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SemanaQuem vai pagar a conta dos restaurantes?
Com o recrudescimento da pandemia e pouco auxílio governamental, o setor de fica à beira do colapso e busca ajuda financeira
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SemanaQuem vai pagar a conta dos restaurantes?
Com o recrudescimento da pandemia e pouco auxílio governamental, o setor de fica à beira do colapso e busca ajuda financeira
Em 2020, a chef Heloisa Bacellar, 57, fez o que pôde para manter em operação os empreendimentos ligados ao restaurante Lá da Venda, que funciona na Vila Madalena, em São Paulo, há mais de dez anos. O espaço, que mistura mercearia, café e restaurante com um toque caipira — e um pão de queijo que figura entre os quitutes mais apreciados da cidade — já não vinha com uma grande folga em termos financeiros, principalmente depois das crises que atingiram o país nos últimos anos.
A pandemia e o consequente fechamento das portas por meses acabou comprometendo o negócio, mas a chef bem que tentou se manter em pé. Aproveitou o programa lançado de forma emergencial pelo governo federal para suspender temporariamente contratos de trabalho e promover cortes de jornada e salários. Conseguiu um empréstimo pelo Pronampe (Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte), renegociou contratos de fornecimento e aluguel e fez uma aposta no delivery.
Ainda assim, as medidas contavam com uma reabertura breve e a normalização do comércio ainda no horizonte — expectativas que não se realizaram. O Lá da Venda não suportou os meses de pressão financeira, e Heloisa precisou cortar da própria carne para seguir funcionando.
O primeiro sacrificado foi o quiosque da marca no shopping JK Iguatemi. “Quando o shopping reabriu, em junho, o movimento não era o mesmo. Vendíamos três cafezinhos por dia, o que estava longe de compensar o valor pago pelo espaço. Não tinha mais jeito.” Até agosto, ela precisou demitir 29 funcionários e fechar de vez a operação por lá.
Também não conseguiu mais arcar com a manutenção do imóvel na Barra Funda onde produzia a parte de confeitaria do restaurante. Após deixar o local, a ideia era transportar o equipamento para a unidade da Vila Madalena e tentar operar inteiramente de lá.
O delivery foi uma aposta que deu pouco resultado. As taxas dos aplicativos não compensavam o esforço, e as entregas por conta própria tiveram poucos frutos.
Já vínhamos de crises sucessivas e, de repente, percebemos nossa fragilidade. Muitas pessoas se desesperaram logo no início da pandemia porque ninguém tinha caixa para nada
Apesar de todas essas dificuldades, as coisas até começaram a melhorar antes de ficar piores. Em setembro, apesar de funcionar com espaço restrito, o restaurante teve um movimento maior. Melhorou ainda mais em outubro e novembro, embora mal desse para pagar as contas. “Só que em dezembro voltou a ficar muito ruim e, de janeiro para cá, com as pessoas em casa e um novo fechamento de portas, foi ficando inviável.”
Em março, Heloisa finalmente jogou a toalha, e o Lá da Venda fechou as portas, desta vez de forma definitiva. Daqui para frente, ela pretende se dedicar exclusivamente ao seu blog gastronômico. Até pensa em voltar algum dia a vender o famoso pão de queijo, mas ainda não tem nada planejado.
Embora a história de Heloisa seja só sua, ela serve de espelho à de centenas de milhares de donos de bares e restaurantes pelo Brasil, que, depois de suportar um ano de caos como foi 2020, se deparam agora com um recrudescimento da pandemia no país. Membro de um grupo de WhatsApp com mais de 300 empreendedores do ramo no Brasil, a chef enxerga prejuízos enormes e um impacto econômico gigantesco para todo o setor, de produtores e fornecedores até restaurantes.
“Já vínhamos de crises sucessivas e, de repente, percebemos nossa fragilidade. Muitas pessoas se desesperaram logo no início da pandemia porque ninguém tinha caixa para nada”, conta.
Agora, junto à Abrasel (Associação Brasileira de Bares e Restaurantes), quem ainda busca se manter vivo vem empreendendo uma queda de braço com governos de diferentes esferas por extensões de benefícios e linhas de crédito que impeçam um dos setores que mais empregam no Brasil de ir à lona.
Horizonte de dívidas
Uma pesquisa do Sebrae aponta que empreendedores do ramo de alimentação estão entre os que mais sofrem nesta segunda onda da pandemia. 91% dos restaurantes e bares ainda em funcionamento no Brasil tiveram dificuldades para pagar os salários de abril, indica uma pesquisa recente da Abrasel. No total, 82% trabalharam no prejuízo em março e 73% tiveram que demitir funcionários durante os primeiros três meses do ano.
