O que aprendi com meus avós — Gama Revista
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Isabela Durão

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Depoimento

O que aprendi com meus avós

Bel Kutner, Regiane Alves, Marcelo Tolentino, Henrique Gilberto e outras personalidades compartilham lembranças e aprendizados que tiveram com seus ancestrais

Ana Elisa Faria 23 de Julho de 2023

O que aprendi com meus avós

Ana Elisa Faria 23 de Julho de 2023
Isabela Durão

Bel Kutner, Regiane Alves, Marcelo Tolentino, Henrique Gilberto e outras personalidades compartilham lembranças e aprendizados que tiveram com seus ancestrais

Em homenagem ao Dia dos Avós, Gama convidou netas e netos de diversas áreas para compartilharem os aprendizados que tiveram com matriarcas e patriarcas da família.

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    “Minha avó me ensinou a costurar, a fazer carne de panela e cuscuz paulista”

    Ana Flávia Cavalcanti, atriz, em cartaz na série “Os Outros”, do Globoplay, sobre a avó materna, Ana

    Quando eu fiz 17 anos, decidi ir morar em São Paulo para estudar teatro. Sem condições de alugar um lugar pra mim, pedi à minha mãe para conversar com minha avó, que morava sozinha numa casa na Vila São José, para me receber por um tempo. No início, ela não queria muito, não. Minha avó é aquele tipo de vó independente, que vive sozinha há anos, tem vários compromissos e acho que ela não queria, naquele momento, ter a responsabilidade de cuidar de uma neta. Minha mãe insistiu, ela aceitou e eu fui. Foram os meus primeiros meses vivendo numa cidade enorme. Apesar das regras da casa, da firmeza da minha avó, uma mulher kardecista raiz que faz evangelho no lar todos os dias às 9h, há 50 anos, de ela não me deixar ficar pendurada no telefone, e sempre me lembrar quem eu era e de onde eu vinha, foi ótimo ter podido chegar em uma casa aconchegante, um lar good vibes com uma aura espiritual forte, para iniciar minha trajetória. Minha avó me ensinou a costurar, a fazer carne de panela e cuscuz paulista. Ela tem 87 anos e vive sozinha na mesma casinha com portão azul, um mini jardim cheio de roseira e brinco-de-princesa e sem máquina de lavar. Ela lava a roupa na mão porque acha que a máquina não limpa nada! Pragmática é pouco.”

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    “Poucas pessoas têm mais importância para mim do que o meu avô”

    Arthur Nestrovski, músico e escritor, em trecho do livro “Histórias de Avô e Avó” (Companhia das Letrinhas, 1998), obra sobre as lembranças do autor sobre os avós judeus de origem ucraniana Maurício, Felipe, Luísa e Póli

    “Já faz muitos anos que meu avô morreu. Eu continuo gostando muito de música e continuo gostando muito dele, e acho que essas duas coisas continuam um pouco misturadas. Aprendi muitas coisas ouvindo música e outras tantas com ele, ou pensando nele. Não sei muito bem o que foi que aprendi naquele domingo. Mas sei que foi mais importante do que Vivaldi, mais importante do que a música e muito mais importante do que descobrir que podia confiar na minha própria opinião. A música, afinal de contas, não tem importância se a gente não tem importância. E poucas pessoas têm mais importância para mim do que o meu avô.”

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    “A dona Noêmia era uma mulher batalhadora, intensa e uma exímia cozinheira”

    Bel Kutner, atriz e diretora, sobre os avós Jacob Kutner, Noêmia Sfat, Maria del Carmo e Arlindo

    “Eu tive quatro pessoas muito importantes na minha vida, que foram meus avós, mas tive mais proximidade com as vovós. Porque meu avô polonês, pai da minha mãe, seu Jacob Kutner, faleceu quando eu era criança, e o doutor Arlindo, avô que eu amava, era ocupado, tinha a vida dele. A gente ia para o campo e ele estava sempre com seus afazeres e eu ficava na barra da saia da minha abuelita, minha avó espanhola, dona Maria del Carmo, que a gente chamava de Carmencita ou de vovó Abuelita, o que é uma redundância [risos]. Ela era uma pessoa adorável, recitava poesia, cantava, adorava música, arte; declamava em espanhol, em português, em francês. Uma maravilhosa, uma figura super importante, e a família toda sempre falou que ela era a artista da família, a mãe do papai [o ator Paulo José]. E já pelo lado materno, a dona Noêmia, minha avó que veio da Palestina, onde hoje é Israel, nasceu em Sfat. Era uma mulher judia que veio pequena para o Brasil. Muito batalhadora, dramática, intensa e uma exímia cozinheira. Desde pequena, eu ficava do lado dela, aprendendo a fazer as coisas. Ela realmente era conhecida por ser uma banqueteira. Até hoje, guardo as cartas que começavam com: ‘Oi, querida, como você está, minha netinha, meu amor?’, e acabavam com a receita de um bolo. Então, eu trago elas em mim e tenho muito amor, muito carinho e uma saudade gostosa de ambas minhas avozinhas. E pelos vovôs também, que eram figuras incríveis; eram bem diferentes, mas eram homens muito sérios, justos e honestos.”

