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ConversasSaudades do que virá
Com 81 anos recém-completados, em pleno confinamento, Antonio Pitanga segue ativo e entusiasmado. E, apesar dos dias sombrios que correm, com esperança no futuro em que ele matará a saudade do que ainda não viveu
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SemanaSaudades do que virá
Com 81 anos recém-completados, em pleno confinamento, Antonio Pitanga segue ativo e entusiasmado. E, apesar dos dias sombrios que correm, com esperança no futuro em que ele matará a saudade do que ainda não viveu
Antonio Pitanga acaba de completar 81 anos. Destes, são 60 desde a primeira vez em que apareceu nas telas, em “Bahia de Todos os Santos” (1960), de Trigueirinho Neto. Tão marcante foi a estreia que Antonio trocaria o Sampaio da família para o nome de seu personagem, Pitanga. Dois anos depois, ele se tornaria o primeiro ator protagonista negro do cinema brasileiro como Firmino, no igualmente marcante “Barravento”, de Glauber Rocha. E, a bordo da nave do Cinema Novo, o baiano se tornou figura-chave para a cultura brasileira nos anos que se seguiram.
Viveu intensamente – ou, dizendo melhor, vive intensamente. Pitanga segue entusiasmado com o trabalho, de olho no futuro, no que ainda não viveu. Na rotina de confinamento (quebrado pelas caminhadas diárias no Aterro do Flamengo), continua os estudos sobre a África árabe, para iniciar as filmagens – adiadas pela pandemia – de “Malês”, longa sobre o levante de escravizados muçulmanos na Salvador de 1835. Além disso, dá uma mão para a mulher, a deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), no projeto de auxílio emergencial para a cultura.
Numa vida de grandes encontros, Pitanga sente falta mesmo, nesse período, é do abraço, de olhar no olho. Avesso à nostalgia, a saudade que aperta em relação ao passado é dos amigos que se foram. “Nós vivemos momentos tão bonitos, mas não significa que, se não os tenho mais, deixo de viver. Não, foi vivido e bem vivido. Eu posso ter saudade daquilo que ainda não tive, que eu estou planejando, essa é a mais nova saudade que terei”, diz.
Na conversa de 40 minutos pelo Zoom, Pitanga fala com otimismo desse futuro a ser construído – apesar do descaso com os artistas e com a cultura, da violência persistente do racismo, da barbárie e do ódio que nos cerca. “Se eu tivesse que morrer amanhã, eu diria: ‘Segura aí, eu quero ver com os meus olhos que a terra há de comer uma democracia racial que não seja um mito, que as pessoas se amem na sua plenitude’.”
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G |Nós estamos em um momento de distanciamento social, uma vida muito diferente da que estamos acostumados. Como tem sido esse período todo para você?
Antonio Pitanga |Estou administrando razoavelmente bem. Tive de interromper a temporada da peça que estava fazendo com meu filho, o Rocco Pitanga – “Embarque Imediato”, do Aldri Anunciação. Estávamos no Sesc em São Paulo, e íamos fazer uma boa temporada em outras praças. Já tínhamos estreado aqui no Rio de Janeiro quando veio a pandemia, e fomos nos organizando para entender esse raro momento de estar consigo mesmo, cuidado de você e das pessoas próximas. Estou mergulhado em um projeto que já era para estar em pré-produção, “Os Malês”, longa-metragem que estou batalhando há uns dez anos e agora está prestes a sair, com produção do Flavio Tambellini e roteiro da Manuela Dias. Também dou uma assessoria para minha mulher, que é deputada federal, Benedita da Silva, autora do projeto auxílio emergencial para a cultura, a relatoria é da Jandira Feghali. Já que não ela pode receber ninguém, nenhuma secretária do gabinete, eu fico assessorando, e nós vamos consertando o avião em pleno voo. Não lidamos bem com essas ferramentas virtuais, e agora temos de lidar, porque a Benedita também é grupo de risco, tem mais de 70 anos. Então a gente faz aqui uma dobradinha boa, ela na política, eu na cultura e vice-versa.
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G |E a rotina diária?
