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ConversasLira Neto: "Biografar é desnudar a alma"
Biógrafo de nomes como Getúlio e Padre Cícero lança livro sobre como contar histórias de vida e afirma que é preciso evitar a simpatia e o julgamento para narrar fatos reais
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Lira Neto: “Biografar é desnudar a alma”
Biógrafo de nomes como Getúlio e Padre Cícero lança livro sobre como contar histórias de vida e afirma que é preciso evitar a simpatia e o julgamento para narrar fatos reais
O que o sanitarista Rodolfo Teófilo, o escritor José de Alencar, a cantora Maysa, o padre Cícero Romão Batista, os ex-presidentes Getúlio Vargas e Castello Branco, os sambistas da primeira metade do século 20 e os holandeses que ocuparam o Nordeste no século 17 têm em comum? Todos eles tiveram sua existência investigada e recontada por um mesmo homem, o escritor e jornalista Lira Neto, que se tornou um dos nomes mais fortes do gênero no país, seguindo os passos de autores como Fernando Moraes, de quem é amigo e discípulo, e Ruy Castro.
Em seu novo livro, “A Arte da Biografia: Como escrever histórias de vida” (Companhia das Letras, 2023), Lira reconstitui a própria história como ponto de partida para discutir o gênero. Conta que a fagulha que acendeu a chama da pesquisa histórica dentro de si foi a estranha descoberta de ossadas humanas no bairro de Jacarecanga, em Fortaleza, em 1994. O local havia sido um reduto da elite na virada dos séculos 19 e 20, mas vivia franca decadência então. Foram encontrados, sob o asfalto, 15 esqueletos em um dia. Nos seguintes, dezenas de outros. E ninguém conseguia explicar do que se tratava, chegou-se a cogitar um cemitério clandestino e que os mortos seriam presos políticos. Até que historiadores locais decifraram o mistério: uma epidemia de varíola em 1878 havia matado um quinto da população de Fortaleza. Em um único dia, 10 de dezembro daquele ano, 1.004 pessoas deram entrada no cemitério, que não tinha como dar conta daquele volume. Os mortos, então, acabaram por ser enterrados em uma vale comum ao lado de uma capela.
Nunca se biografa apenas uma pessoa, mas as muitas relações e tensões entre a trajetória dessa pessoa e o contexto no qual ela viveu, amou, venceu, sofreu
“Fiquei terrificado. Como era possível, passado pouco mais de um século de acontecimentos tão traumáticos, a cidade não guardar nenhuma memória do episódio?”, escreve em “A Arte da Biografia”. Foi essa indignação com o esquecimento que o levou à biografia como gênero, e ao seu primeiro livro, a história do sanitarista que foi um dos protagonistas do enfrantamento à varíola. “Não queria escrever uma história impessoal, um relato frio e burocrático a respeito de eventos tão perturbadores”, explica.
E nas páginas seguintes do livro, Lira ensina que esse seria o oposto da biografia, que deve ser envolvente e até literária, sem nunca ser parcial ou condescendente com o biografado. Conta sobre a escolha de seus personagens, sobre o mergulho obsessivo na pesquisa histórica e não romantiza em relação às prováveis dificuldades financeiras que um aspirante a biógrafo pode enfrentar.
A Gama, ele conta que há uma responsabilidade em se biografar que exige “cada vez maior criticidade e maior rigor no confronto com documentos, testemunhos, relatos, informações”. Ao mesmo tempo, lembra que uma história de vida não é apenas uma história de vida. “Nunca se biografa apenas uma pessoa, mas as muitas relações e tensões entre a trajetória dessa pessoa e o contexto no qual ela viveu, amou, venceu, sofreu”, diz na entrevista que você lê abaixo e na qual adianta os nomes de suas próximas empreitadas: o poeta, escritor e dramaturgo Oswald de Andrade e o músico Luiz Gonzaga, dois personagens fundamentais para “entender o Brasil”.
Bom biografado é aquele que tenha levado porrada, que jamais tenha sido campeão em tudo
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G |O que faz de um personagem um bom biografado? Por que é tão poderoso contar uma história de vida?
