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ReportagemA relação de avós e netos hoje
Em meio ao rápido avanço da tecnologia e após uma dolorosa pandemia, como os avós vêm participando da vida dos netos?
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A relação de avós e netos hoje
Em meio ao rápido avanço da tecnologia e após uma dolorosa pandemia, como os avós vêm participando da vida dos netos?
Em 2020, o historiador e professor Mário Sérgio de Moraes, 71, teve que interromper uma ação que já tinha virado rotina na casa onde vive com a esposa. Sempre que recebia o neto Mateus, 12, o casal fazia logo após o almoço uma sessão colaborativa de contação de histórias. “Inventamos a historinha de três. Eu começava, ele continuava e depois minha mulher”, relembra Moraes.
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Mas a pandemia acabou cortando o hábito pela raiz. Em isolamento, a única forma que o casal tinha para conversar com o neto era através das telas do computador e celular. Porém, em pouco tempo o avô encontrou uma forma de prosseguir o contato com Mateus por meio de histórias. “Para não perder essa relação, eu escrevia no computador, mandava para ele através do pai e, com aquela letrinha de quarta série, o Mateus continuava e mandava de volta para mim.”
Em cinco meses desse vai e vem, foi se formando o projeto de um livro povoado de personagens que Mateus ia criando baseado nas vivências em sala de aula. Desde o protagonista Garganta, um menino tão mentiroso quanto imaginativo, até a melhor aluna da sala e, é claro, Rafa, representante do temido “fundão”. “Tem uma menina negra, o garoto indígena Ogoido… Mostra a diversidade que existe dentro de uma sala de aula”, conta Moraes.
Muitos idosos estão buscando coisas novas e principalmente entender seu lugar no mundo, assim como os netos
O projeto acabou crescendo tanto que o avô decidiu oferecê-lo a uma editora. Pouco depois saiu o volume “Tudo Acaba em 10” (Capella, 2020), que, segundo o avô, vende bem melhor que seus próprios livros acadêmicos.
A história de Moraes e Mateus está longe de ser um exemplo único de como avôs e netos vêm se relacionando no mundo contemporâneo. Em vez disso, ela ajuda a escancarar a multiplicidade de experiências e possibilidades familiares.
Hoje, há cerca de 1,5 bilhões de avós no mundo, segundo pesquisa da revista The Economist. Com o aumento da expectativa de vida mundial e o envelhecimento da população, dá para arriscar dizer que a importância deles será enorme ao longo do século 21. E isso considerando que seu grande impacto já vem sendo tema de estudos, que apontam que a relação avós/netos foi essencial para a evolução humana ao longo dos séculos.
“Avós não são super-heróis nem coitados”, aponta a jornalista, pedagoga e pesquisadora do envelhecimento Tony Bernstein. “Cada um tem sua digital. São pessoas que viveram mais tempo e hoje tentam se entender, se adaptar ao envelhecimento e decidir o que vale a pena fazer agora.”
Fundadora lá em 2006 do Portal Terceira Idade, um dos maiores e mais longevos sites voltados para o dia a dia dos idosos no Brasil, ela considera que esse momento único vivido pelos mais velhos pode ser um fator que os aproxima mais dos netos do que dos próprios filhos — e vice-versa.
“Talvez os netos sejam os que mais podem ajudar, porque hoje envelhecer é quase como viver uma nova adolescência. Muitos idosos estão buscando coisas novas e principalmente entender seu lugar no mundo, assim como os netos”, diz Bernstein.
Neto é como aluno, nós temos que ir até o lugar onde ele se encontra para criar uma relação
A impressão corrobora inclusive uma pesquisa realizada pelo professor de ciências comportamentais e antropólogo estadunidense James Rilling. Após estudar a resposta neurológica de várias avós ao contato com seus netos, Rilling concluiu que elas tinham um vínculo emocional mais forte com eles do que os próprios pais das crianças. “As descobertas sugerem que empatia emocional pode ser um componente chave para a resposta de avós a seus netos”, diz o documento.
Depois que Moraes e Mateus já voltaram a se encontrar normalmente, não se sabe ainda se o garoto quer seguir carreira de escritor. Segundo o avô, ele já tem uma nova obsessão. “Só fala de futebol, futebol, futebol, e eu busco entrar na linguagem dele. Neto é como aluno, nós temos que ir até o lugar onde ele se encontra para criar uma relação.”
Muito além do açúcar
Para o psicólogo Caio Vianna, especialista em saúde do idoso, é preciso tomar cuidado com as expectativas sobre o “cargo” de avô. “Na sociedade, temos a ideia de que os avós têm uma carga extra de açúcar, precisam ser doces e fofos”, aponta. Mas não é porque está nessa posição que uma pessoa vai mudar sua personalidade para se encaixar no papel.
Em alguns casos, a chegada de um neto pode inclusive trazer algumas dificuldades psicológicas, segundo o especialista. “Acontece de suscitar sintomas de ansiedade e depressão, significa que o tempo está passando, a velhice chegou e a morte está mais próxima.”
Essa é a queixa mais dolorosa dos avós, de não só ser excluído, mas abandonado e esquecido
Somos tão bombardeados com imagens, exemplos e propagandas de avós que envelheceram com êxito, sempre cercados de filhos, netos e bisnetos, que essa visão acaba ocultando uma realidade também comum, diz o psicanalista Edgar Diefenthaeler, especialista na saúde mental de idosos. “Existem várias formas de viver a velhice”, afirma o psicanalista. “Muitos avós não lidaram bem com a realidade da vida. Na mesma medida, alguns estão mais presentes na vida dos netos e outros menos.”
