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ConversasGuilherme Polanczyk: 'A maior parte dos jovens com transtornos não recebe tratamento'
Para psiquiatra que pesquisa transtornos do neurodesenvolvimento, fatores sociais e culturais como pobreza, uso excessivo de internet e isolamento da pandemia agravaram situação de saúde mental da juventude
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Guilherme Polanczyk: ‘A maior parte dos jovens com transtornos não recebe tratamento’
Para psiquiatra que pesquisa transtornos do neurodesenvolvimento, fatores sociais e culturais como pobreza, uso excessivo de internet e isolamento da pandemia agravaram situação de saúde mental da juventude
Os jovens estão sofrendo. É o que dizem dados colhidos no Brasil por diferentes pesquisas: o Unicef afirma que três em cada dez jovens entrevistados relataram sintomas de ansiedade; o Datafolha diz que oito em cada dez tiveram problemas recentes de saúde mental; e, segundo o Ministério da Saúde, o número de suicídios entre crianças e adolescentes subiu no país, na contramão de uma tendência global.
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Angústia, ansiedade, reclusão, solidão, dificuldade de concentração são alguns dos sintomas que aparecem nas respostas da juventude brasileira a essas pesquisas. Mas e os que não responderam? Para o psiquiatra da infância e adolescência, Guilherme Polanczyk, que é professor da USP, integrante Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas e estuda transtornos do neurodesenvolvimento, há uma faixa social que nem consegue entrar nos dados, nem recebe tratamento. “Entre as pessoas mais pobres, com mais desorganização familiar, as taxas [de ansiedade e depressão] provavelmente são maiores. É um fenômeno global e a pobreza é um fator de risco importante para os problemas de saúde mental em todo o mundo”, afirma em entrevista a Gama.
Na sua avaliação, entre os motivos para o sofrimento psíquico estão sinais dos nossos tempos: as mídias sociais, a pressão dos padrões de beleza, a polarização política e a dificuldade de diálogo, a economia e o clima. “O número de jovens sem colocação no mercado de trabalho, que não estão nem empregados nem em treinamento, vem aumentando em vários países.”
Para tornar o cenário um pouco mais complexo, Polanczyk aponta para certa confusão de diagnóstico entre os jovens, uma vez que a saúde mental tem se tornado um “produto” em certos contextos, com uma medicalização desnecessária. Na entrevista que você lê abaixo, ele explica melhor essa ideia e dá dicas de como perceber a tênue linha que separa uma tristeza comum à adolesciencia da depressão clínica. E, aos pais, recomenda: é preciso atenção redobrada e diálogo.
A pobreza é um fator de risco importante para os problemas de saúde mental
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G |Temos visto diferentes pesquisas que mostram que os jovens brasileiros estão sofrendo muito. A que devemos isso?
Guilherme Polanczyk |Primeiro, vamos pensar sobre o que é um problema de saúde mental. Ansiedade, sintomas depressivos, irritabilidade, estresse e insatisfação são sintomas presentes em todos em maior ou menor intensidade, a depender do que se vive. São sensações ou expressões emocionais das dificuldades que a vida coloca. No momento em que a gente fala cada vez mais de saúde mental, as pessoas incorrem em uma medicalização de problemas que não são da esfera médica. Na sociedade de hoje, há uma dificuldade de reflexão e de tolerância do desconforto. Por outro lado, no Brasil, não temos muitas pesquisas que usam uma metodologia mais rigorosa; temos fotografias isoladas de contextos específicos.
Durante a pandemia, o nosso grupo fez um estudo com jovens pela internet e mostrou que em torno de 30% deles tinham sintomas clínicos de ansiedade e de depressão. Essa pesquisa foi feita pela internet e os pais respondiam. Nós não incluímos as famílias desorganizadas, os pais que não estão atentos aos filhos, os pais que não têm internet em casa. Entre as pessoas mais pobres, com mais desorganização familiar, as taxas provavelmente são maiores. É um fenômeno global e a pobreza é um fator de risco importante para os problemas de saúde mental em todo o mundo. Alguns estudos rigorosos, principalmente na Escandinávia, nos EUA e no Reino Unido mostram um aumento de taxas de depressão na última década. E aí temos que pensar em fatores sociais e culturais amplos que atingem a população global: as mídias sociais e a falta de suporte social, a questão da imagem, a valorização do corpo, as relações mais fluidas, a polarização do mundo, a dificuldade de diálogo, as questões econômicas e as climáticas e o impacto que isso tem nos jovens em termos de antecipar o futuro e as dificuldades que devem vir. O número de jovens sem colocação no mercado de trabalho, que não estão nem empregados nem em treinamento, vem aumentando em vários países.
