Queen, primeira música do grupo a trazer a homossexualidade (e o hedonismo) de Fred Mercury à tona
“YMCA” (1978), do Village People. A letra sobre a diversão de garotos nas academias de ginástica cristãs viraria hino gay
O “Stonewall brasileiro”
1980 foi um ano nevrálgico: é quando se dá o Primeiro Encontro Brasileiro de Homossexuais, em São Paulo, marco da organização do movimento em escala nacional, e também quando ocorre o primeiro protesto da causa — contra a “Operação Limpeza” promovida pelo delegado José Richetti no centro de São Paulo.
“A polícia passava pelas áreas de frequência gay da República e prendia por vadiagem”, explica a antropóloga Regina Facchini, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, que pesquisou por muitos anos a história do movimento LGBTQI+.
Homossexuais, travestis e prostitutas eram sistematicamente espancados. Até que um grupo de homossexuais, com ajuda dos movimentos negro e feminista, organizou um protesto nas escadarias do Theatro Municipal, em 13 de junho de 1980. “Para muitos, foi o Stonewall brasileiro”, diz Facchini — foi a primeira vez que se marchou contra a repressão e o preconceito lgbtfóbico no Brasil (muito antes de o termo existir). 1980 também foi o ano de fundação do Grupo Gay da Bahia, o primeiro grupo de luta contra a homofobia no país.
A luta por direitos começava também no Brasil, oficialmente.
OUÇA
“I’m Coming Out” (1980), de Diana Ross, virou marco para os LGBTQI+ por sua letra alusiva ao ato de sair do armário
O L da sigla pede voz
Também conhecido como “Stonewall brasileiro”, o episódio ocorreu no Ferro’s Bar, em São Paulo: foi após um grupo de lésbicas ser expulso por divulgar um jornal ativista. “Elas podiam frequentar, gastar o dinheiro delas ali, OK. Mas se manifestar — aí já era demais”, diz Facchini.
Foi a gota d’água em uma situação de invisibilidade que ocorria no “movimento” — mesmo no grupo Somos, elas não tinham igualdade com os gays. Um desentendimento deu origem ao Grupo de Ação Lésbica Feminista, que, em 1981, lançou o ChanacomChana, primeira publicação ativista lésbica do país. E era no Ferro’s que elas a divulgavam.
Com a expulsão das ativistas pelos donos, o GALF entrou em ação, organizou um protesto, chamou a imprensa e fez os donos voltarem atrás. Hoje, a data marca o Dia do Orgulho Lésbico no país.
A AIDS une a luta
Desde que a dita “peste gay” passou a frequentar o noticiário no começo dos anos 1980, ela serviu de justificativa crescente para o preconceito e a ignorância. “A doença foi um baque para o crescimento do movimento nessa época”, diz a pesquisadora Regina Facchini.
“Era o câncer gay, um castigo divino, o que incentivou ainda mais a violência e o preconceito.” Muitos voltaram para o armário, grupos ativistas se dissolveram: era um corolário sombrio. Mas 1985 marca um ponto de inflexão no que parecia uma derrocada para o jovem movimento gay. É quando foi fundado o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (GAPA), primeira ONG da América Latina na luta contra o HIV — e é quando é criado o programa federal de controle da AIDS. Foi fruto justamente da pressão do movimento que nascera poucos anos antes focado em direitos civis e libertação sexual, acabara se desintegrando por causa do estigma da doença e que, por fim, se uniu em prol do combate à AIDS.
É em 1985 também que surge o grupo Triângulo Rosa, do Rio, que se junta aos outros, como o Grupo Gay da Bahia, de Luiz Mott, no apoio às vítimas e às campanhas de esclarecimento — mas também numa luta mais simbólica: pressionar o Conselho Federal de Medicina a retirar a homossexualidade da lista de doenças. Em plena epidemia, os gays brasileiros conseguem uma conquista inédita, anos antes de europeus e americanos. Do estigma nasceu a força.
