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Conversas'O Brasil precisa se reconciliar com a língua que fala'
O jornalista e escritor Sérgio Rodrigues fala sobre como estamos sempre tentando usar a língua para nos diferenciar e deixamos de nos entender sobre coisas básicas
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‘O Brasil precisa se reconciliar com a língua que fala’
O jornalista e escritor Sérgio Rodrigues fala sobre como estamos sempre tentando usar a língua para nos diferenciar e deixamos de nos entender sobre coisas básicas
O Brasil vive uma relação esquizofrênica com a própria língua. O diagnóstico é do jornalista e escritor Sérgio Rodrigues, para quem o problema nada tem a ver com questões geracionais, redes sociais, emojis, memes ou outras novas formas de comunicação não escrita. Nosso pecado original, ele explica, vêm da época da independência do país de Portugal, quando nossa elite buscou se distanciar da língua que se falava no país.
“O Brasil não se reconhece na sua própria língua. Então fica buscando formas de se diferenciar, se destacar, se tornar mais cosmopolita e acaba ficando jeca. Esse discurso corporativo cheio de inglês acho jeca, ignorante”, diz em entrevista a Gama.
Autor de uma coluna sobre língua e linguagem na “Folha de S.Paulo” e de títulos como “Viva a Língua Brasileira” (Cia. das Letras, 2016), além de roteirista do “Conversa com Bial”, Rodrigues também vê no cenário atual um “corte epistemológico grave”, um problema de cognição coletiva, legado do bolsonarismo.
“A gente não consegue mais se entender sobre algumas coisas muito básicas. Antes, não cabia dúvida de que a Terra era redonda, de que o vírus mata, de que as vacinas salvam. Hoje, cabe”, afirma na entrevista que você lê a seguir.
A palavra escrita continua sendo a melhor forma de expressar o pensamento. Já o emoji não dispensa ninguém de pensar, ele cumpre outras funções
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G |Usando uma ideia que vem sendo repetida sobre o consumo de notícias, poderíamos dizer que nunca nos comunicamos tanto — estamos sempre com um celular na mão, reagindo, comentando– mas estamos nos entendendo menos?
Sérgio Rodrigues |Eu não sei se a gente está se entendendo menos. Com certeza, está mudando muito os códigos. Não acho que a gente nunca tenha se comunicado de maneira ideal um dia. Não tenho essa ilusão de que houve era de ouro do entendimento humano e que agora estamos em decadência. Essa é uma impressão errada que mais ou menos toda geração acaba tendo. A geração dos meus pais tinha uma impressão de que havia uma decadência, uma coisa cada vez mais rasa, mais imagética, menos ligada à palavra porque tinha a televisão. Isso faz parte, se chama envelhecer. E, no final, cada geração encontra sua forma de dar conta do mundo. Não me sinto à vontade de estabelecer esse tipo de hierarquia de que no nosso tempo, a comunicação era melhor. Isso não significa fechar os olhos pra muita coisa que está mudando.
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G |Que tipo de coisa?
SR |A quantidade de interações que nós temos ao longo de um dia aumentou demais. Uma coisa que trabalha muito contra a concentração. Isso sim é um traço dessas novas formas de comunicação digital. Nossa capacidade de concentração está diminuindo. Por outro lado, ganhamos numa certa horizontalidade na capacidade de estabelecer conexões rápidas com outras coisas, em vez de se aprofundar. Na minha adolescência, todo mundo tinha certeza que a minha geração ia ser estúpida porque a gente passava o dia em frente à televisão. E, quando chega o fim do século, o pessoal que previa isso quebrou a cara porque a internet num primeiro momento resgata a palavra. Assim como eles, acho que nós não estamos conseguindo ver tudo que vem.
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G |Parece que estamos nos comunicando cada vez mais com emojis, gifs, figurinhas e outras formas de comunicação não escrita. De que maneira isso afeta a linguagem escrita?
SR |Acho que afeta, mas os emojis não são vilões, são mais muletas para acelerar essa comunicação com um mínimo de mal entendidos. Se você usa uma carinha sorridente, já atenua qualquer possível leitura negativa de um texto. As possibilidades de mal entendidos quando você escreve são infinitas. Isso numa velocidade de redes sociais, de mensagens de texto, simplesmente não é possível. Resisti muitos anos a usar emojis, achava infantil. E tive alguns casos de mal entendidos muito sérios por causa disso. As pessoas achavam que eu estava falando algo num tom e meu tom não era aquele. Acabei me rendendo à ideia de que o emoji facilita as coisas quando você não está cara a cara com a pessoa. Nosso tom de voz, expressão facial comunica tanto quanto as palavras em si. No momento em que você não está presente, você tem que trabalhar essa ausência no texto. Se não tem tempo, o emoji resolve esse problema. Você fala uma barbaridade e coloca uma carinha sorrindo e está resolvido. Mas acho que a palavra escrita continua sendo a melhor forma de expressar o pensamento e, portanto, de pensar. O emoji não dispensa ninguém de pensar, ele cumpre outras funções.