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G |Como fazer com que esse tipo de perspectiva não abale tanto os jovens? Tem alguma coisa que a sociedade ou as famílias podem fazer para ajudar?
GP |Pensando naqueles jovens que têm uma mínima organização, o diálogo e a percepção da importância, da existência de sentimentos e emoções, de um mundo interno, e de se entender que é algo que precisa ser cuidado. Há famílias onde não há diálogo, não há uma conversa entre jovens com seus pais, que ficam sem saber o que tá acontecendo na vida dos filhos e se surpreendem quando veem um sintoma maior. É preciso ter uma compreensão de que existe uma dimensão emocional e do mundo interno que não necessariamente responde às demandas dos pais e da sociedade por produção. Um exemplo grande, nas classes mais altas, é a demanda nos jovens pelo desempenho acadêmico grande, que tem a ver com ansiedade dos pais ao antecipar um futuro incerto a despeito da saúde mental dos jovens. São pessoas muito frágeis, pessoas sem vivências, sem uma capacidade de perceber que os sentimentos e as emoções são muito importantes e que em determinado momento tem uma quebra, não aguentam. Aí as taxas de suicídio são bem altas nessa população de alto desempenho, que não pode errar. Há depressões, o uso de substâncias, questões bem sérias. A sociedade que privilegia a produção pode ir de encontro a saúde mental, e isso é muito importante.
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G |Dificuldade de concentração e ansiedade são outros sintomas comuns aos adolescentes de hoje. Isso tem a ver com com um uso mais intensivo de redes sociais e internet ou sempre houve essa dificuldade nessa fase da vida?
GP |Tem uma questão do momento. No final de semana, balada, brigas de namorados, conflitos. Quem é que na segunda-feira de manhã vai conseguir ouvir bem o professor de matemática? Sem dúvida tem isso, a mente está ocupada por muitas questões naquele momento. E nas redes sociais, principalmente para essa geração que as acessa desde pequeno, elas treinam a não esperar, a não tolerar o tédio ou qualquer coisa com um processo mais longo. E o aprendizado é isso. Nas redes sociais não tem espera, você busca o tempo todo algum tipo de satisfação, de gratificação, e se você não tem de um lado, se você não recebe logo a resposta do WhatsApp, já vai para alguma outra rede social. O aprendizado como processo ficou fora do contexto dos jovens. Não é à toa que se busca muitas estratégias novas de aprendizado. E aí os métodos e currículos são muito mais dinâmicos, muito mais sintonizados com o que tá acontecendo e com o mundo dos jovens hoje.
As taxas de solidão e infelicidade aumentam em todo o mundo. São mudanças culturais da pandemia
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G |Também ouvimos que muitos têm sentido mais dificuldades de se relacionar, que preferem ficar em casa a experimentar uma vida externa A adolescência é um período muito definidor de identidade, em que se rompe com os pais e se constrói independência. Isso pode ser visto também como um sinal de sofrimento?
GP |O nosso país hoje está vivendo uma divisão política enorme, tem todas as questões climáticas, tem uma sensação de um mundo perigoso, de um mundo incerto, de um mundo ameaçador. A pandemia trouxe não só a sensação, mas a certeza de que a gente não tem controle sobre o que acontece. E sem dúvida ficar em casa tem essa conotação de controle, de “bom, vou me fechar nesse mundo que eu controlo, vou precisar menos do mundo lá de fora e vou tentar aqui dar conta”. Sem contar a questão social, teve de fato um afastamento, uma falta de experiências e uma necessidade de se adaptar a falta dessas experiências, a falta de estar com o outro. Ou pelo menos estar menos com o outro, ou estar com outro pelo vídeo, que é muito mais controlado. Isso pode ser um impacto nessa geração, a gente não sabe ainda, mas é possível realmente. As taxas de solidão e infelicidade aumentam em todo o mundo, não só entre jovens, mas entre adultos também. Tem mudanças culturais e sociais como consequência da pandemia.
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G |Algumas pesquisas dão conta de que os jovens de hoje fazem menos sexo que os de outra geração. Por que isso acontece?
GP |Isso aparece nos números também. A pandemia claramente é um fator nesse sentido, e esses dados são importantes para a saúde mental de forma bem prática. A solidão, por outro lado, a sensação de falta de suporte, de falta de conexão com o outro, é um fator de risco bem importante para problemas de saúde mental. Não só entre jovens, mas entre idosos também. É um problema de saúde pública em vários países, no Reino Unido, por exemplo, existe um Ministério da Solidão. Todos esses dados, tanto da menor frequência de relações sexuais, quanto de não querer mais sair de casa, apontam para o movimento social ou cultural que coloca em risco a saúde mental.