AP |Saio para dar minha caminhada todas as manhãs, sempre fiz isso, uma média de duas horas, às seis horas da manhã. Moro num lugar privilegiado, o Aterro do Flamengo, que tem obra do Burle Marx. Faço meu exercício, minhas leituras, debruçado no Malês, lendo o Alcorão, tentando entender o universo árabe africano, entender esse levante que foi o mais importante do Brasil, em 1835. Essa é a maneira de não ficar deitado na rede, como diz o Zeca Pagodinho, botando o burro na sombra. Senão você enlouquece. E tem sido muito confortável com os amigos ligando, participando de lives, outro universo com o qual a gente não tinha a menor intimidade.
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G |Na live que a Teresa Cristina fez para comemorar seus 81 anos, o Chico Buarque falou que estava com saudade do futebol de vocês.
AP |O futebol é uma coisa religiosa. Há mais de 40 anos que a gente joga junto três vezes por semana, segunda, quinta e sábado. O futebol é maravilhoso. Dá saudade de ir e vir. Não pode ver pessoas, não pode abraçar. Eu vou caminhar na praia e volto sem falar com ninguém. Porque não pode pisar na areia, não pode ir pro mar. Essa saudade eu tenho. De ir a restaurante, beber aquele vinho. Meu aniversário aconteceu só aqui. O aniversário da minha outra neta, filha da Camila, eu vi pelo WhatsApp. Difícil pra gente que é bem brasileiro, gosta do aperto, de abraçar, olho no olho.
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G |O abraço faz falta, né?
AP |Faz muita falta. Eu gosto do olho no olho. Ontem mesmo o Ziraldo me ligou, morrendo de saudades. Mas não dá pra encontrar, como faz? Então vamos matar a saudade batendo papo e rindo. O Zeca Pagodinho é outra pessoa que eu vejo sempre, eu tenho saudade de ir lá no quintal do Zeca, tomar uma cerveja, conversar – e olha que eu não sou de beber, só socialmente. Com o Martinho da Vila também, o bate papo tem de ter uma cerveja.
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G |Tem muita conversa sua assim, olho no olho, com os amigos no filme “Pitanga”, do Beto Brant e da sua filha, Camila Pitanga. Em uma entrevista na época de lançamento, você falava do prazer de “degustar momentos vividos”. Que momentos voltam de vez em quando?
AP |Eu não sou nostálgico. Eu gosto de ter vivido o que vivi e trazer comigo o que aprendi. Hoje, quando falo com as minhas netas, com dois filhos e com os jovens, digo: “estou vivendo a década de vocês, estou mergulhando nesta década, porque nas minhas décadas eu vivi e vivi bem”. A saudade é com os que se foram. Mãe Menininha do Gantois, Aldir Blanc, Elis Regina… Nós vivemos momentos tão bonitos, mas não significa que, se não os tenho mais, deixo de viver. Não, foi vivido e bem vivido. Eu posso ter saudade daquilo que ainda não tive, que eu estou planejando, essa é a mais nova saudade que eu terei. Eu vivi aqueles momentos, que maravilha, eu sou o resultado dessa caminhada de tantos amigos, tantas amigas, tantos encontros, como dizia o Vinicius de Moraes, e tantos desencontros.
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G |É uma saudade que não é imobilista, ao contrário da nostalgia.
AP |Exatamente. Eu tive um encontro, um momento da minha vida, na Bahia, com a formação do Cinema Novo, com o Glauber Rocha, com o Roberto Pires… Teve o próprio “O Pagador de Promessas”, que nos deu a Palma de Ouro em Cannes. São realizações que marcaram, e muitos desses que estavam comigo naquele front já partiram. Então, para ter essa saudade, eu tenho que trazê-los de volta, e isso é impossível; e o meu tempo de vida não morreu, está vivo, dentro de mim. Eu podia dizer: “eu tenho saudade daquele vento do outono que batia naquela árvore”. Eu estava lá, naquele vento das cinco da tarde, e as famílias botavam a cadeira na calçada, “boa tarde, boa noite, bença” Mas são momentos vividos, que eu vi, materializei. Vi os Filhos de Gandhy passaram, eu tinha 10 anos, vi o trio elétrico começar, vi as festas de São João, Samba de Roda nascendo, Cinema Novo, a formação de uma cultura baiana, brasileira, se afirmando numa época em que o artista era marginalizado.