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G |O meme também tem esse tipo de função, já que cada dia surge um novo bordão que logo é descartado? Não é um pouco excludente com quem não está nas redes?
SR |Não acho que o problema maior do meme seja excluir. Se você está numa discussão em que apareça um meme que você não conhece, pode rapidamente fazer uma busca e descobrir de onde aquilo veio. O problema maior do meme, se é que ele tem algum, é dispensar as pessoas de pensar. Porque é um lugar comum, um clichêzão que você aplica nas situações. Não sei se tem uma diferença tão grande do meme pro velho bordão dos programas humorísticos da minha infância na televisão. Eles eram muito baseados em repetição. A graça era a hora que o sujeito ia dizer a mesma coisa toda semana. O meme é um pouco isso. Parece atender à necessidade humana de encontrar a repetição, o que a pessoa já conhece. Isso parece dar algum tipo de conforto, uma impressão de que compreendi. É um troço intelectualmente meio pobre, mas nada muito diferente do que a gente sempre teve. Só uma outra forma muito mais sofisticada e vibrante do que eram os bordões da TV, mas que no fundo está cumprindo mais ou menos a mesma função de comunicação.
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G |As redes sociais têm revelado muitos ruídos de comunicação, de interpretação de texto, a ponto de algumas pessoas passarem a sinalizar com um “contém ironia” antes de escrever algo. Avisar que algo é ironia já não é a morte da ironia?
SR |Acho que não. A ironia sempre foi uma coisa bem complicada. Quando [Jonathan] Swift (1667-1745) publicou o famoso “Modesta Proposta”, em que ele dizia que a solução para a pobreza seria os pobres venderem seus bebês para que os ricos assassem e comessem, teve gente que achou que ele tinha falado sério. O [Luiz Fernando] Veríssimo uma vez teve um problema sério porque escreveu numa crônica sobre o Lula: “Onde já se viu um operário tomando um vinho Romanée-Conti?” Era obviamente irônico, até porque ele era um apoiador do Lula, mas isso não bastou pra evitar que ele fosse massacrado. A ironia é complicada em qualquer época. Ela pressupõe um código compartilhado, uma piscadela para o leitor que não está ali porque não tem o emoji que diga que aquilo ali é irônico. A margem de mal entendido sempre vai ser grande. E quando você chega nas redes sociais isso se agrava pela amplitude. Você vai chegar a pessoas que não tem a menor ideia de onde você vem, quem é você e o que fez da vida até então.
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G |É possível ter uma linguagem neutra na língua portuguesa ou apenas como forma de questionar o uso predominante do gênero masculino?
SR |Acho que é uma luta política muito mais que gramatical. A ideia é chamar a atenção para questões políticas e sociais que são reais. Tenho muitas dúvidas se tem algum futuro em termos gramaticais porque nunca vi a língua mudar dessa forma, por esse tipo de intervenção voluntarista de grupos. Você pode até mudar questões de vocabulário com esse tipo de ação, já aconteceu. Uma parte do movimento negro resolveu transformar a palavra “mulata” em proibida e está conseguindo, hoje em dia é bem mais complicado usar essa palavra. Ela foi criminalizada. Se estava certo ou errado, não importa. É uma guerra simbólica que se trava na língua. Agora, intervir em questões sintáticas, como a do feminino e masculino, gênero neutro, é um pouco mais complicado. Nunca vi acontecer. Por tudo que sabemos até agora, acredito que não vá longe, que seja um modismo que acabe passando. Mas cumpre, com certeza, a função de chamar atenção para uma luta.
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G |Dá pra levar algo desse debate sobre o pronome neutro para ampliar o diálogo sobre diversidade e inclusão linguística?
SR |Alguns bons linguistas contestam essa ideia que o [uso predominante do pronome] masculino seja machista. Primeiro contestam a ideia de equiparar gênero e sexualidade. Depois, a ideia de que a terminação masculina valendo para conjuntos seja uma coisa machista porque, na verdade, seria uma ausência de marcador de gênero. Enfim, mas a questão não é gramatical. O que vem ao caso é chamar a atenção para desigualdades reais na sociedade. E nesse sentido eu acho que vale. A língua é palco de guerra simbólica, sempre foi. Não existe língua neutra ou acima disso. Mas como ela é um patrimônio social de todo mundo que a fala, não é um ponto pacífico que um grupo vá conseguir impor sua vontade sobre o conjunto dos falantes. Quando estamos lidando com questões de vocabulário é mais fácil. Com questões estruturais, como é a do gênero, a briga é mais difícil.