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G |O que chama a atenção é que o dado do menor número de relações sexuais acontece no momento em que existe mais debate sobre orientação sexual, fluidez de gênero e espaço para experimentação.
GP |Mas ainda tem muitos jovens com muitas dificuldades de se colocar sexualmente e há uma visão do quão perigoso pode ser isso. Por outro lado, tem crianças de 13 ou 14 anos que na balada fazem sexo oral. Nem sabem o nome dos outros parceiros. Tem uma heterogeneidade, tem muitos fenômenos acontecendo em diferentes grupos e contextos. Tem escolas que realmente é isso, crianças com 13 e 14 anos já beijaram e tem vários encontros, não necessariamente sexuais. Enquanto outros, de 15 ou 16 anos, ainda sem experiências. Tem uma heterogeneidade grande e a pandemia teve um impacto sem dúvida grande nesse sentido.
Na adolescência as emoções são intensas, há dificuldade de se regular a tristeza e a raiva
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G |Vemos muitos personagens de séries e de filmes jovens se automutilando. Por que isso se tornou mais comum? Como lidar?
GP |Está mais frequente. Taxas de busca de emergência em hospitais por comportamento de automutilação vem aumentando muito, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos e na Europa. É um comportamento que tem uma influência social grande: há vários canais de TikTok e no Instagram em que as pessoas mostram os cortes e explicam como fazer, como também ocorre em comportamentos alimentares. Isso passa por uma questão de identificação com o grupo. Na adolescência as emoções são intensas, há dificuldade de se regular a tristeza e a raiva, e se eu tenho um contexto social que estimula isso, vira uma saída e um ganho, que é fazer parte de um grupo. Isso, claro, principalmente para aquelas pessoas mais sensíveis, que estão excluídas, se sentem à parte. É um comportamento considerado importante porque pode ter uma continuidade, com tentativas de suicídio e suicídio completo. A questão pode começar nisso, na dificuldade de lidar com uma emoção que seja natural, uma coisa de participar do grupo, mas eventualmente isso pode evoluir para um quadro de autolesão mais grave e depressão. É algo que sempre tratamos com seriedade, porque pode não ser tão grave no momento Inicial, mas pode evoluir de uma forma bem ruim.
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G |Quando conseguimos perceber que o sofrimento é um problema de saúde mental e não um sofrimento comum do ser humano ou mesmo da fase da adolescência?
GP |Essa linha pode ser muito tênue, uma divisão muito difícil. Alguns casos são claros: um adolescente com autolesão, que não sai da cama ou não tem vontade de fazer nada, que pensa na morte, tem um quadro depressivo claro. Alguém que há muitos anos tem uma dificuldade grande de manter a atenção, que tem uma inquietude grande, uma desorganização, é um Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade. Um delírio, um jovem que acha que ninguém gosta dele, que inclusive tem um perseguidor, pode ser o início de um quadro psicótico eventualmente desencadeado por uso de maconha. Mas, na maior parte das vezes, é uma continuidade de um sofrimento pelas situações difíceis da vida, uma angústia. E eventualmente isso pode evoluir para um quadro psiquiátrico.
Usamos alguns parâmetros: a persistência desse sofrimento, se tem número grande de manifestações; se é associado a vários sintomas, não só ansiedade antes da prova, mas uma sensação de que alguma coisa grave está acontecendo comigo ou com meus pais. Analisamos se é algo que atrapalha as relações sociais e familiares e o desempenho acadêmico. De um lado, esses problemas de saúde mental podem se tornar um produto e uma medicalização, uma tentativa rápida de resolver questões que não são rápidas. Mas por outro lado, temos bons dados de que a maior parte dos jovens que realmente tem transtornos não recebe tratamento. -
G |E por que isso acontece?
GP |No nosso grupo, temos um estudo que acompanha adolescentes em escolas públicas aqui em São Paulo e também em Porto Alegre. Avaliamos esses quase 2 mil e identificamos aqueles que tinham transtornos mentais. Desses, 80% não tinham recebido diagnóstico, nem tratamento. Só 20% tinham sido reconhecidos, e isso falando em grandes metrópoles que tem um sistema de saúde. Então o que a gente imagina pela vivência é que tem números muito maiores de não reconhecimento e não tratamento nas populações mais vulneráveis. Tem uma lacuna enorme de serviços e de profissionais, e um sistema de saúde muito frágil para dar conta das pessoas que realmente têm problemas e que sofrem.
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CAPA O que os jovens querem?
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1Conversas Guilherme Polanczyk: "A maior parte dos jovens com transtornos não recebe tratamento"
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2Depoimento Qual país os jovens querem?
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3Reportagem Jovens, futuro e saúde mental
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