Lira Neto |Bom biografado é aquele que não tenha vivido uma existência em linha reta. De preferência, alguém que tenha levado porrada, que jamais tenha sido campeão em tudo, que tenha, sim, enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, como bem sugere o poema de Fernando Pessoa. “Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo?”, indagava o poeta. Biografar é desnudar a alma e, com isso, compreender as ações e omissões de um indivíduo. Ao mesmo tempo, contar histórias de vida desvela os sentidos de toda uma época, os significados de um determinado período, a substância de um tempo. Nunca se biografa apenas uma pessoa, mas as muitas relações e tensões entre a trajetória dessa pessoa e o contexto no qual ela viveu, amou, venceu, sofreu.
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G |Como é ser um biógrafo num tempo tão marcado pela disseminação das fake news?
LN |A mentira, o falseamento, a adulteração dos fatos, tudo isso é algo tão antigo quanto a própria humanidade. Mas é óbvio que, hoje, tal fenômeno assumiu escala industrial, na sua forma de elaboração e, especialmente, de alastramento. Mas trabalhar com o passado é, por princípio, investigar como se constroem e se construíram as mitologias pessoais e coletivas, como se organizaram e se organizam as armadilhas da memória e do esquecimento. Nesse aspecto, a responsabilidade do investigador – e, no caso, do biógrafo – exige cada vez maior criticidade e maior rigor no confronto com documentos, testemunhos, relatos, informações.
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G |Sua primeira biografia foi motivada por uma inconformidade sobre o esquecimento de eventos tão dramáticos quanto a morte de mil pessoas em um único dia. Essa inconformidade acompanha seu trabalho até hoje?
LN |O inconformismo é a ferramenta básica do jornalista, do historiador, do investigador de um modo geral. A luta contra o esquecimento, a capacidade de perguntar e a disposição para a dúvida são instrumentos imprescindíveis da pesquisa histórica, da escrita do passado, da investigação em torno dos usos e aviltamentos da memória.
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G |Por que resolveu abrir sua própria vida num livro sobre como escrever biografias, contando detalhes íntimos que envolvem sua vida amorosa e sua conta bancária?
LN |Achei que era importante demonstrar, já nas primeiras páginas, que nenhuma trajetória individual, inclusive a do próprio biógrafo, está determinada deste o princípio, pois uma biografia não é uma sucessão organizada, coerente e fatalista de episódios. A vida é sempre uma sucessão de acasos, imprevistos, acidentes, golpes de sorte e, claro, muitos percalços. Biografar, quis ali também deixar explícito, é buscar entender como aspectos ínfimos, comezinhos, prosaicos, impactam, influenciam e alteram o que costumamos definir, de modo ilusório, como “destino”.
O biógrafo tem um compromisso ético com o leitor, mais do que com o biografado
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G |Você vê a biografia como escrita de não ficção, e não como jornalismo literário. Mas fala da importância de captar o leitor com estilo e de como optou por ter um tom para cada biografado, além de ganchos a cada capítulo. Qual a relação então do trabalho que você faz com a literatura?
LN |Considero a biografia uma zona de fronteira entre a história, o jornalismo e a literatura. Quando falamos em fronteira, tendemos a imaginar linhas divisórias que separam, limitam, apartam territórios específicos. Prefiro entender o conceito de fronteiriço como um campo de confluência, entroncamento, intersecção entre bordas. Biografar exige o rigor metodológico da investigação histórica, a clareza da escrita jornalística, mas também os recursos narrativos próprios da literatura. Literatura entendida aqui não como ato de livre imaginação, mas de uma busca pela leitura criativa e original, pouco óbvia ou epidérmica, sobre determinada realidade. No mais, a expressão “jornalismo literário” parece querer justapor um adjetivo talvez considerado nobre, “literário”, a um substantivo supostamente pobre, “jornalismo”. Daí preferir “narrativa de não ficção”.
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G |Você afirma que não é preciso gostar do biografado, mas o que acontece quando você passa a amá-lo no meio da pesquisa, ou quando você se cansa dele?
LN |Ao longo da pesquisa e da escrita, o biógrafo irá conviver durante anos com o seu objeto de estudo. Impossível dedicar-se a tal tarefa se não houver alguma empatia envolvida no processo. Isso não significa simpatia ou mesmo condescendência, ou seja, fechar os olhos para os defeitos, desvios de conduta ou deformações de caráter do biografado. É aí que mora o perigo. Mas, sem dúvida, uma dose generosa de fascínio sobre o tema e de alteridade em relação ao personagem é imperativa.