OUÇA
“Codinome Beija Flor” (1985), de Cazuza, fala de um amor entre dois homens — o nome do “muso” estaria contido na letra
Ser gay não é doença
Há 30 anos, ser gay não é oficialmente uma doença. Foi só em 1990 que a Organização Mundial da Saúde retirou a homossexualidade da lista de distúrbios psiquiátricos de sua Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID), espécie de bíblia utilizada como referência por médicos mundo afora. Mas foi uma conquista pela metade.
A transexualidade só deixou de ser doença para a OMS em junho de 2018. Ainda hoje, segundo a Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Trans e Intersexuais (ILGA), ser LGBTQI+ é crime em cerca de 70 países — em alguns, a punição é a pena de morte.
OUÇA
“Being Boring” (1990) do Pet Shop Boys, primeiro grupo gay a fazer sucesso mundial
“Vogue” (1990), de Madonna, trouxe a cultura dos ballrooms, da cena drag negra americana, para o mainstream pop
ASSISTA
“BPM” (2017), narra a luta do grupo ativista francês ACT UP para alertar sobre a AIDS no inícios dos anos 90
A vez do T
“Espaço você conquista. E até então a gente não tinha um”, diz a ativista trans Symmy Larrat, ao falar do dia 15 de maio de 1992, quando foi fundada a Associação de Travestis e Liberados (Astral), no Rio — primeira organização não governamental na América Latina voltada às pessoas trans.
Era o início do Movimento Nacional de Travestis e Transexuais.“O que é um marco, já que o movimento LGBT sempre tendeu a hegemonizar o homem CIS gay como liderança”, diz Larrat. E não se trata só visibilidade. “Voz a gente tinha: as travestis chegam num congresso, dão dois gritos e para tudo. Mas na hora do dinheiro pros projetos, o foco nunca era a gente.”
No mesmo ano, Katya Tapety foi a primeira travesti a conquistar um cargo eletivo no Brasil — vereadora no sertão do Piauí. “1992 foi um marco, porque sempre nos impuseram lógicas que não são as nossas”, diz Larrat. “A partir dali, éramos nós que íamos decidir nossa luta.” Larrat seria a primeira travesti a presidir Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT) — em 2017.
A vez do I
Se existe uma letra na imensa sigla da diversidade que sofre com a ignorância, com o completo desconhecimento, é o I de intersexo. Cerca de 1,7% da população mundial é intersexo, segundo a ONU — a mesma proporção de pessoas ruivas ou de gêmeos, pontuam os ativistas –, mas sua existência ainda é cercada de preconceito e invisibilidade.
O que é especificamente grave, visto que uma cirurgia realizada num bebê pode transformar sua vida para sempre. Não à toa, foi o encontro anual da Sociedade Americana de Pediatria, em Boston, no dia 26 de outubro de 1996, que um grupo de ativistas intersexo escolheu para protestar publicamente, pela primeira vez, contra a “cirurgia cosmética” em bebês nascidos com uma anatomia sexual ou reprodutiva (genitália ou gônadas) que não cabem na definição simples de masculino ou feminino. Atualmente, 26 de outubro é o Dia Mundial da Visibilidade Intersexual.
ASSISTA
“Rent” (1996), de Jonathan Larson, foi um musical que levou o universo queer para a Broadway — depois seria acusado de plágio
OUÇA
“If Madonna Calls” (1996), de Junior Vasquez e Franklin Fuentes. Vasquez introduziu Madonna na cena queer de Nova York
Uma parada do orgulho à brasileira
Entre 1970, ano das primeiras marchas do orgulho nos EUA, e a primeira parada no Brasil, passaram-se quase três décadas. No meio houve uma ditadura e uma epidemia de AIDS, diz a pesquisadora Regina Facchini. O debate, claro, vinha ocorrendo desde antes.
