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SemanaO que vamos levar da pandemia na memória?
Do olhar histórico ao psicológico, a pandemia deve deixar um legado marcante para a humanidade e até gerar, com o passar dos anos, uma estranha nostalgia pelo que estamos vivendo
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SemanaO que vamos levar da pandemia na memória?
Do olhar histórico ao psicológico, a pandemia deve deixar um legado marcante para a humanidade e até gerar, com o passar dos anos, uma estranha nostalgia pelo que estamos vivendo
Imagens de retalhos de céu, enclausurados por prédios e coloridos pela visão de Arnaldo de Melo. Uma peça de arte digital que o próprio artista descreve como uma “tradução do temor e da expectativa ante a calamidade global”. Em outra foto, na frente de um portão, inscritos em tinta, estão os dizeres “Proibido visitas. Por favor não insista. Agradecemos”. A imagem de Victor Mattioni representa um pouco da realidade do isolamento na cidade de Boa Vista (RR), onde os cinemas, escolas e outros estabelecimentos permaneceram fechados por meses, assim como no restante do país.
Aparecendo de muletas e com parte da perna ocultada por uma bota imobilizadora, Beatriz, de Belo Horizonte, quebrou o pé durante a pesquisa de campo para seu mestrado. Ao contrário do senso comum, ela conseguiu ter um período produtivo na pandemia, já que o parque ecológico onde trabalha ficou meses fechado ao público, o que facilitou a interação com a natureza. Da varanda do prédio onde mora, ela também teve visão privilegiada de todo o processo de gestação e nascimento do filho do casal vizinho. “Todos em suas cápsulas, cuidando de si e dos outros, para que a vida siga em frente e este vírus nos deixe em paz algum dia…”
Os exemplos são apenas uma pequena amostra das centenas de relatos colhidos pelo projeto #MemóriasCovid19, realizado pela Unicamp e lançado em maio de 2020, nos primeiros meses da pandemia. Idealizado pela historiadora, pesquisadora e professora da universidade Ana Carolina Maciel, o programa recebe em sua plataforma online testemunhos, expressões artísticas, fotografias e vídeos enviados pelo público. Os materiais recebidos passam por uma comissão de curadoria, que inclui membros de diferentes áreas do conhecimento, como Daniel Munduruku e Lilia Schwarcz, e depois são postados na plataforma e nas redes sociais do projeto. O principal objetivo é criar um panorama de olhares e vivências diferentes de quem está enfrentando a pandemia no Brasil e também fora dele.
Momentos de trauma coletivo sempre foram um fator detonador de mudanças de paradigma
A pesquisadora, que há muito tempo vem trabalhando com a memória dentro da escrita da história, conta que o projeto nasceu de uma angústia pessoal relativa à pandemia, uma necessidade de fazer algo. “Tinha a intuição de que o tempo pandêmico iria ressignificar um monte de coisas. Momentos de trauma coletivo sempre foram um fator detonador de mudanças de paradigma”, afirma Ana.
De acordo com a historiadora, momentos como o que estamos vivendo hoje têm potencial para mudar como se registra a história e a memória, especialmente graças à praticidade e rapidez dos meios digitais disponíveis. Ainda que formem um todo bastante subjetivo e heterogêneo, os 322 relatos recebidos até hoje ajudam a montar uma história de como nossa relação com a pandemia se desenvolveu neste tempo.
No início, uma tentativa de reconexão com o mundo e de compreensão dessa nova realidade se traduzia principalmente em imagens de janelas, de céu e natureza, conta Ana. Textos sobre o sofrimento do isolamento e a perda de entes queridos também refletiam a dor que marca o período. Passado o espanto inicial, algumas das propostas artísticas se tornaram mais elaboradas, com a busca de novos olhares para objetos cotidianos e para a própria natureza, mais subjetivos, mostrando uma reinterpretação de posicionamentos dentro dessa situação. E, com a vacinação, as imagens de braços à mostra se imunizando também começaram a pipocar com frequência.