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G |E até hoje é marginalizado.
AP |Até hoje artista não é reconhecido como profissão. Essa lei que a Benedita fez com a relatoria da Jandira é para isso. O auxílio emergencial do governo é para o trabalhador, e no entanto é preciso fazer uma lei para os artistas, que são mais de cinco milhões. Como se a gente não fosse trabalhador. Hoje, em casa, as pessoas estão tendo a oportunidade de verem seus filmes, suas peças de teatro, dança, orquestra, lendo seu livro. Essa saudade que eu tenho, ela é tão real, tão presente, tão vivida que me dá o direito de projetar a saudade futura, a não vivida, do “vamos fazer isso, vamos fazer.” Tive agora um encontro maravilhoso com o João Paulo Miranda, diretor de Casa de Antiguidade, selecionado para o Festival de Cannes. Passamos os 26 dias de filmagem com uma emoção, um prazer e uma felicidade de criança, vivendo um personagem que ele dá de presente para um ator de 80 anos ser o protagonista. Eu falo sempre, é o meu segundo Barravento, porque balança os arvoredos das coisas que a gente olha e percebe que nada mudou: o preconceito, o racismo, a invisibilidade.
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G |Que também persistem.
AP |Está tudo presente desde que me entendo por gente, desde a década de 40, de 50. Nós vivemos aquele momento do Malcolm X, dos Panteras Negras, da Angela Davis, do Martin Luther King. Tudo. O chicote no lombo desde os nossos antepassados, e não arqueamos porque a cultura negra é um dos pilares deste país, mas nós somos invisíveis. O povo não percebe a força dessa cultura africana, dos afrodescendentes, que faz deste país o que ele é – na culinária, na literatura, na dança, na música que a gente dança. Mas é como se não existíssemos, principalmente neste governo sem projeto para a cultura brasileira, esse governo que cada vez mais vai sacaneando e cuspindo na nossa cara.
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G |Você tem papel histórico no cinema brasileiro, como o primeiro ator protagonista negro de um filme. A partir desse marco, como você vê a inclusão dos negros no cinema?
AP |É uma luta, uma luta coletiva de jovens, estudantes, cinéfilos, apaixonados por cinema e pelo país. Na época, havia uma colonização cinematográfica europeia e americana, e a gente queria um cinema em que o Brasil estivesse presente. Tivemos cabeças como o Cacá Diegues, o Leon Hirszman, o Glauber Rocha, o Roberto Pires. Se você for para as praças, para o Maracanã, para os carnavais, o Brasil está lá, com negros, brancos, índios. É um processo que está vivo na gente. Não é: “eu vou escalar o Pitanga e eu vou colocar o negro aqui para eu estar bem com a comunidade”. Não! Nesses personagem também há muito de mim, muito da minha tribuna, do meu pensar, do meu comportamento político, racial, social. Está ali, por isso que eles me chamam. Aqui não é diferente dos Estados Unidos, aqui é até pior, porque lá os negros são 13% da população, e aqui somos 54%. A conta não fecha. Quando eu fiz “Barravento”, o Brasil não tinha nem 60 milhões de habitantes, hoje nós temos 212 milhões de habitantes. Qual é percentual de atores negros que você vai colocar? Por isso que a conta não fecha, nós somos a maioria.
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G |Como você avalia as manifestações antirracistas no mundo hoje, em decorrência do assassinato de George Floyd por um policial de Minneapolis, nos Estados Unidos? Como entendê-las comparadas aos movimentos das décadas passadas a que você se referiu?
AP |Eu acho que piorou, eu acho que piorou e muito. Naquela época, nós não tínhamos essa revolução tecnológica, essas ferramentas virtuais, não existiam as redes sociais, a globalização. Era pelo rádio, pelo jornal, que a gente tinha conhecimento do que estava acontecendo. Hoje não, o que aquele policial assassino, covarde e racista fez foi acompanhado pelo mundo. De certa maneira, eu entendo que estamos em extinção. Fico me perguntando se não estamos. Se com essa pandemia não conseguimos entender o outro, respeitar o outro, onde vamos parar? Ninguém nasce racista, você se torna racista. Que famílias são essas?