“João Mascarenhas foi ao Congresso debater os direitos dos homossexuais na Constituinte de 1987, o Luiz Mott dava entrevistas na TV, a Marta Suplicy tentou projetos na área. Mas não era discussão para um público amplo.” A parada seria. Tanto que ocorreu no auge de um processo lento de reflorescimento dos grupos e associações Brasil afora.
“Nossa estratégia era a visibilidade pública”, diz Facchini. Não, os homossexuais não eram seres alienígenas com anteninhas, nem uma minoria, eram pessoas que tinham vidas comuns, projetos de felicidade viáveis.”
Há, claro, controvérsias sobre o marco. Em 1995, uma conferência no Rio foi seguida por uma marcha; em Curitiba, centenas se juntaram num pequeno ato. E, em 1996, o mesmo se deu em São Paulo. “Mas a primeira parada pensada como tal foi a de São Paulo em 1997”, diz Facchini, uma das organizadoras. “Ela tinha a nossa cara: não era o desfile de blocos dos Estados Unidos, não era só uma demonstração política depois de um evento, era o evento, e misturava héterossexuais e homossexuais, luta e celebração.”
Hoje, a Parada do Orgulho LGBT atrai mais de três milhões de pessoas — é uma das maiores paradas do mundo.
ASSISTA
“The Puppy Episode”, de “Ellen” (1994), quando a personagem da atriz Ellen DeGeneres assumiu sua homossexualidade
“Will & Grace“ (1998), comédia que retrata a amizade de um homem gay e uma mulher heterossexual
O fim da cura gay. Será?
A prova de que uma conquista precisa ser defendida eternamente é a dita “cura gay”. Mesmo que, desde 1985, a homossexualidade não seja considerada doença pela medicina brasileira, isso não impedia que psicólogos charlatães propagassem a ideia de que seria possível “curar” a homossexualidade.
Em 1999, o Conselho Federal de Psicologia proibiu o “tratamento” da homossexualidade como patologia. Mas, em 2017, um grupo de psicólogos (denunciados por praticar a tal cura gay) conseguiu sentença favorável na Justiça do Distrito Federal para a realização de “terapias de reversão sexual” — o magistrado alegou “plena liberdade científica”.
O caso chegou ao STF, que proibiu de vez a prática no ano passado. Mas o perigo de retrocesso é real. Em outros países, como os Estados Unidos, a cura gay continua, sobretudo ligada a seitas religiosas. Segundo um estudo da Universidade da Califórnia, mais de 700 mil pessoas sofreram “terapia de reversão” no país.
ASSISTA
“Tudo sobre Minha Mãe” (1999), sucesso de Pedro Almodóvar com personagens gays e travestis
“Meninos Não Choram” (1999), talvez o primeiro filme a narrar a história de um homem trans em Hollywood
“Queer as Folk“ (2000), série inspirada na versão britânica (1999), que retratava a vida cotidiana de um grupo de amigos gays
LEIA
“Devassos no Paraíso” (2000), de João Silvério Trevisan, o livro mais completo sobre a história da homossexualidade no Brasil
Vai ter travesti no Congresso sim!
“Nunca vou esquecer: 29 de janeiro de 2004, aquele monte de travestis sendo recebida no Executivo, ocupando o Congresso, sendo ouvidas”, diz Symmy Larrat. Era o lançamento da campanha “Travesti e Respeito”, do Ministério da Saúde, voltada para a cidadania da população travesti e transexual e considerada a primeira iniciativa nacional contra a transfobia no país. Por isso, 29 de janeiro é o Dia da Visibilidade Trans no Brasil.
ASSISTA
“The L Word“ (2004), primeira série devotada ao universo lésbico
Ser LGBT é difícil no Brasil. Ser um LGBT negro é mais
“Mas de que população LGBT estamos falando?”, questiona o ativista Washington Dias ao ser perguntado sobre os marcos históricos na luta LGBTQI+. “Há diversas lutas bem distintas dentro da sigla. As travestis negras, os gays negros, as lésbicas negras são os que sofrem mais violência.” Mas não têm o espaço que merecem no guarda-chuva da diversidade.
