O que é NFT? E como funciona essa tecnologia? — Gama Revista
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Repertório

NFT: boom ou mesa de jogatina?

Entenda o que significa a sigla mais falada do momento, por que é tão celebrada e o que deve acontecer com esse novo mercado

Isabelle Moreira Lima 13 de Junho de 2021

NFT: boom ou mesa de jogatina?

Isabelle Moreira Lima 13 de Junho de 2021
Isabela Durão

Entenda o que significa a sigla mais falada do momento, por que é tão celebrada e o que deve acontecer com esse novo mercado

NFT, três letrinhas que deixam qualquer pessoa não iniciada no mundo da tecnologia completamente zonza. E, de repente, elas estampam sites, jornais, saem da boca de apresentadores de TV, estão em todos os lugares. Especialmente depois de um leilão da Sotheby’s ter apurado US$ 16 milhões na venda de um exemplar da sigla em abril deste ano.

NFT tem a ver com arte, sim. As três letras resumem non-fungible token ou token não-fungível, que, traduzindo em miúdos, é um código de autenticação de um arquivo que garante que ele é único. É como se fosse uma serigrafia numerada, só você pode ter a número 36 de 100, por exemplo. A garantia vem de uma espécie de cartório digital, o blockchain. E, para adquirir essa coisa tão única você tem que gastar suas criptomoedas, mais especificamente as etherium.

Mas se para você essa explicação é rápida demais para desatar o nó cerebral que o assunto pode causar — o que é tranquilamente compreensível, afinal, como assim há gente comprando a foto de uma coluna sobre NFT publicada no New York Times por US$ 560 mil? –, leia o pequeno guia produzido por Gama abaixo.

Para montá-lo, tomamos como base as opiniões de dois especialistas com visões bem diferentes no tema. O primeiro deles, Gabriel Aleixo, fala de dentro do negócio, atua hoje no blockchain Hathor Network, como pesquisador e no desenvolvimento de negócios. Aleixo estudou criptografia e inovação pela Universidade de Cambridge e é cocriador e apresentador da websérie “Bitcoin em Português”, primeiro curso aberto sobre Bitcoin em língua portuguesa.

Do outro lado, com uma visão talvez mais crítica, está Gilson Schwartz, um pesquisador dos impactos sociais da internet que é professor livre docente em economia do audiovisual da ECA e do programa de pós-graduação interdisciplinar Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da FFLCH, ambas da USP, além de ser coordenador de laboratório Cidade do Conhecimento e presidente da rede Games for Change América Latina, de promoção de causas sociais na indústria de games.

“É um mercado que tende a se racionalizar”

Gabriel Aleixo, pesquisador, cocriador da websérie “Bitcoin em Português” e desenvolvedor de negócios da Hathor Network

Por que agora?

“O ponto de ignição do NFT foi a forte valorização de algumas criptomoedas nos últimos tempos. Estão valendo mais do que há dois ou três anos. O NFT como tecnologia já existia: há quem argumente que o primeiro foi feito em 2011, e a tecnologia padronizada existe há quatro anos, quando surgiram as primeiras versões como joguinhos, itens colecionáveis digitais. Esse mercado movimenta até US$ 3 milhões por mês, o que para o mercado de criptomoedas não é nada, pois está valendo hoje US$ 2 trilhões, impulsionado por muita gente que ganhou muito dinheiro rapidamente.”

Quem compra? Quem faz?

“São pessoas que formam uma elite financeira muito específica e nichada. São pessoas que não precisam de dinheiro para questões prioritárias. Imagina um jovem branco do hemisfério norte que mora na casa dos pais, que tem emprego estável e US$ 20 mil em criptomoeda. Esse dinheiro passou a valer de US$ 200 mil a US$ 300 mil. Eles têm idade entre 18 e 40 anos, é um público muito masculino, com essa pegada meio geek, meio nerd. E aí eles operam quase um novo mecenato: é uma relação de pessoas com ideias muito experimentais e outras com muito dinheiro investindo nesse tipo de mercado. Do lado dos criadores de conteúdo tem mais mulheres entrando e participando, mas como boa parte dos ambientes de tech é masculino.”