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G |Que sociedade é essa que construímos.
AP |Que sociedade é essa? Lá atrás era o início de uma consciência, depois que o mundo ficou estagnado por mais de 150 anos. Esse mundo acordou já no meio da década de 50, tendo noção dessa violência que foi a escravidão negra. Toda escravidão é perversa, mas a negra foi mais covarde, com as pessoas sendo sequestradas na África. E até hoje a África está como está porque esse poder, essa mão forte do colonizador, continua presente. E faz seus capatazes. Não é por acaso que tem um presidente da Fundação Palmares, que é negro, e diz o que diz. Você vê o mal que essa sociedade branca é capaz de fazer, construir uma criatura como essa. A gente vai ter que matar para se defender? Não. A gente tem de clarear as mentes e emocionar os corações, tem de vir com o ser humano. Eu acredito, eu tenho esperança, muita esperança, que essa nova juventude, essas novas cabeças vão mudar o mundo. Haverá uma grande revolução social, cultural, pela mulher, pelos jovens, acho que o discurso é outro. Eu acredito.
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G |Podemos ter saudade desse momento que não chegou, não é?
AP |Do futuro, está vendo? Saudades dos tempos ainda não vividos.
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G |Quando falamos em saudade, falamos em memória também. Como fica a esperança quando vemos o desmonte em curso da Cinemateca Brasileira, que abriga grande parte da memória do cinema do país?
AP |Tem aquele filme do Truffaut, “Fahrenheit 451”, em que o regime incendeia todos os livros. Tivemos isso com Mussolini, com Hitler, e estamos vivendo isso novamente. Os poucos funcionários que trabalham hoje na Cinemateca estão com salários atrasados, lutando para que a luz não seja cortada. Imagina um lugar que abriga celulose com apagão? Lá está a memória da Atlântida, da Vera Cruz, o Cine Jornal, da televisão. É a memória do país, e é surpreendente que só nós falamos disso. Não incomoda as pessoas. Aqui no Rio de Janeiro tivemos o Museu Histórico Nacional, destruído. Mas eu tenho esperança. Como diz o Caetano Veloso, um índio nascerá, virá. Porque hoje está feio. O ano passado já foi feio, acho que já era véspera de anunciar ventos como nunca da natureza, porque essa pandemia não é uma coisa que o homem criou. Ela aconteceu. Pode-se dar muita explicação para isso. Eu tinha 10 anos da época da gripe espanhola, que matou milhares de pessoas no mundo.
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G |Você lembra bem?
AP |Lembro porque a minha mãe trabalhava numa casa de família, os patrões dela se tornaram meus padrinhos. Naquela época, o tempo demorava a passar. Agora não, a velocidade é tão grande que você não lembra nem do que você comeu ontem. A gripe, para a gente da década de 40 e 50, estava muito presente porque a Segunda Guerra Mundial nos trouxe esse cuidado consigo e com as pessoas, que eram muito mais humanas, se relacionavam melhor. Aqui no Rio uma moça foi espancada durante quatro horas na Barra de Tijuca e ninguém ouviu a mulher gritar socorro. Nós temos um presidente que não gosta de negros, de LGBT, de mulher, de índio. Ele é o mandatário do país, o servidor número um. Acho que a morte desse rapaz, o Floyd, veio para acordar o mundo, e ainda bem que existe uma juventude conectada, presente, que está fazendo um movimento internacional. Acho que isso me dá tesão de estar inteiro aos 81 anos. Isso me dá paixão pela vida, e eu acho que se eu tivesse que morrer amanhã, eu diria: “Segura aí, eu quero ver com os meus olhos que a terra há de comer uma democracia racial que não seja um mito, que as pessoas na sua plenitude se amem.” Essa é a minha esperança.
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G |A sua saudade do futuro.
AP |Eu tenho saudade do futuro, porque é o futuro que eu viverei. Eu planejo um futuro lindo, maravilhoso. Mesmo com 81 anos, eu vislumbro um futuro lindo que eu quero ter, que eu quero viver.