Pois não basta expandir a sigla para contemplar outras vozes em termos de orientação, identidade, gênero — é preciso lembrar que classe e raça são marcadores de desigualdade que reproduzem o discurso do resto da sociedade, explica o ativista baiano à frente da Rede Afro LGBT.
O grupo foi criado em 2005 porque a questão policlassista é ignorada no movimento, diz. “Era um processo esquizofrênico pra gente: no movimento negro, diziam que nossa pauta não era uma questão de luta racial. No movimento LGBT, diziam que era um problema racial, não de orientação, de identidade. O LGBT negro, no Brasil, sofre um múltiplo preconceito.” Por isso, Dias frisa a importância da fundação de um grupo voltado aos LGBTs negros. “Foi um momento histórico. Demos um basta. A verdade é que esse sujeito LGBT universal não existe. Então é preciso disputar as narrativas com o olhar hegemônico do homem branco.”
ASSISTA
“O Segredo de Brokeback Mountain” (2005), a história de amor entre dois cowboys americanos que encantou o mundo
“Modern Family“ (2009), série que traz três famílias bastante diversas, incluindo um casal gay e sua filha adotiva
“RuPaul’s Drag Race“ (2009), reality show criado que levou a cena drag para o mainstream — no ar há 12 temporadas
Viver legalmente com quem quiser
Desde 1989, quando a Dinamarca se tornou o primeiro país a legalizar a união estável entre pessoas do mesmo sexo, o direito de viver com quem quiser sob a proteção da lei foi sendo alcançado em outras partes do mundo. Em 2001, a Holanda se tornou o primeiro país a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo — assim como o divórcio e a adoção.
Em 2005 foi a vez de Canadá e Espanha; em 2006, a África do Sul o fez; e, em 2010, nosso vizinho Argentina se tornou o primeiro país latino-americano a legalizar a prática. No Brasil, a batalha foi mais longa.
A primeira tentativa de legalizar a união civil homoafetiva foi o projeto de lei 1151 da deputada petista Marta Suplicy, de 1995, que não vingou. Foi a Justiça, provocada pela sociedade civil, que ocupou o papel de legislar sobre o tema. Só em 2011 o STF aprovou união estável homoafetiva. E, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça aprovou resolução que obriga cartórios a realizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Hoje, não há no país uma lei sobre o tema. O casamento é legal, mas o que garante os casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo é a jurisprudência.
ASSISTA
“Eu Não Quero Voltar Sozinho” (2010), filme brasileiro que narra a vida de um garoto cego e seu amor por outro rapaz
OUÇA
“Born This Way” (2011), de Lady Gaga, se tornou instantâneo um hino da diversidade, inclusive sexual e de identidade de gênero
Não existe um só caminho para ser trans
Todos consideram 2008 como o grande marco para o direito de pessoas trans: é quando o processo transexualizador passa a ser oficialmente oferecido pelo SUS. “Foi uma vitória, claro, mas o foco era ainda só a transformação da genitália”, pondera a ativista Symmy Larrat — “como se toda pessoa trans quisesse seguir um único processo de transição”.
Com a portaria de 2013, o serviço foi ampliado: homens trans podem agora ser atendidos de forma cirúrgica; e as travestis que buscam acompanhamento hormonal não precisam mais se submeter à cirurgia. “Pois nem todas querem”, diz.
Desde 2013, explica o processo transexualizador passa a ser visto como uma gama de possibilidades. “Cada uma monta seu combo: é como no Subway”, brinca. Pois falar de transexualidade não se resume a intervenções médicas. “Mas uma coisa é fato: dizer que um pênis vai virar vagina numa sociedade machista, conservadora e moralista como a nossa, é de uma revolução sem tamanho. Lênin vira fichinha perto disso. Revolucionárias somos nós.”
