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SemanaMães da TV brasileira
Anna Muylaert, Manuela Dias, Fernanda D’Umbra e Martha Nowill contam a Gama quais os desafios de representar a maternidade nas telas, evitando estereótipos
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Anna Muylaert, Manuela Dias, Fernanda D’Umbra e Martha Nowill contam a Gama quais os desafios de representar a maternidade nas telas, evitando estereótipos
O que Maria do Carmo de “Senhora do Destino” (2004), Ellen Ripley de “Aliens” (1986) e Helena Pêra de “Os Incríveis” (2004) têm em comum? Além de serem personagens icônicas da TV e do cinema, as três representam algumas das muitas facetas que mães podem apresentar na ficção. Seja heróica, carinhosa, maldosa, brava, a maternidade é dos assuntos mais complexos para serem abordados em um roteiro de TV, cinema ou novela e, exatamente por isso, apresentam grandes desafios para diretores e roteiristas.
As brasileiras Anna Muylaert, 57, Manuela Dias, 44 e Martha Nowill, 40, além de roteiristas e atrizes que falam sobre maternidade em suas produções, também são mães. Fernanda D’Umbra, 50, não é mãe mas também já encarou a maternidade em suas produções. Nessa realidade, elas dizem que há uma constante busca pelo equilíbrio entre a representação de como a maternidade se apresenta em suas narrativas e a tentativa de quebrar estereótipos.
Gama perguntou a elas qual é o maior desafio de representar a maternidade nas telas, quais suas personagens maternas mais marcantes e de que maneira suas próprias vivências ajudaram na hora de criar um novo roteiro ou personagem.
Anna Muylaert
Diretora, roteirista e mãe de dois. Dirigiu as produções “Que Horas Ela Volta?” (2015), “Mãe Só Há Uma” (2016) e “Durval Discos” (2003)
“O maior desafio enquanto mãe e cineasta é colocar na tela a mãe real, a mãe com suas fraquezas, com suas contradições e assim contribuir para que a imagem da mãe seja mais humana e menos idealizada. Nos meus filmes acho que representei vários tipos de mães, desde ‘Durval Discos’ até ‘Mãe Só Há Uma’, e acredito que há ainda uma infinidade de tipos a serem retratados.
Além de mãe também sou filha, e considero essa relação a mais visceral do ser humano. Considero a mãe como a primeira educadora, aquela que passa não apenas a língua materna mas toda a cultura, e portanto qualquer acerto ou erro desta figura trará enormes consequências no futuro. Eu tento falar da importância da mãe, seja como bendição ou como maldição, seja como mãe ou como filha. A Val, do ‘Que Horas Ela Volta?’, foi com certeza a personagem que mais me marcou. Porque além de mãe, ela trazia várias outras contradições embutidas, foi a personagem mais influente que já fiz.
Eu tento falar da importância da mãe, seja como bendição ou como maldição, seja como mãe ou como filha
Na última década, acho que cada vez mais os filmes estão tentando retratar as pessoas de maneira geral, o que inclui as mães, mas não só de uma forma mais realista, e sim menos idealizada. Na figura da mãe especificamente se projeta todo tipo de dogma: a mãe perfeita, a mãe protetora. Muitas vezes se representa a mãe como um anjo e isso não é verdade, não tem como ser verdade, porque a mãe, a mulher não é apenas um ser humano, como também é um ser humano considerado de segunda classe dentro da sociedade patriarcal.
Então, muitas vezes a mãe está tentando fazer o seu melhor com o filho, mas a criança vê, por exemplo, que a mãe apanha do companheiro. E aí, como fica? Como essa mulher vai ser protetora se ela mesma não sabe se proteger? Por isso volto sempre a personagem materna, pois entender a mãe na sua grandeza e nas suas dificuldades talvez seja uma das maiores chaves para uma transformação de consciência na sociedade.”
