Uma família, várias religiões
Cada vez mais comum, a convivência entre diferentes religiões na família pode gerar casos de intolerância mas também ajudar a ampliar os horizontes
Há cerca de um ano, o professor Raul Nogueira, 26, entrou para a umbanda. Vindo de uma família em sua grande maioria adventista, ele havia sido batizado na religião dos pais aos oito anos de idade. “Era só o que eu entendia como religião”, lembra. Porém, já na adolescência, decidiu deixar de segui-la por conflitos que descobriu entre os preceitos religiosos e sua sexualidade.
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Faz pouco tempo que Nogueira entrou pela primeira vez em contato com a umbanda através de uma colega de trabalho, que o convidou para conhecer um terreiro. “Em duas ou três vezes que eu fui, fiquei com vontade de entrar para a casa, que me acolheu como uma grande família”, conta. Durante esse ano em que participou ativamente da umbanda, ele considera que a experiência tem sido transformadora — e tem batido muito mais com seus ideais e estilo de vida.
De acordo com Nogueira, no entanto, o anúncio da mudança também teve grande impacto para sua família, apesar de já não seguir a mesma religião que eles há muitos anos. “Eu acho que, dentro do coração deles, imaginaram que eu ia voltar em algum momento ou que eu ainda seguia o que a igreja [adventista] dizia”, reflete.
“Depois que cruzei essa linha de entrar para a umbanda, o processo tem sido muito difícil”, acrescenta o professor da rede pública de São Paulo. “Eu já estou trabalhando na casa de umbanda, sou médium de incorporação, mas usar uma guia no pescoço para eles é um grande tabu, acender vela é um grande tabu, se fazem uma oração e eu não digo amém, tem um tom de afronta.”
O Brasil é o país no mundo em que mais se acredita em Deus, com a fé em um poder superior alcançando 89% da população, segundo a pesquisa Global Religion 2023, do Instituto Ipsos. Portanto, em meio às diferentes formações familiares que existem hoje e à diversidade de religiões, acaba sendo natural que os membros de uma mesma família sigam crenças e religiões também diversas.
“A gente tem uma mãe do candomblé, um irmão que é católico, outro irmão que é evangélico”, escreveu em sua rede social nesta terça-feira (21), Dia do Combate à Intolerância Religiosa, a ministra do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC), Macaé Evaristo. “E a gente preza pela nossa convivência, que cada um seja respeitado na sua religiosidade. Seguimos firmes na luta contra a intolerância religiosa”.
Racismo religioso
Embora essa variedade já exista há algum tempo, foi só mais recentemente que se tornou um motivo maior de conflitos na esfera familiar, na visão do professor de história da UFRJ Ivanir dos Santos, pesquisador de direitos humanos e intolerância religiosa. “Isso se dá muito no campo dos novos convertidos, que começam a criar essas disputas face às diferenças”, aponta. Segundo Santos, hoje a família é o terceiro espaço em que questões de intolerância e conflitos relacionados à religião são mais comuns no Brasil.
Vale lembrar que as religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé, ainda hoje são as que mais sofrem com casos de intolerância, segundo dados divulgados pelo MDHC. Das 2,4 mil denúncias sobre o tema feitas ao Disque Direitos Humanos em 2024 — um salto de 67% em relação ao ano anterior —, a maior parte dos casos com vítimas identificadas envolvia adeptos de religiões afro-brasileiras. Em segundo lugar, com menos de um terço desse número, vêm as denominações evangélicas.
Uma das principais consequências quando não há um respeito à religiosidade alheia no seio familiar é que um ou mais membros acabam sendo afastados desse convívio, afirma Santos. “Alguém é alijado, e isso é muito duro.” Além disso, para ele, esses conflitos podem se iniciar na forma como as próprias igrejas se organizam e orientam os fiéis.
“Pelo que eu observo, para candomblecistas, umbandistas e até católicos, não tem problema nenhum entrar numa igreja evangélica. Mas tem pessoas evangélicas que não entram em igreja católica”, conta o especialista em intolerância religiosa. “Então você estabelece uma divisão de mundo entre aqueles que são escolhidos e os não escolhidos.”
Mães, pais e filhos
E questões como a falta de aceitação ou até o racismo religioso podem ter implicações graves para a família, como os casos crescentes de mães de religiões de matriz africana cuja conduta tem sido contestada e até perdem a guarda dos filhos por exercer sua crença.
“Durante um conflito de separação, acontece muito de o pai denunciar essa mãe de religião de matriz africana por maus-tratos, como vítimas de denunciação caluniosa”, explica a advogada Patrícia Zapponi, ex-presidente da Comissão de Liberdade Religiosa da OAB do Distrito Federal.