O presidente da instituição, Paulo Solmucci, declara que, mesmo que todos sejam autorizados a funcionar normalmente em breve, os estabelecimentos já têm grandes feridas financeiras e devem seguir em uma situação delicada por algum tempo.
91% dos restaurantes e bares ainda em funcionamento no Brasil tiveram dificuldades para pagar os salários de abril, aponta pesquisa
“Donos estão em dívida com bancos, têm dificuldade para pagar impostos, fornecedores, funcionários… são tantos problemas que, mesmo com as portas abertas, se não receber ajuda dos governos em nível municipal, estadual e federal, o setor não consegue se recuperar tão cedo”, aponta.
Para Solmucci, o setor vem pagando uma conta injusta e desproporcional, que deve afetar uma das áreas que oferecem maior impacto financeiro e cultural no país. “Pesquisas mostram que deve levar pelo menos três anos para saldar boa parte das dívidas contraídas nesse período. Numa conta realista, serão cinco anos até que as empresas voltem a alcançar um nível confortável de endividamento.”
O que seria de nós sem os restaurantes?
O jornalista e consultor gastronômico Luiz Américo Camargo foi ao Instagram em março fazer um desabafo e um apelo sobre a situação que vivem os restaurantes em São Paulo. “Que atrativo teria a metrópole sem seus museus, seus eventos, sua arte de rua, seus empreendedores criativos, seu ambiente de negócios e… sem seus restaurantes?”, escreveu, em um post aplaudido por representantes do setor, como os chefs Rodrigo Oliveira, do Mocotó, e Helena Rizzo, do Maní.
Para chamar os governos — principalmente estadual e municipal — à responsabilidade, Camargo cita propostas de outros países para o setor e lembra, por outro lado, que o Brasil já gastou bilhões para acudir o sistema bancário, assim como o agronegócio e a indústria.
Que atrativo teria a metrópole sem seus museus, seus eventos, sua arte de rua, seus empreendedores criativos, seu ambiente de negócios e… sem seus restaurantes?
O governo dos EUA, onde o setor também foi um dos mais afetados, anunciou, dentro de um pacote trilionário de estímulo econômico frente à covid-19, um auxílio de US$ 28,6 bilhões (R$ 163,5 bilhões) para restaurantes familiares do país. No início de março, o Reino Unido reabriu pubs e restaurantes, que passaram a receber clientes em suas áreas externas. Países europeus como Alemanha, Áustria e Bélgica promoveram um importante corte nos impostos para o setor. Em dezembro, o Banco Central Europeu lançou um pacote de estímulo no valor de 500 bilhões de euros (R$ 3,4 trilhões), medida que deu algum alívio aos combalidos restaurantes do continente.
Na falta de programas dessa magnitude por aqui, Camargo conclui: “Eu volto à minha digressão: o que seria de mim sem os restaurantes de São Paulo? Imodestamente, acho que os poderes municipal e estadual deveriam também pensar assim.”
O bater das portas
Em março, o Mangiare, com dez anos de existência na Vila Leopoldina, fechou. Na mesma época, o bistrô Ruella, da Vila Olímpia, também se foi. Em abril, foi a vez do Corrutela, na Vila Madalena. Assim como o Bar Genésio, o Ramona, a cantina Luna Di Capri, o Buttina, há pouca expectativa de que essas e outras casas tradicionais de São Paulo voltem a receber clientes.
A empresária de origem argentina Ana Massochi, 70, fechou já em abril de 2020 as portas do La Frontera, em Higienópolis, para dedicar a maior parte de seus esforços à churrascaria Martín Fierro, que se mantém há mais de quatro décadas na Vila Madalena.
Para Massochi, o delivery fica longe de compensar o atendimento presencial. A empresária, que teve seu pedido de crédito pelo Pronampe negado, reclama da cobrança de impostos em sua totalidade pelo governo e da falta de continuidade de iniciativas para garantir postos de trabalho no setor.
“Se nem o auxílio emergencial foi renovado como estava, o que poderíamos esperar que fosse feito pelos restaurantes? Quando funcionários te ligam pedindo dinheiro e você não tem o que dar, é uma situação muito difícil. A política do governo é matar gente.”