Manuela Dias
Autora, roteirista e mãe de uma filha. Indicada a um Emmy pela minissérie “Justiça”(2016), escreveu a novela “Amor de Mãe” (2019)
“A sociedade em que vivemos, especialmente a latina, é muito machista. É a mãe quem tem que educar os filhos, quem proíbe, quem não deixa, quem briga e quem é temida. Isso acaba criando uma imagem cultural, o famoso arquétipo da mãe terrível, brava e ciumenta. Mas é importante lembrar que não devemos cair nos estereótipos e entender que a mãe brasileira, assim como a mãe de outros países, é multifacetada.
Acredito que não seja dever da arte explicar explicitamente o papel da mãe em nossa sociedade, mas podemos impactar o público sobre esse tema. Um filme ou uma novela podem sensibilizar quem assiste e mostrar que o Brasil é uma mátria, não uma pátria. É um país feito por mulheres fortes e solitárias que fazem de tudo para criarem seus filhos, apesar do abandono dos pais e do governo. São elas que cuidam da próxima geração de um país, são as mães que mantêm vivo o povo e a cultura de uma nação.
Tão geral quanto a morte, talvez só a maternidade. Não só como mãe, mas como filho e filha, todos experimentam essa relação de alguma maneira. São duas forças polarizadoras: a maternidade como uma pulsão de vida essencial e a morte como a experiência que determina toda nossa vida. São as mães que fazem a vida continuar e a vida é sobre morte, sobre nossas tentativas de driblá-la e enganá-la.
O Brasil é uma mátria, não uma pátria. É um país feito por mulheres fortes e solitárias
Tenho a sensação de que a percepção do que é uma mãe vem mudando, há uma compreensão de que o nascimento da mãe não significa a morte da mulher que você era, que quer trabalhar, viajar, dançar e namorar. Quando o pai brinca com o filho, todo mundo acha maravilhoso. Quando uma mãe perde noites de sono, ela só é uma mãe, é a obrigação dela. E quando uma mãe não faz esse tipo de coisa? Ela é desnaturada. Olha o peso dessa palavra, alguém desconectada com a própria natureza.
Aos poucos, a dramaturgia vem complexificando os prazeres e as dores de ser mãe. As mães são muito culpadas quando sentem o prazer da liberdade. A liberdade é fantástica e eu procuro explorar isso na minha dramaturgia, sem culpabilizar as mães. Tivemos tantos exemplos de mães que eram só abnegação, sacrifício. Não seguir esse caminho não é ser uma mãe desnaturada, é ser um exemplo para as próprias filhas. É sobre ser uma mulher que também é mãe, não o contrário. Ser mãe não é minha vida, mas eu abriria mão da minha vida porque sou mãe.”
Martha Nowill
Atriz, roteirista e mãe de gêmeos. Fez o papel da mãe Eliana em “Domingo” (2019), e escreveu o roteiro e interpretou uma personagem grávida na série “5X Comédia” (2021)
“Todas as personagens mães que eu fiz foram antes de eu ser mãe. Eu tinha muito medo de ser mãe, ao mesmo tempo que queria muito. O tema da maternidade ficou muito presente em diversos trabalhos que participei nos últimos anos antes da minha gravidez. E sinto que foi como uma preparação: em vez de eu usar a minha maternidade para ajudar a compor personagens, foram as personagens que me ajudaram a amadurecer para ser mãe.
Sempre procurei fazer mulheres muito reais, não romantizar a figura da mãe, porque no fim, é o inverso. Apesar de ser um trabalho sagrado, ser mãe é muito menos romântico na vida do que é na ficção. Claro que tem filmes que falam sobre a maternidade real, sobre o perrengue, mas em muitos outros, a figura da mãe é muito romantizada. E ser mãe é muito mais complexo. Inclusive, às vezes você tem raiva dos filhos, às vezes você não queria estar ali. Mães também são seres humanos. Cada trabalho é um, mas toda vez que você faz uma representação muito chapada na ficção, é um certo desserviço, as pessoas se questionam por que aquela personagem consegue ser tão perfeita, enquanto elas não conseguem.