Durante um conflito de separação, acontece muito de o pai denunciar essa mãe de religião de matriz africana por maus-tratos, como vítimas de denunciação caluniosa
Em religiões como o candomblé, há rituais de iniciação importantes para adentrar a fé, como raspar o cabelo, se alimentar com uma dieta específica e ficar em reclusão ao longo de 21 dias. “Alguns pais e avós denunciam dizendo que o ato de raspar o cabelo, por exemplo, é uma violência”, revela Zapponi.
Por conta de uma grande maioria cristã em instâncias como o Judiciário, a advogada acrescenta que, embora em alguns casos a decisão seja revertida, é comum que as mães acabem perdendo a guarda por conta do preconceito e da falta de conhecimento sobre o tema. Ultimamente, inclusive, ela tem atendido mais casos do tipo. Só em 2024, foram oito — dois deles com denúncias feitas pela avó.
A lei aponta que a criança deve ter total liberdade de expressar a religião que quiser, podendo optar pela fé de qualquer um dos pais ou ainda uma outra crença, lembra ainda Zapponi. “Existe muita fantasia permeando as religiões de matriz africana, e isso acaba entrando no inconsciente coletivo.”
Existe muita fantasia permeando as religiões de matriz africana, e isso acaba entrando no inconsciente coletivo
“A questão religiosa serve como base até para disputas que não têm a ver com religião, mas com ressentimento, uma tentativa de punir o outro”, complementa Santos. “A dor que isso tem gerado em mães ou pais é enorme, sendo que o conflito deveria ser resolvido com tranquilidade. Deveria ser tão comum levar na igreja quanto no candomblé. E a criança pode escolher depois o que vai querer.”
Outras religiosidades
Embora os dados sobre intolerância religiosa no Brasil, ainda poucos e bastante esparsos, apontem que as religiões de matriz africana são as que mais sofrem preconceito, também há casos envolvendo inúmeras outras religiosidades, como as evangélicas, além de registros de eventos antissemitas e islamofóbicos.
De acordo com o Observatório Judaico dos Direitos Humanos no Brasil, foram registradas 384 ocorrências de antissemitismo no país entre 2019 e 2022. E até mesmo não seguir uma religião pode ser sinônimo de preconceito e intolerância. Apesar da falta de dados atualizados sobre o tema, uma pesquisa feita em 2008 pelo Instituto Rosa Luxemburgo e a Fundação Perseu Abramo apontou que 42% dos brasileiros sentiam aversão a quem não acreditava em Deus.
Para algumas famílias, no entanto, o normal é a diferença. Convivendo com a diversidade de crenças desde cedo, a jornalista Micheline Alves, 50, agnóstica, tem pais católicos, uma irmã espírita e a outra umbandista. “Todo mundo em casa sempre foi muito livre para se conectar com o que fizesse sentido”, conta.
Quando adulta, decidiu também conceder autonomia para as filhas: “Nunca ofereci essa busca pela conexão espiritual porque não faz parte dos meus hábitos de vida. Se sentirem necessidade, elas vão encontrar por conta própria”. E foi o que aconteceu. Na adolescência, Luiza, sua filha mais velha, hoje com 28, fez amigos judeus na escola e passou a frequentar um grupo de jovens na Congregação Israelita Paulista (CIP).
“Me disseram que ela virou quase um case dentro da CIP. ‘Sua filha é a única não judia num grupo de dezenas de jovens e está virando uma liderança’. Eles se reuniam todo sábado, e ela gostava de estar lá”, lembra Alves.
Quando estava perto de fazer 18 anos, porém, surgiu um impasse: o grupo de amigos de Luiza iria passar dez meses em Israel. Se quisesse participar da viagem tradicional de jovens judeus, ela teria que se converter. E foi o que fez. O envolvimento foi tanto que, depois da temporada fora, começou a dar aulas de hebraico e, posteriormente, se mudou para Israel, onde vive há seis anos. “De nenhuma maneira isso interferiu na nossa dinâmica”, conta a mãe.
Dar tempo ao tempo
Mesmo que fosse o caso, como acontece em outros lares, também não haveria motivo para preocupação, afirma Júlio César Tavares Dias, doutor em ciência da religião e professor da Secretaria de Educação de Pernambuco. “Quando alguém rompe com a tradição religiosa da família, é normal que se afaste porque precisa se adaptar a uma nova realidade.”
São novos ritos, novos códigos de regras e até de vestimentas, inúmeras mudanças internas e externas que podem não ser compreendidas imediatamente em casa. “P. assado esse momento inicial, a pessoa tende a se acertar com os outros ou, pelo menos, tolerar”, esclarece Dias.