Segundo a pesquisadora, o #MemóriasCovid19 teve impacto inclusive em sua vida pessoal. “Enquanto pesquisadora, mãe e ser humano, não sei se estaria da mesma forma que estou agora se não tivesse criado o projeto.” Ela prefere não fazer projeções de futuro, mas espera que a plataforma sobreviva pelo tempo e estabeleça um retrato sensível da vida na pandemia — embora não tenha a pretensão de explicar o que foi esse momento, em toda a sua magnitude.
Ainda assim, o projeto, como vários outros do tipo que surgiram no Brasil e no mundo, levanta uma questão que tem sido objeto de interesse de pesquisadores e historiadores. Quais serão nossas memórias da pandemia? O que restará dela em nossas mentes e no contexto coletivo?
Cérebro e esquecimento
No nosso cérebro, a formação de memórias pode até ser um processo subjetivo, mas seu caminho já é bastante conhecido pela ciência. Hipocampo é o nome da parte do órgão responsável tanto pela aquisição quanto pela evocação de memórias, explica a pesquisadora e professora de neurociência da UFRGS Angela Wyse. As memórias, de forma geral, se dividem entre as de curta duração, que ficam conosco por um período de três a seis horas, e as de longa duração, com permanência que vai desde alguns dias até uma vida toda.
Para consolidar uma memória de longa duração, o hipocampo a envia ao neocórtex, onde ela fica armazenada até que seja evocada de alguma forma por seu dono. Quando isso acontece, uma densa rede de sinapses acaba formando uma floresta de conexões, responsável não apenas pela lembrança, mas também pela maneira como ela vai emergir.
Conexões neurais vão modificando uma lembrança ao longo do tempo, como ocorre com um livro relido depois de meses ou anos
São essas conexões, feitas a cada nova puxada de memória, que vão modificando uma lembrança ao longo do tempo. Feito um livro relido depois de meses ou anos, que passa a evocar sentimentos e impressões muito diferentes das que teve pela primeira vez, dá como exemplo a professora. E, geralmente, a tendência é que a segunda leitura seja a que fica cristalizada na mente.
Alguns estudos mostram que a pandemia representou um duro baque para a memória. Seja pelas evidências de que a covid-19 tem impacto negativo sobre ela em muitos casos, seja porque especialistas já apontam que a pandemia em si, acompanhada do isolamento e da redução nas relações sociais, também tem nos tornado mais propensos ao esquecimento.
Wyse afirma que um estado de estresse prolongado, que na pandemia é agravado por perdas dramáticas, como a de um ente querido ou de um emprego e uma situação financeira estável, pode causar uma piora em nossa memória. “O estresse pode liberar glicocorticoides, hormônios que diminuem a concentração necessária para o processo da memória.” Por isso práticas que ajudam a lidar com o estresse, como atividade física, um sono de qualidade e uma boa alimentação, são recomendáveis para evitar a deterioração da memória.
Memória é aquilo que somos, como uma tela sobre a qual assentamos o retrato das nossas vidas
Sobre aquilo que vamos levar conosco da pandemia, a pesquisadora diz que depende da capacidade de cada um de lidar com frustrações e adversidades, e como isso vai se desenvolver ao longo do tempo. “Memória é aquilo que somos, como uma tela sobre a qual assentamos o retrato das nossas vidas”, diz Wyse. E o esquecimento, ela reforça, não é necessariamente uma coisa ruim, mas um processo natural. “Esquecer é necessário para lembrar. Precisamos deixar algumas coisas irem embora para continuar formando novas memórias.”
Os espaços que ocupamos
Uma das principais pesquisas recentes sobre o tema, com pessoas não infectadas pela Covid-19, foi elaborada pela professora de neurociência cognitiva da Universidade de Westminster, em Londres, Catherine Loveday. Após pedir aos entrevistados que respondessem um questionário que evocava determinadas situações cotidianas, como se esquecer de dizer algo importante a alguém ou só perceber no meio de um texto que já tinha lido aquilo antes, a pesquisadora chegou à conclusão de que mais de 50% deles tiveram piora em ao menos um aspecto da memória devido ao isolamento.