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G |Como não se apaixonar por personagens terríveis que eram atraentes na vida privada?
LN |O biógrafo tem um compromisso ético com o leitor, mais do que com o biografado. Empatia e simpatia são termos próximos, mas não sinônimos. Por isso falo em alteridade. O desafio é tentar entender, sem maniqueísmos, sem querer justificar ou abonar, as escolhas mais infames do biografado. Daí poderíamos voltar ao “Poema em linha reta” de Fernando Pessoa: investigar todas as circunstâncias de um ato vil, “literalmente vil, no sentido mesquinho e infame da vileza”.
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G |E como não julgar os personagens? Você faz uma crítica aos jornais como fontes sempre parciais. Como se manter imparcial na biografia?
LN |Minha crítica não se restringe às fontes hemerográficas. Ela é extensiva a toda e qualquer documentação, seja ela escrita ou oral. Só mesmo a mais completa arrogância, mesclada a mais risível ingenuidade, bem típica dos historiadores positivistas do século 19, pode levar um investigador do passado a se arvorar como detentor de uma verdade absoluta sobre os episódios que relata. A escrita da história parte de vestígios, pistas, testemunhos, versões parciais da realidade. Não existe documento destituído de interesse. Basta dizer que a própria organização dos arquivos obedece a critérios subjetivos de seleção e exclusão. E a memória das testemunhas é seletiva, plástica, construída e reconstruída continuamente. A crítica às fontes é obrigação do historiador e, por extensão, do biógrafo. Por isso a importância de oferecer ao leitor versões discordantes do mesmo episódio, produzir uma narrativa polifônica, plural, compósita – aquilo que Mikhail Bakhtin chamava de “heteroglossia”.
Não se escreve uma biografia sem ser um obcecado
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G |Você escreveu dois livros que considera “biografias coletivas”. Qual a diferença desses livros para um livro de história? Há diferença no processo de pesquisa e de escrita dessas biografias coletivas e as individuais? Alguma é mais “fácil”?
LN |Não há facilidades quando se trata de escrita histórica e biográfica. Mas, sim, as biografias coletivas exigem um desafio adicional, o de estabelecer e compreender as inúmeras relações entre os diversos personagens de uma mesma trama, dentro da qual todos são protagonistas. Nisso, costumo lembrar do sentido original da palavra “ texto”, que deriva de tecido, tessitura. Construir uma biografia coletiva é tentar entender como os fios individuais, de cores diversas, aparentemente frágeis e desprovidos de significado quando vistos em separado e enrolados no próprio novelo, ganham força ao se entrelaçarem, enredarem-se, entrecruzarem-se, estabelecendo padrões, desenhos, grafismos, novos coloridos, sentidos plurais.
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G |Um biógrafo é um obsessivo? Quando sabe que é hora de abandonar a pesquisa ou quando o texto está pronto e é hora de parar? Se nenhuma vida cabe inteira em um livro, quando sabe que ele está pronto?
LN |A obsessão é uma doença da qual o biógrafo não escapa. Não se escreve uma biografia sem ser um obcecado. No processo de pesquisa e escrita, o biógrafo torna-se monotemático. Só pensa no seu biografado. Só fala dele. Vai dormir e acorda com ele na cabeça. Sonha com ele. Quando trabalho em uma biografia, todos os meus interesses confluem para isso. Só ouço músicas do período, só vejo filmes relacionados à época, só leio livros – inclusive de literatura – que digam respeito ao universo em que meu biografado se moveu. Sempre haverá um desejo de seguir na busca por um novo documento, um novo testemunho, um novo episódio. O que determina o fim da pesquisa é o ultimato do editor.
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G |Para encerrar, repito a pergunta do editor: e aí, qual é o próximo? Está pronto para ele?
LN |Estou trabalhando em dois projetos simultâneos. Duas biografias, uma de Oswald de Andrade, outra de Luiz Gonzaga. Aparentemente, personagens bem diferentes entre si. Um escritor, outro artista musical. Um sudestino, outro nordestino. Mas ambos encarnaram projetos fundamentais em torno do conceito de Brasil e da brasilidade. Talvez, ter passado quatro anos fora do país tenha me devolvido um desejo enorme de melhor compreendê-lo, decifrá-lo, tentar interpretá-lo.
- A Arte da Biografia
- Lira Neto
- Companhia das Letras
- 192 páginas
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