Quando alguém rompe com a tradição religiosa da família, é normal que se afaste porque precisa se adaptar a uma nova realidade
Como rede de apoio, a família precisa esperar o tempo de autodescoberta de cada um. Se há forte resistência ou até intolerância, o professor explica que a pressão pode ter efeito contrário, levando a um sentimento de mais devoção à nova religião, além de um afastamento da vida anterior.
O que pode facilitar a compreensão sobre uma fé diferente é estudar sua história e a relação do familiar com ela. “Se eu pesquiso a história, posso perceber que minha religião não é tão perfeita quanto eu achava. E aí, vou estar aberto a aprender com o outro”, afirma Dias.
Ele defende que todas as religiões são de algum modo sincréticas, ou seja, passam por um processo contínuo de mudança a partir de aproximação com outros sistemas de crença. Na história brasileira, esse contato aconteceu entre o catolicismo e as religiões de matriz africana durante as missões de catequização no século 16.
Outro exemplo, pesquisado por Dias, é entre a Igreja Universal do Reino de Deus e práticas afro-religiosas: “Boa parte dos pastores passaram pela umbanda e foram usando elementos dessa religião na constituição de uma nova.”
Conexões
Assim como no caso de Alves, o pesquisador de intolerância Ivanir dos Santos reforça que há muitas famílias em que o convívio entre religiões acontece de forma bastante pacífica. Ele, que é babalaô — sacerdote do candomblé dedicado ao culto de Ifá —, conta que convive muito bem com uma parte de sua família da Bahia, que integra a igreja evangélica batista.
Durante uma festa de aniversário em que Santos era o único candomblecista presente, ele lembra que chegou a se criar um certo mal-estar em relação à sua religião. Mas um primo, que é pastor e até tem ligação com a Frente Parlamentar Evangélica, interrompeu imediatamente a discussão: “Religião não divide família.”
“Às vezes até percebo um viés meio preconceituoso, mas isso não vira conflito nem cria uma relação de exclusão”, continua Santos. “Essa não é a realidade de todas as famílias, mas a gente trabalha justamente para construir uma convivência de respeito.”
O professor Raul Nogueira, hoje praticante de umbanda, afirma que a família ainda não chegou nesse ideal, mas lembra que há pontos positivos para destacar nessa relação. “Meu pai olha com bastante surpresa pra isso, mas é muito compreensivo por sentir que eu estou feliz. Ele me leva de carro ao terreiro, se eu precisar”, conta Nogueira.
“Minha mãe até pesquisou para entender melhor. Ela ainda tem aquelas convicções de achar que o espírito é um demônio, mas entende que estou feliz e aceita conversar sobre”, diz o professor. Por outro lado, o mesmo não acontece em relação a outros familiares, que ainda hoje cortam qualquer tipo de diálogo sobre o tema.
E nem toda família precisa ser formada por laços de sangue. Dentro de comunidades religiosas, muita gente forma vínculos até mais fortes que o parentesco genético. “Hoje nós temos mais tolerância na convivência entre evangélicos e católicos, mas já houve um movimento conflituoso. As pessoas que saíram da igreja católica para as evangélicas sentiam uma rejeição da família, o que abriu espaço para o sentimento de que a igreja era uma nova família”, afirma Dias.
Na igreja, no terreiro ou nos templos, esses laços podem se fortalecer por meio do apoio dos membros ou mesmo em atividades solidárias, como a entrega de uma cesta básica ou a visita a um hospital. De acordo com o especialista, a chave para a tolerância e, mais do que isso, o respeito entre religiões parece estar no interesse e curiosidade pelo outro.
Além de perguntar como funciona aquela crença, o professor aconselha, por exemplo, a busca por pontos em comum. “Nós podemos ser muitos diferentes, mas todos somos seres humanos. Todos sentimos raiva, dor, amor. Precisamos reconhecer nas diversas tradições, até na ateia, o que cada cultura pode trazer para o enriquecimento da experiência humana. A partir daí, nós nos sentimos mais próximos de qualquer pessoa.”
É algo semelhante que Nogueira espera que aconteça no futuro. “Eu assumi minha sexualidade na adolescência e levou bastante tempo para minha família assimilar. Hoje eles tratam com muita normalidade e acolhem meu marido, algo que eu não esperava”, conta o professor. “Tenho a esperança de que, futuramente, eles entendam esse processo, porque eu vou tentando normalizar, mostrando que na minha religião também tem tal crença, por exemplo.”
Colaborou Sarah Kelly
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