É uma bolha?

“Já tem gente falando que o NFT morreu, acabou. As pessoas também falam isso do bitcoin. É um exagero, mas não gosto do termo bolha; usaria boom. É uma expansão acelerada e insustentável. Algumas coisas muito excêntricas como NFT leiloado a US$ 70 milhões por uma casa tradicional de leilões como a Sotheby’s… Não vai ser desse jeito que vai continuar, mas como renda para pequenos (e não grandes) artistas. Os grandes ganham, mas indiretamente com marketing, como é o caso da banda Kings of Leon. O NFT vai funcionar como um token exclusivo, como uma obra de serigrafia, que são cem apenas, é como se você tivesse o número 32 de 100. É incrível que um NFT possa pagar R$ 20 mil a um artista. O cara só produz motion graphics em 3D, como venderia de outra maneira?”

Promove a exclusão?

“Não faço juízo objetivo de valor. Tem uma perspectiva inclusiva, na verdade. Qualquer pessoa pode comprar e vender bitcoin. É legal a ideia de dinheiro digital, em viagem consigo usar caixa 24 horas e consigo moeda local, por exemplo. As pessoas ainda acham que moeda digital é só bitcoin. Você pode ter um criptoreal, já tem duas moedas digitais no Brasil: Cbrl e BRZ. O NFT é inclusivo também porque quando você fala de artes e dinheiro ou você paga zero para ver exposições, ou gasta demais em galerias. O segmento de NFT cria um sentimento de exclusividade mais acessível. Os preços hoje são insustentáveis, mas deve ficar mais democrático.”

Como comprar NFT?

É preciso primeiro comprar a moeda digital ethereum, a mais utilizada para essas transações, em uma corretora. A transação pede que se configure uma carteira para mandar e receber os valores no navegador — há plugins que funcionam como carteira. Uma vez instalado e com ethereuns na máquina, basta você ir a uma galeria de NFT dentre as várias que existem, como Rarible, SuperRare, Open Sea, NiftyGateway, e escolher uma obra. Algumas estão disponíveis para venda direta, pagou, levou; outras são vendidas em leilão.”

É hora de investir?

“Tem gente que entra no oba oba quando o preço está subindo, a maioria da população no Brasil não tem educação financeira e investe assim. Com o NFT tem sido um pouco diferente porque a curva de aprendizagem é um pouco maior.”

Não tem agência reguladora?

“No caso dos NFTs especificamente, o único lugar do mundo onde há algo próximo a uma jurisdição é a Suíça, é o chamado “Cripto Valley”, porque tem muita tecnologia financeira. O NFT é meio maluco hoje: você compra um certificado apenas que, em 99% do mundo, não quer dizer nada. Se eu comprei o single do Kings of Leon, eu não ganho nada por sua execução, por exemplo. Já na Suíça, quando você compra um NFT de música, talvez aquilo dê licença para MP3, embora não dê direito de reprodução. No resto do mundo, o que acontece com NFT e criptomoeda é avaliado de acordo com a natureza do uso. Não existe regulação, mas cada órgão — seja Receita Federal, CVM (Comissão de Valores Mobiliários), o que for — avalia o que se pode e o que não se pode fazer.”

Para que serve um NFT afinal?

“Hoje é muito especulativo, subjetivo. A pessoa quis gastar dinheiro com aquilo, investimento, coleção. Mas aos poucos cria-se valor utilitário. No mundo digital o consumo de cultura ficou muito efêmero. Com a pandemia, nem show tem mais. O NFT criou e reforçou novas relações econômicas e de entretenimento.O NFT é a nova fronteira da desmaterialização, a dos colecionáveis. E conversa muito com a ideia de dinheiro digital da qual o bitcoin é pioneiro.”