A ideia da própria finitude ainda pode levar o idoso a se sentir excluído dos planos e conversas familiares, acabando por se afastar dos netos. “Quando escuta planos para daqui a vinte ou trinta anos, o avô luta para se defender da angústia, em parte inconsciente, de perceber que seu futuro é limitado. Essa é a queixa mais dolorosa, de não só ser excluído, mas abandonado e esquecido”, aponta Diefenthaeler.
Pandemia tecnológica
Os anos de pandemia também representaram um desafio e tanto para essa relação. Segundo o psicanalista, no período era comum ouvir avós dizerem que preferiam morrer a deixar de ver os netos. “Fui ver meus netos do térreo do prédio deles, da calçada. O mais velho, que tinha seis anos, pediu: ‘vô, me dá um abraço!’ Foi bastante doloroso pensar que crianças tão pequenas tiveram que falar em vírus e morte”, conta Diefenhaeler.
A pandemia pode ter modificado de maneira profunda a forma como avós e netos se relacionam, diz o psicólogo Caio Vianna.
“A pandemia impôs uma realidade em que ou você entrava na tecnologia ou não se comunicava”, resume Vianna. Até por esse cenário, muitos avôs e avós se viram impelidos a entender não só de canais como Whatsapp, mas de programas de videoconferência e até se tornar ativos em ambientes antes considerados inóspitos para eles, como as redes sociais — vale dar uma olhada na nova instituição de avós Instagramers e TikTokers.
“Eu atendia idosos em instituições de longa permanência, os antigos asilos”, lembra o psicólogo. “As visitas aconteciam através de um vidro ou por videochamada.” Segundo Vianna, não precisar estar presente fisicamente removeu uma barreira importante, permitindo que muitos filhos e netos falassem com os familiares até muito mais vezes na semana do que antes.
“Eles estão mais conectados e têm tempo para isso”, complementa a jornalista Tony Bernstein. Além de conversar com familiares, muitos idosos têm usado a tecnologia para se tornar mais ativos, ampliando o círculo social e se engajando em novas atividades. “O pessoal já está acostumado a fazer cursos online, compras… Conheço uma senhora de 80 anos que comia pizza com as amigas direto pelo Zoom”, conta a fundadora do Portal Terceira Idade.
Choque de gerações
Mas, se as possibilidades de comunicação são muitas, alguns desafios do contato entre gerações que cresceram com décadas de distância permanecem. Embora haja exceções, são poucos os jovens que falam livremente com seus avós sobre questões de gênero e sexualidade contemporâneas, como relacionamentos não-monogâmicos e identidades LGBTQIA+.
“Para muitos idosos, namorar era um homem e uma mulher sentados numa praça de mãos dadas conversando. Desde então, passamos por muitas modificações na forma de se relacionar”, aponta Vianna. Até possibilidades mais antigas, como o divórcio, podem se tornar tabus no seio familiar. “Ouvimos histórias de avós que viveram casados 50 anos, mas já estavam separados havia muito tempo”, exemplifica.
Em vez de brigar, vale ensinar. É preciso definir o que é e não é tolerável, até para ajudar o idoso na comunicação com o mundo
Para facilitar o diálogo, o psicólogo sugere estender uma mesma forma de mediação tanto para questões amorosas e de sexualidade quanto para uma gama de outros assuntos que podem gerar choques familiares — basta pensar no período de ebulição política no país, em que uma simples data comemorativa ou aniversário significava momentos de tensão e brigas familiares.
“É muito importante que as pessoas no núcleo familiar ajudem na comunicação entre netos e avós quando existe um choque intergeracional muito forte para um dos lados”, afirma Vianna, que também prega uma compreensão das limitações de ambos. O que não significa tolerância incondicional. Afinal, há casos que extrapolam qualquer limite.
“Hoje em dia é intolerável pensar em práticas racistas que muitos idosos ainda têm. Essas coisas precisam ser comunicadas para os mais velhos, mas os jovens também devem entender que isso pode acontecer. Em vez de brigar, vale ensinar. É preciso definir o que é e não é tolerável, até para ajudar o idoso na comunicação com o mundo”, explica o psicólogo.
Questão de idade
Do outro lado da gangorra, diz Vianna, jovens e adultos também devem se policiar para não agir de forma etarista em relação ao envelhecimento — um tipo de preconceito raramente identificado e combatido, em especial no seio familiar.
“Muitos idosos introjetaram uma ideia construída socialmente de que a velhice é uma sala de espera da morte. O que é uma mentira porque, se não há nenhuma doença que comprometa do ponto de vista intelectual, cognitivo e cerebral, é uma etapa cheia de potência e possibilidades”, declara.
A velhice é uma etapa cheia de potência e possibilidades
Ainda assim, segundo o psicólogo, é comum agirmos de forma etarista no dia a dia sem nem percebermos. “Fica difícil pensar num protagonismo dos idosos numa cultura que dá passos tão curtos em relação a esse tema.”
De acordo com Bernstein, ao vencer as barreiras do preconceito relacionado à idade, tanto avós quanto netos podem encontrar uma grande riqueza de experiências com a proximidade, numa relação que, em muitos casos, acaba se tornando até mais aberta e prazerosa do que a de pais e filhos.
“Se desde pequena a criança entender que os avós são pessoas com quem ela vai se comunicar, cada um tentando entrar do seu jeito no mundo do outro, não vai haver mais preconceito. Eles vão se entender como pessoas, cada um no seu momento de vida, mas sempre ali juntos.”
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