Como se diz saudade em 11 línguas diferentes. Existe além do português? — Gama Revista
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Semana

A saudade não é exclusividade do português

Repetida durante séculos, esta lenda ignora as formas que outras línguas têm para expressar um sentimento universal. Confira um glossário de como se diz “saudade” em outros idiomas

Mariana Payno 14 de Junho de 2020

A saudade não é exclusividade do português

Repetida durante séculos, esta lenda ignora as formas que outras línguas têm para expressar um sentimento universal. Confira um glossário de como se diz “saudade” em outros idiomas

Mariana Payno 14 de Junho de 2020

Qual é o brasileiro que nunca sentiu uma pontinha de orgulho patriota quando se afirma que a palavra “saudade” só existe em língua portuguesa? O sentimento é tão caro à nossa cultura — bastam alguns segundos para lembrarmos cinco ou seis músicas com esse tema — que acabamos esquecendo que ele é compartilhado. Para começar, com quem lhe chama pelo mesmo nome: os portugueses. Afinal, a palavra chegou por aqui imposta pelos colonizadores, e eles também a reivindicam. “O discurso sobre a saudade é tradicional na nossa cultura, ou seja, a crença de que a saudade é algo muito português”, diz à Gama o tradutor e professor da Universidade Nova de Lisboa Marco Neves. “Essa crença é tão forte que leva alguns a querer a palavra só para eles, sem a emprestarem sequer aos brasileiros.”

Bem, isso já foi feito há mais de 500 anos. Mas o apego dos portugueses tem base: de fato, não faltam símbolos da saudade naquela cultura. Se nós temos os sambas, bossas e sertanejos que lamentam a sensação tão particular de falta, eles têm o fado, ritmo saudosista por excelência. Em terras lusitanas, o sentimento enraizou-se há muito tempo, fortalecido por uma história de adeuses e navegações sem volta e recontado século após século na tradição literária.

Em terras lusitanas, o sentimento enraizou-se há muito tempo, fortalecido por uma história de adeuses e navegações sem volta

E a noção de que, por tudo isso, apenas a língua portuguesa seria capaz de expressar a saudade em palavra também não é de hoje. Quem primeiro registrou essa ideia foi o gramático, historiador e jurista lusitano Duarte Nunes de Leão, no livro “A Origem da Língua Portuguesa”, de 1601. Ele descreve a saudade como um “aspecto próprio dos portugueses” e afirma que “não há língua em que da mesma maneira se possa explicar [a saudade], nem ainda por muitas palavras”. A partir desse registro, a teoria foi sendo repetida e ecoada ao longo dos séculos, como conta Vanessa do Monte, professora e pesquisadora do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da USP. “Era uma ideia que circulava em Portugal naquela época +, que o Nunes de Leão registrou e que serviu muito bem para dizer que havia algo tipicamente português.”

Saudade é intraduzível?

Por trás dessa lenda que sobreviveu ao tempo se esconde o debate, não tão antigo quanto ela mas já velho conhecido dos linguistas, sobre as intersecções entre língua e cultura. “Dizer que a palavra é própria de uma língua implica dizer que o sentimento é próprio de um povo, o que não corresponde exatamente à realidade”, diz Do Monte. Ainda assim, alguns estudiosos baseiam nisso o conceito de palavras intraduzíveis, que seria o caso de “saudade”. “Essas palavras frequentemente representam valores, prioridades e tradições particularmente associadas a uma cultura, mas não a outra”, diz à Gama Tim Lomas, pesquisador em psicologia da Universidade de Londres e criador do projeto The Positive Lexicography.

Muitos linguistas, porém, discordam e questionam tanto a relação “direta e simplista” entre língua e cultura quanto a própria noção de que existiriam palavras impossíveis de traduzir. “É difícil comunicar certos sentimentos ou ideias. Mas se conseguirmos dizer alguma coisa numa língua, haverá certamente um tradutor que conseguirá, pelo menos, explicar por outras palavras o que queríamos dizer”, afirma Marco Neves. “A não ser que estejamos convencidos de que a tradução é uma mera substituição palavra por palavra.”

Dizer que a palavra é própria de uma língua implica dizer que o sentimento é próprio de um povo

O que não parece ser o caso, já que um mesmo conceito pode ser representado em diferentes construções ou classes gramaticais a depender de cada língua, como explica Paulo Chagas, professor do Departamento de Linguística da USP. “Você colocar um sentimento ou sensação como substantivo, verbo, adjetivo são formas de apresentar. Não é que você não consegue dizer aquilo em determinada língua”, diz. Em inglês, francês e italiano, por exemplo, não há um substantivo como “saudade”, mas esse sentimento aparece em expressões verbais: “I miss you”, “tu me manques” e “mi manchi”. Outras línguas têm adjetivos ou mesmo substantivos correspondentes a nossa “saudade” que, afinal, não parece ser um sentimento tão intraduzível para outros povos e nem uma exclusividade da língua portuguesa. Eis alguns exemplos:

Galego: SAUDADE

É isso mesmo. Basta um dicionário de galego para derrubar a tese de que “saudade” só existe em língua portuguesa. Nessa língua (bem parecida com a nossa, é verdade), se usa exatamente a mesma palavra para expressar o “sentimento profundo de perda ou aguda nostalgia de algo já vivido e que se considera desejável”.


