Psicanalista Guilherme Facci fala sobre ciúmes — Gama Revista
É ciúme?
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Conversas

Guilherme Facci, psicanalista: 'O ciumento se aproxima de um paranoico por buscar a verdade'

Criador do podcast ‘A Loucura Nossa de Cada Dia’ afirma que sentimento é visto como prova de amor na cultura ocidental e pode até sustentar desejo sexual, mas vira doença quando é delirante

Isabelle Moreira Lima 09 de Outubro de 2022
Mariana Simonetti

Guilherme Facci, psicanalista: ‘O ciumento se aproxima de um paranoico por buscar a verdade’

Criador do podcast ‘A Loucura Nossa de Cada Dia’ afirma que sentimento é visto como prova de amor na cultura ocidental e pode até sustentar desejo sexual, mas vira doença quando é delirante

Isabelle Moreira Lima 09 de Outubro de 2022

“Ciúmes, Sinal de Amor” já dizia o título da clássica comédia musical de 1949 estrelada por Fred Astaire e Ginger Rogers. Mas, ciúme, sinal de algo pior, alerta o psicanalista Guilherme Facci, criador do podcast “A Loucura Nossa de Cada Dia”.

Para Facci, que é cofundador do grupo de pesquisas e estudos Estilo & Formalização – Psicanálise e Lógica, a ideia de que o ciúmes é algo “normal” do amor faz parte da cultural ocidental e do ideal de amor romântico. Ele lembra que nem sempre esse sentimento foi visto assim e que uma mudança na cultura podem fazer com que ele deixe de ser banal.

Ao lado da angústia, o psicanalista vê o ciúme como um dos sentimentos mais humanos que existem, comum desde a infância, e ressalta que é considerado hoje como saudável se ocorre em certa medida. Mas se dá a sensação, a quem sente, de que se perde uma parte de si mesmo, se ele se torna persistente, se é baseado em um “imaginário inflacionado”, ou fundado em uma “verdade absoluta”, pode ser delirante e virar uma patologia próxima à paranoia.

“A certeza absoluta é um grande divisor de águas para o diagnóstico de uma psicose. O problema é que isso pode acontecer na neurose também. O ciumento se aproxima muito de um paranoico, porque ele quer buscar a verdade. Existe uma verdade e ele chegará a ela a qualquer custo”, diz.

Em entrevista a Gama, Guilherme Facci, que já abordou o tema ciúmes neste episódio de seu podcast e em conversa com a escritora Tati Bernardi no “Meu Inconsciente Coletivo”, sugere textos que elucidam sobre o sentimento e fala de sua proximidade com a literatura. A obsessão de Bentinho pelo olhar de Capitu, segundo ele, pode explicar muita coisa. “O ciumento, assim como o paranoico, olha pro olho do parceiro e interpreta esse olhar. Quando você faz isso, você está absolutamente no campodo imaginário; não tem simbólico, não tem intervenção da fala, o outro não está te dizendo nada. Você está interpretando o olhar e aí é um problema”, afirma, na entrevista que você lê a seguir.

O ciúme vira problema quando o ciumento assume uma posição de certeza absoluta em relação ao que está acontecendo

  • G |Tem gente que encara ciúme como sinal de amor. Faz sentido isso?

    Guilherme Facci |

    Infelizmente sim, no discurso social vigente. Na contracultura, por exemplo, não era assim. No final da década de 50, nos 60 ou 70, o ciúme era um sentimento menor, era uma coisa que as pessoas não entendiam muito. Mas, hoje, ciúme de alguma maneira é prova de amor, o que pode ser um problema.

  • G |O que explica e o que significa o ciúme?

    GF |

    Gosto de recomendar três textos. “Otelo”, de Shakespeare, e “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, são dois textos brilhantes sobre o ciúme e seu mecanismo, com descrições precisas. Podemos ir para Freud, com “Alguns Mecanismos Neuróticos no Ciúme, na Paranoia e na Homossexualidade”, que aproxima o ciúme da paranoia – o ciúmes é de alguma maneira paranoico. Freud ainda fazia uma distinção: havia o ciúme normal, comum, corriqueiro; o projetivo, que ainda estaria dentro da normalidade; e o patológico, que seria o delirante. Hoje em dia eu não faço mais essa divisão, acredito que o delirante pode acontecer na neurose, não apenas na psicose.