Facilita contravenções?

“A blockchain é transparente. Se eu mando dinheiro para você, todo mundo consegue ver. Não o meu nome, mas uma sequência de letras e números. É muito parecido com sistema de IP da internet, com um CPF vinculado. Todo mundo é anônimo até cometer um crime. Fora toda a estrutura de vigilância que existe na internet. Em 99% dos casos, criptomoedas são altamente rastreáveis. Eu consigo comprar mil reais sem dar documento para ninguém. Um milhão? Tem que fazer cadastro como banco. A exceção são moedas digitais criadas para o completo anonimato como Monero e zcash. Foi assim que o Wikileaks conseguiu sobreviver, quando cortaram tudo, sobrou a criptomoeda.”

Há risco de se comprar algo falsificado?

“O NFT assegura que o que foi gravado nela se torna imutável. Quando você registra uma coisa é impossível alterá-la depois. Se eu escrever que aquele NFT corresponde a uma obra de arte que o John Lennon criou isso vai ficar lá para sempre, ninguém pode apagar ou mudar. Por outro lado, ela não permite qualquer garantia de que o que foi gravado é verdade. A blockchain não é um auditor, mas permite auditoria. Quer dizer que não serve contra falsificação? As informações são imutáveis, qualquer suspeita não pode ser alterada. Pensa nela como livro que não consegue apagar a história. Agora se a história é verdadeira depende das partes. É importante checar se o artista divulgou em suas redes, por exemplo, que emitiu o NFT.”

“A internet, que surgiu como espaço público, está sendo privatizada”

Gilson Schwartz, professor livre-docente da ECA e da pós-graduação Interdisciplinar de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades da FFLCH, na USP

Por que esse frenesi do NFT?

“As bolhas da internet não são uma invenção dela, mas do capitalismo. Claro que vindo uma tecnologia que repercute a informação, a bolha informacional vira uma bolha especulativa ainda mais poderosa. NFT é tão intangível e tão imaterial quanto a tulipa foi no século 17, outro objeto de especulação. Mas se ele vem travestido e transmitido digitalmente com toda essa infraestrutura com blockchain, a lógica do processo é a mesma, a de uma bolha especulativa.”

E por que agora?

“Desde 2008, a economia não saiu da estagnação, o trabalho ficou precarizado e a tecnologia cresceu. Os hipermilionários ficaram mais ricos e tanto dinheiro sobrando sem destinação produtiva virou terreno fértil para bitcoin e NFT. É um negócio minúsculo ligado à elite mundial. É o famoso 1%, que tem bilhões de dinheiro acumulado. Há um desequilíbrio aqui entre financeiro e o real e quem tem grana pode brincar nesse cassino.”

O NFT é um jeito de materializar a internet?

“Embora para todo mundo a internet pareça algo intangível, na prática é bem material. Tem energia elétrica, tem infraestrutura de satélite, cabo submarino. Tem propriedade privada controlada por quatro ou cinco grandes empresas. A nuvem está em servidores, depende de energia elétrica, não é de vapor d’água. O pessoal vende como intangível, imaterial, alquimia da informação. Aquilo é um registro elétrico-eletrônico que está depositado e registrado. Eles vendem como imaterial algo que depende de energia elétrica, servidor e tem dono.”

Então é ser dono de algo único…

“Mesmo que seja copiável, quem tem registro tem algo único. Esse é o significado jurídico de fungível e infungível. O que pode ser copiado e o que não pode. Vamos pegar uma imagem no Instagram, imagem de um quadro que fiz usando pixels. Ela pode ser copiada. Mas a imagem original que está registrada no blockchain é única, porque cada registro é único. Então até aquilo que pode ser infinitamente copiado está sendo ideologicamente associado ao que não pode ser copiado. Não tem paralelo no mundo real. Você registrou seu casamento no cartório. Não tem outro registro, é aquele. É como se você pudesse ter fotos à vontade, mas o registro é um só e você está vendendo.”