Faz sentido que as pessoas esqueçam mais facilmente quando algo aconteceu, porque muitos dias parecem iguais
E a principal dificuldade tem a ver especificamente com a percepção de tempo. Segundo as informações colhidas, que ainda são preliminares — o estudo ainda não foi publicado —, 55% das pessoas disseram esquecer com frequência a data em que algum determinado evento ocorreu. “Faz sentido que as pessoas esqueçam mais facilmente quando algo aconteceu, porque muitos dias parecem iguais. Tem havido uma variação muito menor no cotidiano, e as pessoas não têm visitado lugares ou viajado”, explica Catherine.
De acordo com a pesquisadora, o resultado não significa que a memória das pessoas esteja permanentemente danificada, mas sim que a forma como estamos vivendo esse período faz com que criemos menos lembranças duradouras do que no passado. Um dos resultados do estudo, por exemplo, apontou que indivíduos restritos a um único cômodo ao longo do dia têm mais dificuldades de memória do que aqueles que trafegam mais por vários cômodos — ou seja, a alteração de espaço, que costuma ativar o hipocampo, também nos ajuda a reter lembranças.
Nostálgicos da pandemia
Mulheres também relataram mais problemas com a memória, algo que Catherine não relaciona ao gênero em si, mas ao fato de que elas sofreram mudanças mais profundas do que os homens nesse período, relacionadas ao cuidado com os filhos ou mesmo no mercado de trabalho. Isso pode ter desencadeado mais casos de estresse, o que também costuma se refletir em como a memória funciona. “Mas tudo aponta que, assim que as pessoas entrarem novamente em seu ritmo de vida, a memória deve voltar a ser exatamente a como era antes.”
No futuro, vamos nos lembrar da pandemia como um período muito mais curto do que realmente foi; alguns sentirão até nostalgia
As memórias têm uma característica de irem se reconstruindo e mudando com o passar do tempo. A pesquisadora prevê que, no futuro, vamos nos lembrar da pandemia como um período muito mais curto do que realmente foi. Ainda assim, uma grande parte da humanidade deve manter memórias fortes e duradouras desse tempo, mesmo quando estivermos mais velhos. “Grandes comunidades costumam manter memórias duradouras de períodos que foram mais dramáticos ou particularmente emocionais.”
Hoje parece difícil pensar nisso, mas pode até ser que sintamos uma espécie de nostalgia da pandemia. Muita gente, é claro, deve guardar memórias negativas ou mesmo traumáticas da pandemia ao longo de toda a vida. Mas, ao olhar a sociedade como um todo, explica a pesquisadora, as memórias tendem a ir se tornando mais positivas com o passar do tempo. “Então, mesmo que tenha sido uma época muito dura para muita gente, devemos nos sentir mais nostálgicos em relação a ela, porque ela foi tão marcante e diferente.”
Do que é feita a história
Historiadores costumavam defender uma distância temporal necessária para iniciar a escrita sobre eventos históricos, prática que garantiria não apenas um tempo de maturação do acontecido, mas também um distanciamento deles próprios de seus objetos de estudo — uma forma de conseguir algum tipo de isenção. Aí veio o século 20.
Segundo a historiadora Caroline Bauer, acontecimentos como guerras, ditaduras e genocídios que caracterizaram o século passado —não à toa eternizado pela caneta de Eric Hobsbawm como era dos extremos —, desembocando em uma tendência de negacionismo que encontrou solo fértil em uma pandemia de proporções globais, iniciaram uma mudança nesse paradigma.
As várias tentativas de catalogar memórias e experiências serviram um propósito muito específico, contra discursos falsificadores
“Pela forma como vivemos a pandemia no Brasil, as várias tentativas de catalogar memórias e experiências serviram um propósito muito específico. Não só de registrar percepções, mas poder usar esse material contra discursos falsificadores, já pensando em como tudo isso vai ser lembrado no futuro”, explica Caroline, que é professora de história da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e autora de “Como Será o Passado?” (Paco Editorial, 2017), livro sobre a memória social da ditadura no país.