  • G |Quais seriam as diferenças? Quando é que ele deixa de ser normal e passa a ser delirante?

    GF |

    No normal, tem alguém olhando para meu par, aquilo me incomoda um pouco. Tem algum apego ao objeto amoroso, um desconforto, mas que passa rápido, é algo que não se sustenta muito, é uma bobagem. Começa a se tornar um problema quando assume-se uma posição de certeza absoluta em relação ao que está acontecendo. O imaginário muito inflacionado nos dá aquela posição de certeza absoluta. “Eu não tenho dúvida de que tem algo acontecendo do qual eu não faço parte. Existe uma armação: ou a minha mulher/o meu marido está me traindo, e eu tenho certeza absoluta.” A certeza absoluta é um grande divisor de águas para um diagnóstico de uma psicose. O problema é que isso pode acontecer na neurose também. O ciumento se aproxima muito de um paranoico, porque ele quer buscar a verdade. Existe uma verdade e eu chegarei a ela a qualquer custo. Mas, para a psicanálise, não existe a verdade absoluta. O problema já começa por aí: acreditamos que é possível encontrar o nosso objeto amoroso que vai nos completar. E é o primeiro equívoco. O segundo equívoco é que a gente vai poder apreender esse objeto, tê-lo. O discurso paranoico, nesse sentido, é muito próximo do discurso religioso, onde vamos encontrar um objeto Deus que nos completa. A posição de certeza, a paranóia e esse delírio sustentado coletivamente é primo das religiões, não importa qual ela seja.

  • G |Existe um ciúme saudável?

    GF |

    Existe porque ele é sustentado por um discurso cultural no Ocidente que o confunde com uma prova de amor. Já não foi assim: o ciúme era algo mesquinho e pequeno em algumas épocas. Dentro da contracultura americana, do amor livre, essa posse não estava em questão. Mas em outras épocas já esteve muito presente. Anteriormente a isso, se nos referimos ao texto de “Otelo”, no período mais romântico – e que ainda está presente hoje –, a ideia é que 1 + 1 = 1. É um discurso de fusão absoluta, de encontro de almas, de completude do objeto. Encontrei o objeto que me completa e acredito nisso piamente, fazendo com que qualquer ameaça de perda se torne uma reação de ciúme patológico. Chamamos de ciúme patológico porque, se eu estou perdendo aquele objeto, estou perdendo uma grande parte de mim mesmo – o que é um equívoco.

É muito comum que o ciumento, para sustentar o desejo sexual, precise de um terceiro elemento na relação

  • G |E quem sente esse ciúme tem como cuidar para sofrer menos, organizar melhor esse sentimento? Dá pra chamar de sentimento?

    GF |

    Dá para chamar o ciúme de um afeto; é um sentimento, assim como a angústia é também. Todo mundo já sentiu ciúmes de alguma maneira. Ou do irmão pequeno ou da irmã, ou do pai e da mãe; é possível sentir ciúme de amigos e do par amoroso. Há várias maneiras de lidar com isso. O método psicanalítico pode ajudar bastante. No final de um trabalho de análise, podemos nos dar conta de uma certa falta que é estrutural. “Eu sei que eu não vou encontrar o objeto que me completa porque esse objeto não existe.” Ao mesmo tempo, saímos com a possibilidade de nos enganar um pouquinho. Não é exatamente o objeto que vai completar minha vida, mas tem coisas aqui que me interessam. Eu vou fazer uso desse objeto assim como ele vai fazer uso de mim como objeto também: nós vamos nos objetificar um ao outro, principalmente na relação sexual, ou não há relação sexual possível. O amor está suspenso na hora do ato, fazemos sexo com o nosso próprio inconsciente. Tomamos o corpo do outro emprestado e transamos com nosso próprio inconsciente, com a nossa própria fantasia. Essa é a troca, não tem um encontro tão absoluto quanto imaginamos que exista. Ter ideia disso já é um grande avanço em relação ao ciúme, porque deixamos de achar que é possível ter o outro como um objeto que nos satisfaz. Um processo analítico levado até o final produz um ateu, produz certo desapego e evita colocar algum objeto nesse lugar de salvação.