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    “‘Isso é bom ou ruim para os judeus?’, a pergunta primordial para qualquer notícia que carece um pouco mais de entendimento”

    Clarice Reichstul, cineasta, escritora, cozinheira e chef do Paca Polaca, sobre a avó Wala

    “Pequenas pérolas de sabedoria de uma avó judia — no caso, polonesa —, a dona Wala:

    ‘A casa é uma mina de trabalho’, uma verdade que poucos estão realmente preparados para enfrentar;
    ‘Gostou? Comprei sozinha’, uma ode a pouco valorizada habilidade de saber o que é bom e onde encontrar;
    ‘Mas isso é bom ou ruim para os judeus?’, a pergunta primordial para qualquer notícia que carece um pouco mais de entendimento;
    ‘Maridos judeus não batem em suas esposas’, um mantra que denotava como uma ficção bem aplicada pode ser útil para uma vontade verdadeira: que netas e neto se casassem dentro da comunidade judaica. Só o meu irmão acreditou;
    ‘100% algodón, 100% qualidad’, justificativa para uma pechincha, seja na 25 de Março ou nas Galeries Lafayette, em Paris.

    A dona Wala Reichstul nasceu Ethel Diamant. Quando mudou para o Brasil, incorporou o seu nome de guerra ao documento de identidade. Nunca contou o motivo. No meu folclore pessoal, é por orgulho da própria história.”

  • “A memória que tenho mais fantástica vem do imaginário, através do brilho nos olhos de quem contava os casos dele”

    Henrique Gilberto, chef do restaurante Cozinha Tupis, sobre o avô Aníbal

    “É incrível a força da ancestralidade sobre mim! Meu avô, Aníbal Gilberto, faleceu quando eu tinha apenas cinco anos. Mesmo tão novo, consigo ter nele muito das minhas primeiras (e melhores) memórias afetivas. Algumas vêm do carinho que ele dedicava à criançada ao redor, outras vêm do exemplo. Mas a memória que tenho mais fantástica, que se tornou a principal, vem do imaginário, através do brilho nos olhos de quem contava os casos dele. Todos sempre enfatizaram o seu perfil, celebrando a inteligência, o humor, o lado boêmio e, sobretudo, a capacidade de dominar a cozinha em qualquer evento. Para dez ou cem pessoas, cozinhava com a mesma alegria e com a mesma disposição. Sua sabedoria sobre a cultura alimentar vinha de todos os cantos do mundo, numa época de enciclopédias, já era vasta e eclética. A mão dele na cozinha pegou a mão do meu pai e, depois, pegou a minha. De geração, em geração, em geração. Nunca soube o porquê dessas histórias sempre me fascinarem, só sei que elas foram me aproximando da cozinha sem eu perceber! A cozinha que hoje é meu lar. Dedico sempre minha carreira a ele, por ter inspirado tantas pessoas, a ponto de as histórias contadas por elas, sobre ele, me forjarem cozinheiro.”

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    “Vó Esmeralda, minha avó amarela, viveu até os 91 e esperava seu primeiro tataraneto nascer”

    Júlia Medeiros, escritora, atriz e dramaturga, sobre a avó Esmeralda. É autora de “A Avó Amarela” (ÔZé, 2018), vencedor do Prêmio Jabuti de melhor livro infantil de 2019, “Temporina” (ÔZé/Ponto de Partida, 2022) e “Zalém e Calunga” (ÔZé/Ponto de Partida, 2023)