Sempre procurei fazer mulheres muito reais. Apesar de ser um trabalho sagrado, ser mãe é muito menos romântico na vida do que é na ficção
A personagem de ‘5X Comédia’, a série da Amazon, não era uma grávida. Mas como eu queria muito o papel e engravidei no meio do processo, adaptei o roteiro. E foi difícil, porque se eu, que sou atriz, criei a personagem e queria que ela fosse para as telas, senti um certo preconceito com a imagem daquela mãe fazendo sexo virtual, imagina o resto do público. Foi aí que entendi a urgência dessa personagem, que mistura maternidade e sexualidade em uma sociedade tão cristã. Foi uma desconstrução de estereótipos da mãe: grávida, e com meia arrastão. E ela não deixa de ser uma mãe, que tem medo, ama seu filho e está fazendo aquilo para segurar a onda e pagar as contas. Essa personagem foi um contraponto a uma outra, que foi muito marcante para mim: a Eliana, de ‘Domingo’, quando eu trabalhei com uma barriga falsa durante três semanas. Quando eu colocava aquela barriga, me sentia totalmente grávida, mesmo que não estivesse de fato.
A representação da figura materna mudou muito. A própria personagem que eu faço em ‘Todas as Mulheres do Mundo’, a série da Globo: ela engravida e resolve ser mãe independentemente de estar casada ou não, e isso é muito contemporâneo. E não é como se essa questão fosse um grande tema na vida da personagem. A série não é sobre isso, e o tema é tratado com muita naturalidade. Há dez ou quinze anos, essa personagem até existiria, mas ela seria muito mais problemática. Agora é tudo mais natural, e aquela questão não é o que a define.”
Fernanda D’Umbra
Atriz, diretora, roteirista e vocalista da banda Fábrica de Animais, interpretou duas mães em “Mothern” (2006) e “Assédio” (2018)
“A instituição mãe não existe, cada mãe é uma mãe diferente. Quando monto as características psíquicas e físicas de uma personagem, sempre me baseio no texto. É um trabalho de composição, você pega informações da personagem e recria isso no seu corpo. Mas da mesma forma que você não precisa ter matado alguém para representar uma assassina, você não precisa ter sido mãe para representar o processo de maternidade.
A verdade é que não ser mãe na vida real me dá certa leveza na hora da composição, algo que as outras atrizes de “Mothern” [série exibida em 2007 pela Gnt] — que eram mães na vida real –, não tinham. Muita gente dizia que eu era a mãe mais realista dali, mesmo que fosse a única que não tivesse experienciado a maternidade. A ficção é maravilhosa por isso, pois ela não é uma mentira. É uma verdade ficcionada que deve ser vivida com sinceridade.
A desconstrução do estereótipo ligado à maternidade me interessa. Cada vez mais a mãe brasileira está sendo interpretada como uma mãe que cria os filhos para o mundo
A desconstrução desse estereótipo ligado à maternidade me interessa muito, nos acostumamos a associar à figura da mãe com algumas coisas que eu não acho tão legal. Eu, que não sou mãe, quando faço algo bom para alguém, costumo ouvir que “agi como mãe”. Por quê quando estou fazendo algo bom, estou sendo como uma mãe? A maternidade nem sempre é benevolente na vida real, muitas vezes é algo que prejudica e machuca as próprias mães. É uma vida de luta e de sacrifício, não algo romantizado. É como se as pessoas entendessem que a maternidade elevasse a mulher a um estado que, sem ser mãe, ela jamais alcançaria.
Acredito que, cada vez mais, a mãe brasileira está sendo interpretada como uma mãe que cria os filhos para o mundo. Essa mãe cujo os filhos ficam ao redor dela pela vida toda, isso não me interessa. Gosto das mães que criam filhos para serem independentes, sem essa ideia de que todos os filhos tem que ficar perto o tempo todo. Estamos falando de uma mãe lutadora, muitas vezes solitária que cria suas crianças sem um homem. Apesar de tudo isso, a maternidade é uma relação única. Uma forma de amor inquebrável que se estabelece entre duas pessoas.”
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