Restaurantes mais caros, que vendem a experiência gastronômica e presencial como principal atrativo, têm tido muito mais dificuldade de se adaptar aos novos tempos. Segundo especialistas, pouca gente consome alta gastronomia pelo delivery, que favorece comidas fáceis e rápidas, como pizza, hambúrguer e sushi. No início de abril, a Enoteca Saint Vinsaint, da Vila Nova Conceição, pediu ajuda aos clientes em seu Instagram para tentar se manter viva, mesmo com a perspectiva de mais um mês de portas fechadas.
“Contabilizando tudo, foram sete meses fechados. Chegamos a pegar o crédito oferecido pelo governo, mas desde o começo deste ano estamos sem auxílio. Esse último lockdown veio sem ajuda nenhuma”, conta a proprietária Lis Cereja, 37, que dedica a sobrevivência da casa até o momento à ajuda de clientes e amigos.
As mesas do país
O estado de São Paulo deixou a fase emergencial mais rígida no dia 12 de abril. Para os restaurantes, ainda de portas fechadas, isso significou o retorno do drive-thru e do take away. O que, segundo o empresário e dono do restaurante Varanda Grill, não significa grande alívio. “O take away representa 5% do movimento de um restaurante, é muito pouco”, afirmou em entrevista à Folha.
O presidente da Abrasel lembra que, embora a região Sudeste esteja ligeiramente pior que o restante do país em termos de endividamento, o problema atinge o Brasil inteiro praticamente com a mesma força. No total, mais de um terço dos estabelecimentos deixou de funcionar desde o início da pandemia até fevereiro deste ano, segundo dados da Abrasel.
Mais de um terço dos restaurantes do Brasil deixou de funcionar desde o início da pandemia até fevereiro deste ano
Portanto, o Rio viu fecharem recentemente as portas do tradicional Cervantes, em Copacabana. Salvador (BA) deu adeus ao Alaíde do Feijão, Fortaleza (CE) ao Alfredo. Brasília há mais de um ano já não conta com o famoso Piantella…
“Todo mundo em lockdown, desesperado, e nada do governo municipal”, conta o empresário André Panerai, 38, dono do bar Jângal, em Belo Horizonte. “A prefeitura até mandou uma cartinha falando da importância de pagar o IPTU. É surreal que, com as empresas impossibilitadas de trabalhar, a gestão municipal esteja cobrando os impostos cheios para o comércio, em vez de tentar algum tipo de equilibrio.”
Débito ou crédito?
Para o consultor em gestão de bares e restaurantes Eduardo Scott, se o auxílio dos governos das variadas instâncias foi insuficiente no começo da pandemia, hoje ele é quase inexistente. E, ainda que o governo federal tenha tentado algo, no caso de São Paulo, as gestões estadual e municipal fizeram muito pouco. “Nenhum alivio do ICMS, nenhum programa específico para o setor. Mesmo as linhas de crédito vieram com juros de mercado..”
Para Scott, a linha de ação dos governos deveria ser simples: retomar os programas de preservação do emprego, criar linhas de crédito mais bem estruturadas e acessíveis e desenvolver um programa de alívio, renegociação e parcelamento de impostos. “Hoje muitos donos seguram dívidas tributárias enormes esperando um socorro do governo. Alguns sabem que não dá para pagar e estão aguardando o momento da retomada para vender o negócio.”
Além de incentivos, também faltou uma gestão mais responsável por parte do próprio setor, diz o analista em competitividade do Sebrae, Luiz Rebelatto. Assim como um olhar atento às necessidades do consumidor e à adaptação do negócio a elas. “Muitos restaurantes não tinham uma estrutura mínima de funcionários, gestão e racionalização de estoques. E agora, sem analisar o comportamento do consumidor, com inovação e criatividade, fica difícil se manter.”
Em negociação com diversos estados e municípios do Brasil por melhores condições para os empreendedores, a Abrasel pretende, em último caso, acionar todos eles na Justiça. “Se o setor está fechado por decisão do governo, é necessária uma reparação para esse empresariado”, diz Solmucci,.
O presidente da instituição considera quase simbólico o valor de R$ 2 mil mensais que está sendo estudado no Senado como auxílio às empresas do setor. Mas ajuda, principalmente os pequenos negócios. E no momento, segundo ele, todo auxílio é bem-vindo.
“Este mês, as empresas de delivery concordaram em reduzir suas taxas. Também buscamos outras companhias grandes dispostas a dar alguma ajuda efetiva, como subsidiar o custo das embalagens de entrega. Estamos atrás de todo tipo de ajuda possível.”