    “Estive com minha avó, pela última vez, numa segunda-feira. Ela balbuciou macarrão com frango, eu perguntei se ela ia fazer; eu não, ela disse, não faço mais nada. Mas alguém tem que matar o frango, eu tentei. Tem que matar, ela concordou, sem abrir os olhos. Mas se matar com dó não morre, né, vó? Tem nada disso! Não pode é pensar ruim. Tem que matar pensando bom. Teve frango no seu casamento, vó? Teve. E mais o quê que teve? Tudo comum. Teve festa? Tudo comum. Lembra que você brincava de piniquim com a gente, vó? Não. Você beliscava assim na pelinha da nossa mão e cada um beliscava na mão que estivesse por cima, lembra? Não. Assim, vó. Tá muito feia a minha mão, muita mancha. Tá nada, você tá muito linda. Todo mundo tá falando mesmo que eu tô bonita. Mas você tá muito linda mesmo. É, disseram que eu tô mesmo. Vó, posso falar pra Raquel e pra Carol que eu sou sua neta preferida? Você vai caçar confusão, minha filha. Ela crispou os olhos, sem abrir. Mas nem pra caçar confusão eu posso, vó? Vai caçar confusão, não, filha, eu amo vocês todos igual. Igual mesmo? Todos igual, vocês são tudo pra mim. Ô, vó, eu te amo muito, viu? Também. E o que você tá gostando de ver na televisão, vó? Nada. Uma brigaiada, muita briga, qualquer coisa eles briga; ela passou a mão na cabeça. Tá doendo a cabeça? Tudo dói, filha. Tá tudo ruim, tudo doendo. Faço um carinho entre os olhos; descansa, vó; a voz leve, dedo de leve; descansa. Ela me olha pela primeira vez e diz tchau: tchau, tchau. Ué, vó, tá me mandando ir embora? Você já vai embora, filha? Não vai ficar pro café? A enfermeira anuncia o fim da visita; vou ter que ir, vó. Fica pro café, filha. Eu volto, vó, prometo. Te amo muito, muito, muito. Também te amo. Descansa, tá, vó? No dia seguinte, fim da manhã, ela mandou chamar os filhos. Falou bobagem, abraçou, beijou e deu um último suspiro. Tudo comum. Vó Esmeralda, minha avó amarela, viveu até os 91 e esperava seu primeiro tataraneto nascer. Até uma semana antes de morrer, morou sozinha, cozinhou seu almoço, mandou no próprio dinheiro, tomou as decisões. Era doce, muito doce, e detestava flor. Com a mesma amorosidade que nos chamava pro café, dizia aqui, cês vão tudo à merda, viu, seus sem vergonha! Baita mulher forte. Tive avó até os 36, meus filhos tiveram bisa até uma terça-feira; obrigada, vó, obrigada, eu repetia pro corpo dela no caixão mesmo sabendo que ela não estava lá. A mão era a mesma que a gente usava pra brincar, fui lá e fiz piniquim na pelinha dela. Te amo, vozinha. Os olhos fechados, nenhum assunto. Foi embora sem complicação, que bênção, só posso agradecer. No Natal a gente não vai ganhar uma nota dobrada até sumir no aperto de mão. Não repara, viu? Dei pra todos igual. Ô, vó, não precisava, a gente ia dizer, todos igual, escondendo o dinheiro no bolso, na bolsa, no cós de alguma roupa. Tem que pensar bom, que bênção, só posso agradecer, eu repito chorando enquanto penso que dó, que dó, que dó.”

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    “Sempre que vou descascar uma fruta para o meu filho, tento fazer da maneira que ele fazia para mim”

    Marcelo Tolentino, artista visual, autor do livro “Domingo” (Companhia das Letrinhas, 2023), sobre o avô materno, Heber Gutierres Mathias

    “Tive uma convivência intensa com meus avós e bisavós, já que morávamos na mesma casa. São incontáveis as memórias e os aprendizados que poderia citar aqui. Escolhi uma que parece pequena, mas que me faz relembrar com muito carinho do meu avô materno. Desde criança admiro habilidades técnicas e ele descascava frutas com muito esmero. Me encantava especialmente a maneira com que ele descascava uma laranja, mantendo a pele intacta numa tripa que, muitas vezes, virou cipó nas brincadeiras com meu irmão. Hoje, sempre que vou descascar uma fruta para o meu filho, tento fazer da maneira que ele fazia para mim.”