ASSISTA
“Orange is the New Black” (2013), série que explora o universo carcerário feminino e a sexualidade de mulheres gays, bissexuais e trans
“Transparent“ (2014), primeira série a narrar de forma profunda o processo de transição de uma mulher trans
O nome é social. E político
Até dois anos atrás, muitas pessoas trans no Brasil precisavam ostentar no documento um nome que não refletia sua identidade de gênero — uma tremenda violência simbólica. Só em 2016, decreto da presidente Dilma Rousseff permitiu o uso do nome social de pessoas trans. “Foi uma vitória imensa, e não só porque eu que escrevi o decreto”, diz a ativista Symmy Larrat, que fazia parte do governo. Mas foi só em 2018 que o STF decidiu que transexuais e transgêneros podem mudar seus nomes de registro civil sem necessidade de cirurgia.
ASSISTA
“Pose” (2018), série que explora o universo ballroom novaiorquino, sobretudo de homens gays e mulheres trans negras
OUÇA
“Bixa Preta“ (2017), de Linn da Quebrada, canção que traz a vida de gays e travestis negros brasileiros para as paradas
Chega de homofobia. Ao menos na lei
A demora do Congresso em adereçar questões que envolvam os direitos LGBT deixa a cargo da Justiça (e, em última instância, do STF) a última palavra. Foi assim no ano passado, quando o STF enquadrou a homofobia e a transfobia na lei de crimes de racismo. A decisão não muda o preconceito e a burocracia em delegacias (raramente preparadas para a lei) e não garante a punição dos perpetradores. Mas permite uma maior conscientização de direitos. Sobretudo quando se trata de LGBTs que fazem parte de outras minorias políticas.
“Não se pode ignorar a estrutura racial que está por trás da homofobia no Brasil”, diz Washington Dias. “A luta pelo casamento igualitário sempre foi mais dos brancos. Pro negro LGBT, a pauta principal sempre foi a criminalização da homofobia, da transfobia, porque é o negro que sofre mais a violência. Pra gente, o mais importante é continuar existindo.”
Dar o próprio sangue
Após tantas “conquistas”, e de direitos tão vitais como casar com quem quiser ou usar o nome que quiser, essa pode parecer uma vitória menor. Afinal, a luta era para poder doar sangue, não para receber. Mas é justamente esse o ponto: ser considerado tão digno quanto qualquer pessoa na hora de ajudar. No mês passado, após anos de embates, o STF declarou inconstitucionais as normas do Ministério da Saúde que proibiam homossexuais masculinos de doar sangue.
Pela regra vigente até então, gays só poderiam fazê-lo após 12 meses sem transar com outro homem. A decisão ainda não tem sido automaticamente cumprida. Mas o sangue dos LGBTQI+ continua sendo derramado em vão. Os relatórios de mortes por LGBTfobia, compilados pelo Grupo Gay da Bahia, seguem estarrecedores. E o avanço do fundamentalismo religioso, LGBTfóbico, no legislativo não traz um horizonte favorável — tampouco ter um presidente homofóbico. “Esse cenário mostra que ainda precisamos fazer muito para avançar no país”, diz Renan Quinalha.
2020 está na metade. Mas já entrou para a história como o ano em que a Suprema Corte americana decidiu que um empregado não pode sofrer discriminação no trabalho por ser LGBT. 62 anos após a demissão de Frank Kameny, o astrônomo do Exército que foi demitido em 1958 por ser gay e lutou por direitos iguais por toda sua vida, sua luta se mostrou frutífera. O que prova que a luta nunca termina.
Ouça alguns dos principais hits que marcaram a história LGBTQI+ nos últimos 50 anos
Colaborou na pesquisa de referências culturais: Daniel Vilanova