A memória construída sobre um evento como a pandemia está longe de ser uma linha única. Em vez disso, está mais para um galho de árvore, com suas inúmeras ramificações. Por um lado, existe o que é conhecido como memória social, um processo coletivo e dinâmico de lembrança, formado por experiências e vivências muito subjetivas. Hoje, ele é muito intermediado pelas redes sociais e não passa por um projeto de efetivamente sentar para pensar o que aconteceu.
A história, por outro lado, é caracterizada por um certo crivo intelectual e tempo de reflexão. Ela afirma que não existe uma “história oficial”, ou seja, um caminho único correto e considerado maior que os restantes. O que há são relatos históricos mais ou menos hegemônicos, que mantêm a força e a estabilidade ao longo do tempo. E que podem, a exemplo do que acontece hoje com a ditadura militar, se tornar palco para disputas políticas e de poder.
Olhar em eterna mudança
Se engana quem pensa que “entrar para a história” significa se manter fossilizado pela eternidade. Assim como acontece com a memória, a construção histórica é um processo determinado tanto pelo presente quanto pelo sujeito responsável por escrevê-la. “Muito difícil que um relato sobre a pandemia fique para sempre. Até porque existe uma dicotomia sobre diversos pontos, como o tratamento médico e a ação do governo. Como são discursos políticos, devem continuar em disputa durante muito tempo.”
É preciso ter cuidado com a abordagem sobre a pandemia na escola, pois pode despertar sentimentos como tristeza ou raiva
Questões judiciais, como a CPI da Pandemia, podem ser cruciais para determinar a visão futura do que está acontecendo agora. Isso porque, conta Caroline, relatos jurídicos costumam ser lembrados historicamente como verdade, determinando culpados e não culpados, sem a flexibilização que é típica da memória.
O que dá para cravar é que o momento atual deixará uma marca traumática, que deve ser tratada com muito cuidado inclusive em ambiente escolar. “Quando voltarmos para as salas de aula normalmente, teremos à frente alunos que perderam pais, mães, tios e avós. Ao trabalhar com esse tema, é preciso tomar cuidado com a abordagem, pois ele pode despertar sentimentos como tristeza ou raiva.”
A arte que ilustra o texto
Essa reportagem é ilustrada por fotografias de Rafa Jacinto. Fotógrafo brasileiro que já trabalhou com marcas como Nikon, Nike e Converse, Jacinto estava em Milão, na Itália, onde mora, quando a quarentena começou. Autor do perfil de Instagram “aphotoaday_project”, onde posta uma foto do seu cotidiano por dia, ele aproveitou os dois primeiros meses de reclusão total para compor o projeto “Quarentena”.
As fotos em preto e branco de sua esposa e seus dois filhos retratam momentos de intimidade em meio a uma crise global sem precedentes. Em uma das fotos é possível observar uma amarelinha improvisada, feita de fita crepe. “De uma hora para outra, nossa casa virou tudo o que nós tínhamos. Não havia mais vida fora de casa”, comenta Jacinto.
O fotógrafo passou a refletir sobre a vida de um fotógrafo sem poder sair de casa e, em vez de mirar sua câmera para outras pessoas, passou a fotografar sua própria vida. “O objeto deste trabalho não é a minha família, mas sim o espaço. É sobre a casa e como ela se tornou tudo o que tínhamos.”
Em outra foto, Rafa corta o cabelo do seu filho de 15 anos. Algo inimaginável, ele diz, antes da pandemia. “Gosto de pensar que a fotografia documental não precisa ser só sobre extremos. Dei atenção a coisas que, no pré-pandemia, tratava como banais e menos importantes. Contei uma história sobre valores universais como paternidade, resiliência e espera, em momentos que são só meus.” (Daniel Vila Nova)
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CAPA O que você lembra?
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