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    “Com minha avó entendi que bruxas são mais interessantes que princesas”

    Mariana Sixel, cabeleireira, sobre a avó paterna, Maria Mercedes

    “Minha avó começou como inspiração para mim por meio dos objetos. Eu lembro de ir criança à casa dela e parecia que eu estava entrando num museu. Ela colecionava peças de antiquário, a decoração era de um jeito só dela, a maneira como ela se vestia também era muito particular. E eu digo que a minha identificação com ela começou pelos objetos porque minha avó era uma pessoa muito distante, bem distante do que se espera do papel de uma avó fofinha. A casa era diferente e também um tanto quanto assustadora, parecia mais uma casa de bruxa do que de princesa, e não sei o que mais me encantava. Ela era uma mulher polêmica, e até eu entender melhor isso tudo, foi difícil carregar o fardo de ser ‘muito parecida com ela’ — minha família dizia isso a todo tempo. Depois eu entendi que as bruxas são muito mais interessantes que as princesas, e ficou tudo bem [risos]. Ela era uma mulher que fazia o que queria, vestia o que queria, e falava o que queria. Isso era uma afronta! Agora, falo com todo orgulho que ela me inspira não só nos objetos, mas também por ser firme nos seus propósitos, sem se preocupar muito em agradar os outros, uma das suas melhores qualidades. Hoje eu dou continuidade ao Salão Azul, que foi criado por ela, de um jeitinho só dela, em 1945, que significa isso tudo pra mim.”

  • “Tenho sempre em mente minha avó paterna e a alegria dos nossos encontros”

    Regiane Alves, atriz, no ar com a novela “Vai na Fé”, da TV Globo, sobre a avó paterna

    Tenho sempre em mente minha avó paterna e a alegria dos nossos encontros nas festas de Dia das Mães, Dia dos Pais, com todos os primos e tios. Lembro de comer as coisas deliciosas que a minha avó fazia. Meu pai tinha nove irmãos e, em todas as datas especiais, ela reunia todo mundo. Tinha bolo, a gente cantava parabéns, comia os brioches que ela fazia. Tenho muito carinho e boas lembranças dos meus avós paternos, que também eram os meus padrinhos.”

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    “Pode soar meio clichê, mas a comida dela era única”

    Tuca Mezzomo, chef dos restaurantes Charco e Vista Jardins, sobre a avó Dalva

    “Minha avó tem muita influência no meu trabalho. Ela era uma grande matriarca, uma grande anfitriã e uma grande cozinheira. Toda a família morava perto, nos arredores de Passo Fundo, Rio Grande do Sul, e a gente sempre passava os fins de semana com ela. E foi assim, desde cedo, que despertei para a gastronomia. Essa história pode soar meio clichê, mas a comida dela era única. Não frequentávamos tantos restaurantes, então, ir à casa da minha avó e comer a comida que ela fazia era muito especial. Na época, ela tinha uma horta com vegetais, ervas, cheiro-verde, frutas. Então, tudo o que ela cozinhava, ela buscava na horta. Tudo era incrivelmente fresco e orgânico. E era ela quem cuidava, plantava, colhia, buscava carne na casa dos vizinhos, um que criava ovelha e o outro que criava porcos. Essa coisa bem de interior. Às 6h, ela já estava na horta colhendo as coisas. Fazia um banquete de café da manhã e, enquanto a gente comia, lá estava ela preparando o almoço. Era costela defumando na churrasqueira, panelão de polenta, massa fresca. Ela corria pela cozinha, manipulava tudo ali, e eu achava incrível. Quando abri o Charco, quis homenageá-la por todas essas influências. No primeiro menu do restaurante, a gente tinha o Cuscuz da Dona Dalva, que foi um sucesso. É uma receita de cuscuz campeiro, com farinha de milho cozida no vapor, igual na cuscuzeira, mas lá no sul fazemos no pano, com charque, salame, cheiro-verde. É algo que gosto muito de fazer, é bem nostálgico para mim. Sinto falta dela, tenho muita saudade. Todo o tempo em que estivemos juntos foram incríveis e a única coisa que faltaria, se fosse possível, seria dar mais um abraço. De toda forma, acho que a gente trocou amor suficiente, mas um abraço a mais nunca é demais.”

  • “Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia”

    Valter Hugo Mãe, escritor, em trecho do livro “As Mais Belas Coisas do Mundo” (Biblioteca Azul, 2019), dedicado aos avós António Alves, Maria dos Anjos Rodrigues, Guilhermina Pimenta e Casimiro Lemos

    “O meu avô sempre dizia que o melhor da vida haveria de ser ainda um mistério e que o importante era seguir procurando. Estar vivo é procurar, explicava. Quase usava lupas e binóculos, mapas e ferramentas de escavação, igual a um detective cheio de trabalho e talentos. Tinha o ar de um caçador de tesouros e, de todo o modo, os seus olhos reluziam de uma riqueza profunda. Percebíamos isso no seu abraço. Eu dizia: dentro do abraço do avô. Porque ele se tornava uma casa inteira e acolhia. Abraçar assim, talvez porque sou magro e ainda pequeno, é para mim um mistério tremendo.”