… ou de privatizar a internet?

“Quem ganha é quem tem o domínio do registro. É uma privatização da internet e um controle da sua infraestrutura muito material. Imaterial é a cultura, a arte; agora o quadro, a Monalisa, tem uma correspondência física. No caso do NFT é uma piração mesmo. Eu só consigo explicar recorrendo a essa propensão de que as pessoas acreditem em ilusões quando a realidade nos leva a tantas desilusões e descrenças. Não vejo isso como tendência. Não acho que isso vá mudar o mundo da arte. É uma escassez completamente artificial e programada.”

É um problema não ter regulação?

“Os ultraliberais adoram. O registro não faz parte do Estado, mas olhando a internet você vê que ela está loteada — você não chega a lugares virtuais só por querer. Você tem filtros, barreiras, o controle dos algoritmos. A internet que surgiu como espaço público, aberto e livre, na verdade vai se tornando um espaço privatizado, controlado e a serviço da especulação com registros de imagens e contratos na própria rede eletrônica, como se tivesse uma especulação imobiliária em cima da distribuição de energia elétrica e de registros digitais, tudo está sendo contabilizado. Tanta inovação e estamos na mão de quatro empresas? Mas eu quero mesmo todos os meus e-mails ou de uma universidade pública nas mãos do Google? Quero fazer meu pagamento pelo WhatsApp? São questões políticas e ideológicas fundamentais. No governo Trump já se falava sobre poder monopolista. A Europa, o tempo todo discute regulamentação, regulação, esfera pública. São internets diferentes. Aquela ideia de internet acessível a todos não se realizou e temos que perguntar porquê.”

O NFT deve promover mais desigualdade?

“É como a internet: no momento em que a rede pública é apropriada pela elite que especula e quer retorno rápido, a desigualdade aumenta e a sociedade está sendo manipulada. Quando a internet surgiu, diziam que qualquer um poderia ser o que bem quisesse. Mas será que é por mero acaso que 20 anos depois tem cinco conglomerados que dominam?”

E o que vai acontecer, o NFT deve se firmar?

“Tem artificialidade nesse mercado, uma coisa especulativa como um game — tudo vira game. No momento em que o estado está quebrado e os trilhardários estimulam isso como cassino, o dinheiro fica girando. Assim como explodiu o lucrativo mundo das fake news, temos novos universos de ‘fake value’. O NFT abriu mais uma mesa, mais uma ‘slot machine’ no cassino da finança desregulamentada que ou não vai dar em nada ou vai acabar como todas as bolhas, estourando e causando ainda mais rancor e miséria. Mas sempre vai ter alguém que vai falar que quer ir ao cassino e tentar a sorte.”

O que tiramos de bom dessa história de NFT e criptomoeda?

“A infraestrutura tecnológica é extremamente ágil e permitiu, para um monte de setores econômicos, adaptação para a situação de restrição de mobilidade da pandemia. Há ganhos potenciais, mas para serem alcançados, tem que ter regulamentação, controle social, política pública, tem que ter educação e letramento, não simplesmente estimular o consumismo de aparelhos e aplicativos chamados com um certo glamour de “inovação disruptiva”. Um exemplo prático: o departamento de finanças da Prefeitura de Nova York fez um hackaton público, uma chamada geral para especialistas de vários países, em um esforço colaborativo para criar modelos e padrões para usar moedas digitais de forma sustentável, legítima e que auxiliasse pessoas necessitadas durante a pandemia. Na hora em que tudo virou digital e que as pessoas não poderiam se movimentar, notou-se esse gap digital. Ficou evidente que o avanço tecnológico deixou para trás as pessoas que mais precisavam receber recursos emergenciais em contas digitais que simplesmente não existiam, apesar de toda a sofisticação das chamadas fintechs e dos circuitos automáticos de especulação em Wall Street.”