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ReportagemQuem são os indígenas nas cidades?
Estereótipos, preconceito e invisibilidade afetam o reconhecimento da própria identidade e o acesso a políticas públicas pela população indígena que vive em centros urbanos
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SemanaQuem são os indígenas nas cidades?
Estereótipos, preconceito e invisibilidade afetam o reconhecimento da própria identidade e o acesso a políticas públicas pela população indígena que vive em centros urbanos
A virgem dos lábios de mel e de cabelos mais negros que a asa da graúna; o herói fiel e apaixonado, fortemente ligado à terra — pelo menos desde o século 19, Iracemas e Peris habitam o imaginário brasileiro em relação às populações originárias, imagem criada e alimentada por narrativas eurocêntricas. A despeito dos contornos reais bem mais violentos do que quis o romantismo de José de Alencar, a história do bom selvagem já estava contada. “As pessoas costumam tentar entender de um ponto de vista genérico o que seria uma pessoa indígena ou de origem indígena. Existe fascínio, medo e ao mesmo tempo desconhecimento de quem são esses povos hoje no Brasil”, diz a jornalista e produtora Renata Tupinambá.
Ela é uma das mais de 315 mil pessoas indígenas que vivem em centros urbanos, de acordo com Censo de 2010 do IBGE, o primeiro a identificar a presença indígena nas cidades. O número pode ser ainda maior (veja box abaixo), mas essa é uma parcela da população que historicamente sofre com a invisibilidade e o preconceito. “Foi criado um imaginário de que o indígena que vive em contexto urbano deixa de ser indígena; nessa ideia existe uma contradição entre ser indígena e ser cidadão”, explica Daniel Munduruku, escritor e professor paraense, que fala também ao Podcast da Semana.
Mais de 315 mil pessoas indígenas vivem em centros urbanos, de acordo com Censo de 2010 do IBGE. Hoje, o número pode ser maior
O estereótipo desconsidera uma realidade histórica de mais de 500 anos: a diáspora indígena, processo contínuo motivado por diversos fatores, como estudo, trabalho, ameaças nos territórios e o avanço das cidades sobre as aldeias — no estado de São Paulo, por exemplo, 91% da população indígena vive nos centros urbanos. “A gente tem que pensar que foi a cidade que se construiu em terras indígenas e que os indígenas foram jogados em situações totalmente desfavoráveis”, observa Daniel. “Os invasores foram tomando conta desse território como em um grande ato secular de grilagem, e, para qualificar sua presença, tiveram que desqualificar a presença dos indígenas.”
Preconceito e acesso às políticas públicas
Sistematizada ao longo dos séculos, essa desqualificação atinge os indígenas em contexto urbano justamente por ocuparem espaços que não seriam “esperados” pelo discurso histórico que os relega apenas às aldeias. “A discriminação que sofremos por estarmos na cidade é alimentada pelos próprios livros didáticos: a família indígena está sempre na aldeia. E assim, você continua construindo a visão de que só é indígena quem está na aldeia”, afirma a professora Marize Guarani, presidente da Associação Indígena Aldeia Maracanã.
A discriminação que sofremos por estarmos na cidade é alimentada pelos próprios livros didáticos: a família indígena está sempre na aldeia
O descrédito sobre suas origens, ela diz, é uma constante nesse cenário. “Já escutei muito que sou ‘índia do Paraguai’ ou que ‘não sou índia de verdade’”, conta. O mesmo acontece com a deputada estadual Chirley Pankará (PSOL-SP), que nasceu em Pernambuco mas se mudou para a capital paulista há mais de duas décadas. “Quando você fala que é indígena que vive na cidade, que está na Assembleia Legislativa, que cursa antropologia na USP, as pessoas tendem a marcar um distanciamento em relação ao território e a dizer que não podemos lutar por eles.”
Nem mesmo os aldeados, porém, estão imunes. “A gente sofre preconceito porque usa celular, roupa, notebook”, conta Gilberto Benites Tupã Karaí, que vive na aldeia Tekoha Pohã Renda, no Paraná, e cursa história na Universidade Estadual do Oeste do Paraná. “E isso não deixa a gente ‘menos indígena’: a gente nasceu para ser indígena, e isso nunca vai mudar”, afirma ele contra um dos argumentos estigmatizantes mais comuns. “O papo do ‘ser menos indígena’ é um discurso racista, excita desconfiança, violência, divisão e propaga o ódio às diferenças”, avalia Renata. “É como limitar o direito de uma pessoa e dizer até onde ela pode ir ou não.”
Na prática, é o que acaba acontecendo muitas vezes — isso porque, tendo sua identidade negada, os indígenas nas cidades são privados de políticas públicas destinadas a essa população. Foi o caso dos indígenas urbanos que, em muitos estados e municípios, ficaram de fora da vacinação prioritária contra a covid-19, apesar de decisão favorável do STF. Chirley Pankará conta que, embora tenha apelado ao Ministério Público e às secretarias de Saúde, só foi vacinada quando chegou a vez da sua faixa etária em São Paulo. No Rio de Janeiro, Marize Guarani teve mais sorte como membro do Conselho Estadual dos Direitos Indígenas: por lá, eles conseguiram vacinar os indígenas em contexto urbano. “Não é uma questão territorial, geográfica, mas de comorbidade a partir da herança genética”, ela explica.