Romeno: DOR

“Forte desejo de rever alguém ou algo querido” ou “sofrimento causado pelo amor por alguém que está longe”. Essas são as definições do Dicionário Explicativo da Língua Romena para a palavra “dor”, substantivo que parece uma tradução exata de “saudade” e ainda soa um tanto dramático para os falantes de português. Não nos enganemos: apesar de grafadas da mesma forma e da origem em uma língua comum, a “dor” do romeno e a “dor” do português vêm de palavras diferentes do latim.


Tcheco: STESK

No livro “A Ignorância”, o escritor tcheco Milan Kundera fala da saudade em sua língua: “Os tchecos (…) têm para a noção seu próprio substantivo, ‘stesk’, e seu próprio verbo; a frase de amor mais comovente em tcheco: ‘styska se mi po tobe’: sinto nostalgia de você”. Segundo o professor Paulo Chagas, essas palavras em tcheco estão relacionadas a uma noção de “apertar em mim”. “Sinto nostalgia de você” não seria aquele aperto no peito que a saudade dá?


Japonês: NATSUKASHII

Curiosamente, o mesmo The Positive Lexocography que lista “saudade” como uma palavra intraduzível do português traz o adjetivo japonês “natsukashii” como outra noção difícil de traduzir. A definição, porém, é bem próxima do que entendemos por “saudade”: “um anseio nostálgico pelo passado, com felicidade pela lembrança, mas tristeza por não ser mais”.


Espanhol: AÑORANZA

O espanhol tem três expressões verbais para exprimir o sentimento despertado pela falta de algo ou alguém. Segundo o dicionário da Real Academia Espanhola, tanto a locução “echar de menos” quanto os verbos “extrañar” e “añorar” carregam esse sentido. O último, embora seja uma forma mais erudita, dá origem ao substantivo “añoranza”, cuja definição parece muito a da nossa “saudade”: a ação de recordar com pesar a ausência, privação ou perda de alguém ou algo muito querido.


Alemão: SEHNSUCHT

Os alemães têm o substantivo “Sehnsucht”, traduzido pelo dicionário Pons justamente como “saudade”. No início do século 20, a filóloga portuguesa Carolina Michaëlis de Vasconcelos já havia notado a correspondência entre as duas palavras: “em ambas vibra maviosamente a mágoa complexa da saudade; a lembrança de se haver gozado em tempos passados, que não voltam mais; a pena de não gozar no presente, ou só gozar na lembrança; e o desejo e a esperança de no futuro tornar ao estado antigo de felicidade”.


Guaná ou Chané: INANGUÔRÓ

Aparentemente não são só os brasileiros falantes de português que têm o privilégio da palavra “saudade”. Um vocabulário da língua indígena Guaná ou Chané disponibilizado pela Biblioteca Digital Curt Nimuendaju lista a palavra “inanguôró” como equivalente à portuguesa.


Islandês: SÖKNUDUR

A canção “Söknudur” (1977), do compositor islandês Jóhann Helgason, ficou conhecida por ser uma das mais tocadas em funerais no país. Isso porque a palavra que lhe dá título é a “saudade” da Islândia — o substantivo que os islandeses usam para expressar um sentimento de perda e nostalgia. A raiz é a mesma do verbo “sakna”, que significa “sentir falta”.


Catalão: ENYORANÇA

O substantivo “enyorança”, de acordo com o dicionário do Instituto de Estudos Catalães, é a tristeza ou dor pela ausência ou pela perda de algo ou alguém. Milan Kundera bem observa que essa palavra deriva do latim “ignorare” (ignorar). A saudade catalã surge, então, “como o sofrimento da ignorância: você está longe e não sei o que se passa com você”, escreve o autor.


Árabe: HANÎN

Em árabe, os substantivos “ishtiyâq” e “hanîn” são palavras que expressam o mesmo sentido de “saudade” em português, de acordo com o professor Felipe Benjamin, da Faculdade de Letras da UFRJ. Com a mesma raiz de “hanîn”, ele lembra do verbo “yahinnu”, consagrado num dos versos do poeta palestino Mahmoud Darwish, que escreveu muito sobre a saudade de sua terra natal: “‘Ahinnu ‘ila khubzi ‘ummi wa ‘ila qahwati ‘ummi” (“sinto falta do pão de minha mãe e do café de minha mãe”).


Galês: HIRAETH

O dicionário de galês da Universidade de Wales explica a palavra “hiraeth” com várias expressões em inglês que também são comumente usadas para traduzir “saudade” (“longing”, “yearning”, “nostalgia”) e define seu significado como “pesar ou tristeza depois de uma perda ou partida”.

Saudade de casa, né minha filha?

Muitas línguas têm palavras para expressar um tipo bem específico de saudade: a de casa, do país ou da terra natal. Em galego, por exemplo, se diz “morriña”; em francês, “mal du pays”; em inglês, “homesickness”; e em basco, “herri-mina”. Em alemão, holandês e islandês, o termo é parecido: “Heimweh”, “heimwee” e “heimfra”, respectivamente. Essa noção de saudade também está na origem grega da palavra “nostalgia”, que foi herdada por vários idiomas: “nóstos” quer dizer “retorno” e “álgos”, sofrimento. A nostalgia seria, então, o sofrimento pelo desejo de retornar a algum lugar, de preferência àquele que chamamos lar.