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G |Num dos seus artigos para Folha, você falou da “manualização” de alguns termos, que acabam sendo condenados, como usar “através” no sentido de “por meio”. Por que estamos sempre buscando colocar mais regras numa língua que já não é fácil?
SR |Esse tipo de coisa é muito popular. Os consultórios gramaticais sempre tiveram muita audiência. O que eu chamei de “manualite”, o vício das regrinhas, muitas vezes arbitrárias, traduz uma certa ignorância da questão. Quando você não estuda o suficiente, você fica muito dogmático. É uma forma de mascarar inseguranças. Infelizmente, até as escolas contribuem para perpetuar. As abordagens históricas vão situar isso lá na independência do Brasil, no século 19, quando o país toma a decisão de continuar seguindo Portugal, como uma forma de se aproximar da elite europeia e se distanciar daquele povo ignorante, analfabeto, bugre, negro que é o povo brasileiro. Então, a elite brasileira adota uma postura muito distanciada da língua verdadeira que se falava no país, em busca de uma coisa aspiracional, que foi ficando cada vez mais superficial. Vem daí, desse pecado original, uma relação meio esquizofrênica com a língua. É como se todos falássemos errado porque não estudamos o suficiente, o que é uma completa maluquice. A língua é antes de tudo o que as pessoas comuns falam, o resto vem depois. Acho que vai ser um caminho muito longo para a cultura brasileira se reconciliar com a língua que a gente de fato fala.
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G |Num dos seus livros, “Viva a Língua Brasileira”, você também trata das palavras estrangeiras que estamos sempre incorporando ao nosso vocabulário. Existe uma medida do uso desnecessário? Como não se tornar um “anglocêntrico”, como você chama no livro?
SR |A medida é de cada um, do que considera ridículo ou não. A língua é sempre muito pessoal, o modo como cada um se apropria desse patrimônio comum para transformar na sua fala, no seu modo de se colocar no mundo. Eu lamento, fico um pouco triste com uns modismos bestas que se espalham e não tenho muita vergonha de apontar isso porque é uma questão cultural. É sintoma de uma baixa autoestima linguística. Não acho que seja o fim do mundo, mas acaba se relacionando com o que eu falava há pouco sobre a esquizofrenia linguística. O Brasil não se reconhece na sua própria língua. Então fica buscando formas de se diferenciar, se destacar, se tornar mais cosmopolita e acaba ficando jeca. Esse discurso corporativo cheio de inglês acho jeca, ignorante. E não sou só eu que acho. Então é bom que as pessoas saibam que alguém está achando isso jeca porque dependendo do ambiente que ela chegar falando assim, vão ter problemas. Essa moda do “É sobre…” [que vem da expressão em inglês “it’s about”], pelo amor de Deus, né? Não!
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G |De outro lado, temos o academicismo que costuma transformar palavras antes inocentes em conceitos, como os que uma ex participante do “BBB” usava a cada fala. Isso não acaba esvaziando os próprios conceitos?
SR |Acho qualquer tipo de fala empolada, seja por academicismo, burocratês, juridiquês, todos acabam disfarçando um certo vazio. Você recorre a esse tipo de coisa quando não tem o que dizer ou não está muito seguro do que está dizendo. Tem uma certa embromação sempre envolvida nisso. Já o academiquês dentro da academia é algo que deveria preocupar. Existem alguns acadêmicos que sabem escrever como pessoas normais, mas não é tão comum. Em geral, é estimulada uma coisa um pouco hermética mesmo e não acho que contribua para comunicação entre a academia e o resto da sociedade. Talvez eles tivessem a ganhar se investissem um pouco mais em clareza. A mesma coisa vale pro meio jurídico.
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G |Cada governante brasileiro tem deixado uma marca em suas falas, nem sempre positiva para eles. Temer com sua mesóclise, a Dilma com alguns discursos pouco inteligíveis, Lula e as metáforas futebolísticas. Qual será a marca deixada por Bolsonaro?
SR |Talvez seja não ter mais correspondência com qualquer tipo de realidade. O discurso que o bolsonarismo produz se basta em si mesmo. Ele não pretende mais dar conta de uma realidade, ele está criando sua própria realidade. Isso é uma coisa nova. Você pode dizer que o Lula era meio populista, demagógico e que o Temer era pomposo com suas mesóclises, mas todos estavam se referindo ao real. Você podia achar que não estavam traduzindo bem o real, mas estavam tentando lidar com algo que era reconhecido por todo mundo. As pessoas estavam em campos opostos, discutindo, mas não tinham dúvidas de que a Terra era redonda, de que o vírus mata, de que as vacinas salvam. Não cabia esse tipo de dúvida. Hoje cabe. É um corte epistemológico muito grave, uma questão de cognição coletiva. A gente não consegue mais se entender sobre algumas coisas muito básicas. Então, acho que o grande legado do bolsonarismo em termos linguísticos seja uma certa implosão dos alicerces da linguagem.