Memória e identidade
A discriminação também tem consequências mais subjetivas — não à toa, existem dificuldades na busca e no reconhecimento da própria identidade. “São muitos elementos que produzem um etnocídio: nos fazem negar o tempo todo o direito de autodeclaração”, diz Marize. “Todos os mecanismos dentro das instituições de ensino, dentro do próprio Estado e das políticas públicas produzem esse tipo de racismo que a gente vive o tempo todo na cidade. Eu nunca me senti tão discriminada na vida como depois que eu me autodeclarei”, relata.
Nunca me senti tão discriminada na vida como depois que eu me autodeclarei
Neta de indígenas, a professora conta que sempre soube da etnia das avós, mas que levou anos para deixar de se identificar como “descendente” e passar a se reconhecer como indígena também. “Romper essa barreira é um processo demorado, difícil, doloroso.” Para evitá-lo, muitas famílias acabam silenciando essa ancestralidade. “Alguns se escondem por conta da opressão que sofreram, outros vão perdendo elos com as comunidades ou com a própria história. Tudo à volta convida as pessoas a romper com suas origens”, observa Renata Tupinambá.
Para quem migrou, a negação pode ser uma espécie de defesa contra um sentir-se deslocado, inferior. Às vezes é até mais fácil assumir qualquer outra identidade étnica: Daniel Munduruku conta que já se passou por japonês, Marize já foi confundida com peruana, Gilberto lembra que muitos amigos se dizem paraguaios. “As pessoas acabam não questionando para não criar confusão”, explica ele. O professor da aldeia Tekoha Pohã Renda considera, no entanto, que assumir a identidade indígena é uma questão de respeito e orgulho. “Não é fácil sobreviver a massacres, doenças, perseguições, invasões de terra. Já passamos por isso várias vezes e estamos vivendo até hoje como os guerreiros que somos”, afirma.
De fato, manter viva a memória é uma das maneiras de continuar em conexão com a própria ancestralidade. “A memória é o guia, enquanto sabemos de onde viemos, quem são nossas famílias, avós e ancestrais, temos uma ligação forte com nossa identidade. Não é um fator puramente racial, físico ou até mesmo geográfico que define isso”, diz Renata Tupinambá.
Saímos da aldeia, mas a aldeia não saiu de nós. Estamos com nosso território
A jornalista encontra na relação com a natureza e na coletividade enquanto povo a manutenção da história dos que vieram antes; assim como Marize Guarani, que vê em seus sonhos e crenças provocações herdadas da avó rezadeira e da bisavó parteira. Daniel Munduruku escreve para não esquecer suas origens e para se sentir parte de uma universalidade conectada com o planeta. Chirley Pankará viaja anualmente para sua aldeia em Pernambuco, ouve histórias, participa de rituais e volta revigorada. “Saímos da aldeia, mas a aldeia não saiu de nós. Estamos com nosso território”, diz a deputada.
Há muita beleza nessa busca identitária, mas não uma idealização romântica daquela à la Iracema e Peri, que já causou danos. Afinal, preservar essa memória e passá-la adiante é também uma luta política. “É preciso formar e informar as pessoas em todas as áreas, trazer a realidade escrita pelos povos indígenas, dar a oportunidade de indígenas de contexto urbano recontarem suas histórias”, defende Chirley. Seja na política, como ela; na universidade, como Marize e Gilberto; no meio artístico, como Renata; na literatura, como Daniel, o recado é um só: “Estamos aqui e estamos para ficar”, afirma o escritor. A nós, não indígenas, cabe ouvirmos uma narrativa diferente, aquela que essas vozes têm a contar.
A luta pela construção da identidade indígena passa também pelo reconhecimento nas estatísticas oficiais. A questão afeta sobretudo os indígenas em áreas urbanas, mais invisíveis, já que muitos acabam se autodeclarando como pardos — a categoria oficial para indicar “miscigenação” nos levantamentos do IBGE. Mesmo dentro das Terras Indígenas há aqueles que se consideram indígenas por suas tradições, mas não se declaram como tal no quesito cor ou raça. “É muito difícil sair do lugar de ‘descendente’ para a autodeclaração. Ser pardo é estar em um não lugar”, avalia Marize Guarani.
No último Censo, de 2010, menos de 0,5% da população brasileira se autodeclarou indígena, enquanto os pardos somavam 43%. Os números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2019 são parecidos: 46,8% dos brasileiros se identificaram como pardos e 1,1% como amarelos ou indígenas. “A porcentagem de pardos tem peso político para o movimento negro, mas não ajuda a garantir a construção da identidade indígena. Ao contrário, atrapalha muito e faz a manutenção da discriminação e da negação do indígena no contexto urbano”, diz a professora.
Por isso, líderes indígenas têm encabeçado campanhas pela autodeclaração como indígena no Censo de 2022, em um esforço que pretende reduzir a invisibilidade estatística, principalmente daqueles que vivem nas cidades, para que as políticas públicas voltadas para essa população possam avançar. A iniciativa, porém, tem que driblar o preconceito e os próprios mecanismos do IBGE. “De 2000 para 2010, a metodologia mudou e, quando você diz que é indígena, tem que responder uma série de perguntas específicas de quem mora nas aldeias: território, nome da aldeia, língua falada”, explica Marize. “Você percebe que perdura no imaginário do próprio Estado que quem é indígena está na aldeia. Então, por vergonha ou medo de discriminação, muitos silenciam sua identidade.”
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