  • G |Qual a relação entre ciúmes e desejo, um precisa do outro?

    GF |

    Depende da fantasia de cada um, mas em alguns casos precisa. É muito comum que o ciumento, para sustentar o desejo sexual, precise de um terceiro elemento na relação – mesmo que o terceiro seja imaginário. A ameaça da perda, a mulher com outro, não é incomum. Isso pode sustentar o desejo sexual. Para outros não, ter uma terceira pessoa é a morte do desejo sexual. Na psicanálise, escutamos a fantasia como se fosse a janela pela qual cada um enxerga o mundo.

  • G |E a base homossexual do ciúme, como era descrito por Freud, o que significa exatamente?

    GF |

    Freud começou a observar nos casos de perseguição paranoica que o perseguidor era sempre do mesmo sexo. E começou a se aproximar de uma homossexualidade mal elaborada, mal resolvida, na paranoia. Essa é a elaboração freudiana daquela época. Eu tenho uma visão um pouco diferente, vou dar um exemplo: numa festa, o ciumento, assim como o paranoico, olha pro olho do parceiro e interpreta esse olhar. Quando você faz isso, você está absolutamente no campo imaginário; não tem simbólico, não tem intervenção da fala, o outro não está te dizendo nada. Você está interpretando o olhar e aí é um problema. Então eu acho que a minha mulher está olhando para um homem na festa, um homem maravilhoso, de jaqueta preta de couro, bota, alto, moreno. Eu falo: “Você está olhando para aquele cara”. Eu descrevo ele como ele está vestido. Mas quem está achando esse homem bonito? É o meu olhar que está dirigido a ele ou o da minha mulher? Você percebe como tem uma questão, uma base, uma homossexualidade mal resolvida de alguma maneira? É uma leitura do texto freudiano hoje.

  • G |Dá para a gente levar isso a sério em toda a situação de ciúme ou não?

    GF |

    Não. Ele pode estar olhando de fato, agora a questão é: eu acredito que eu tenho um objeto que é meu. O problema é essa crença, porque eu posso perder esse objeto a qualquer momento, como é que eu vou fazer? Esse problema se desdobra para tudo: para o discurso de ódio, que é de certeza, de crença absoluta. O discurso das religiões passa por aí, o da paranóia, do ciúme, da paixão, é tudo muito próximo.

Todo mundo já sentiu isso em alguma medida. É por isso que rende tanto na literatura muito antes do cinema existir

  • G |Indo para a literatura, como você falou no começo, sempre foi tema importante, e em outras formas de arte, como o cinema. Por que o ciúme rende tanto?

    GF |

    Porque ele é profundamente humano, assim como a angústia, talvez o sentimento mais humano que existe. Todo mundo já sentiu ciúme em alguma medida. É por isso que rende tanto na literatura muito antes do cinema existir isso já estava sendo escrito. E continua na comédia, na tragédia. Otelo, o olhar da Capitu… Não era essa a interpretação do Bentinho? É uma interpretação impossível o olhar do outro, vai desencadear o pior. O não dito é uma operação profundamente neurótica também.

  • G |Você falou que o ciúme já na contracultura não era um sentimento tão problemático. Hoje, temos visto a não monogamia como tendência. Estamos ficando menos ciumentos?

    GF |

    Eu espero que sim. A não monogamia, o discurso não monogâmico, o poliamor talvez caminhem por aí, mas é cedo para comemorar porque existe ciúme nas relações não monogâmicas também. Ela não existe sem um contrato, assim como o poliamor também não, afinal existe a “polécula”, que são as pessoas que se relacionam dentro daquela organização.

  • G |Falamos bastante sobre quem sente o ciúme. Mas e a vítima do ciúme do outro, o que ela pode fazer numa relação em que o ciúme existe?

    GF |

    Sair. É relativo, há relações que funcionam com um ciumento ou uma ciumenta e o outro que adora esse pensamento obsessivo, esse controle, se sente amado. Para outras pessoas, esse controle vai ser insuportável. O ciumento fica com medo de perder, começa com um pensamento obsessivo em relação ao outro, sufoca o outro, e aquilo que ele mais temia é o que vai acontecer, porque ele vai perder. O apego ao objeto é tão grande e o medo de perder é tão grande que ele dá existência exatamente a isso.