Creuza Prumkwyj Krahô e o indígena no contexto urbano — Gama Revista
Como resistem os povos indígenas?
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Ilustração de Isabela Durão. Fotografia original de Creuza Prumkwyj Krahô

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Depoimento

Creuza Prumkwyj Krahô: "A cidade não é lugar para nós, indígenas"

Cacique da Aldeia do Sol (TO), que tem pesquisa acadêmica sobre os costumes de resguardo do seu povo e das sementes Mehin, fala sobre estar distante de seu povo e das dificuldades de um indígena no contexto urbano

Isabelle Moreira Lima 14 de Abril de 2024

Creuza Prumkwyj Krahô: “A cidade não é lugar para nós, indígenas”

Isabelle Moreira Lima 14 de Abril de 2024
Ilustração de Isabela Durão. Fotografia original de Creuza Prumkwyj Krahô

Cacique da Aldeia do Sol (TO), que tem pesquisa acadêmica sobre os costumes de resguardo do seu povo e das sementes Mehin, fala sobre estar distante de seu povo e das dificuldades de um indígena no contexto urbano

Creuza Prumkwyj Krahô é uma cacique de 53 anos que chefia a Aldeia do Sol, do povo Krahô, no nordeste de Tocantins, onde vivem 13 famílias, num total de 42 pessoas. Além de cacique, ela é uma pesquisadora com trabalhos acadêmicos relevantes para o resgate dos resguardos de seu povo. Ela recuperou e catalogou, com mulheres mais velhas da aldeia, uma série de cuidados com o corpo que são adotados em determinadas fases da vida ou em situações específicas visando a saúde, o bem estar e a proteção. Os costumes, no entanto, vêm se perdendo com o tempo e com o contato com os brancos e Creuza os defende como fundamentais para que a cultura de seu povo seja preservada.

A cacique é também considerada uma das responsáveis pelo resgate das sementes Mehin, uma autodenominação do povo Krahô, que formavam uma roça com uma diversidade colorida antes que a pecuária e a agricultura de monocultura extensiva tivessem avançado no cerrado. Em depoimento a Gama, ela conta que começou a coletar essas sementes naturalmente ainda na juventude e que gosta de passar seu conhecimento na aldeia, para as gerações mais novas.

Mas apesar da relevância de seu trabalho, Creuza Krahô tem estado afastada da pesquisa. Funcionária do governo de Tocantins, ela está alocada na biblioteca de uma escola da rede estadual, com uma rotina que envolve coordenação do local, a documentação e a organização dos livros. Ela se ressente, sente falta da época em que vivia na aldeia e diz que gostaria de trabalhar com a educação das crianças indígenas.

Sua história é marcada pela tragédia e a separação, antes mesmo de seu nascimento. A avó de Creuza, hoje com 106 anos, é uma sobrevivente do massacre que quase dizimou o povo Krahô na década de 1940. Ela contou a história em ensaio publicado no livro “Terra — Antologia afro-indígena” (Ubu e Piseagrama, 2023):

“A minha avó é sobrevivente de um massacre ocorrido em 1940, feito pelos não indígenas fazendeiros, que mataram vários Krahô. Na verdade, ao longo da história de contato com os não indígenas, sofremos vários massacres. Foram mortas centenas de pessoas. Nós éramos muitos e após esse massacre restaram poucos. Nós somos da tribo Mãkrarè, vivíamos em uma aldeia enorme, maior que a cidade de Carolina, Maranhão. Esse povo se espalhou e cada um levou seu nome, Mãkrarè, Kukoikamekra, Panrékamekra, eram vários que se espalharam, cada um desses povos atravessou o rio Tocantins e se espalhou. Dos Mãkrarè vieram os Krahô de hoje”, escreveu.

A Gama, ela conta também como observa que quem visita a aldeia fala apenas com os Krahô homens, e não com as mulheres. Quando decidiu que estudaria os resguardos de seu povo, foi quase um jeito de mudar essa história, afinal, são as mulheres mais velhas as principais fontes desse conhecimento. “Eu fui criticada quando comecei a participar das reuniões e correr atrás dessas coisas, os homens me discriminaram. Mas pensei que tínhamos que enfrentar nossos homens e debater com eles. E eu resolvi que ia ouvir as mulheres, então, quando eu estudava na Universidade Federal de Goiás. Elas sabem tudo sobre os resguardos, que são muito importantes”, conta a Gama, no depoimento que você lê a seguir.

A minha vivência na cidade é muito difícil, desde quando eu comecei a conviver com os brancos

 Divulgação

A educação e a vida na cidade

“Fiz magistério indígena aqui no Tocantins, depois pós-graduação em ciência da cultura na Universidade Federal de Goiás, e depois fiz mestrado em sustentabilidade de conhecimentos tradicionais na Universidade de Brasília.

A minha vivência na cidade é muito difícil, desde quando eu comecei a conviver com os brancos. Quando eu só tinha 12, 13 anos e não estudava, eu achava que só éramos nós no mundo, que vivíamos naquele mato, alegres, felizes, cantando e correndo, nos pintando, cortando o cabelo. Às vezes, tinha uma tristeza quando um parente morria e quando eu via um branco chegando, eu ficava com medo. Era muito diferente, escutava ele falar e eu não entendia nada. Perguntava para minha avó, que hoje tem 106 anos, e ela falava que também não entendi. Depois, indaguei meu avô: “Quem é aquela pessoa?” Ele falava “É o cupen”.

Cresci, me casei. Eu nunca tinha ido à cidade, mas, depois do casamento, fiquei doente e me levaram. Foram 15 dias com febre. Eu tinha 25 anos e fui à região onde ainda moro hoje, de Itacajá. Eles me deram remédio e eu levei de volta à aldeia para dar ao meu povo, que estava com febre amarela. Eu não sabia ler ou escrever, mas eles me ensinaram a ministrar o remédio e eu fui dando para as pessoas. Meu marido viu aquilo e falou: “Você vai ter que estudar”. Mas eu não queria, queria ficar do jeito que estava, estudar é coisa de cupen, de branco. Mas com muito esforço eu aprendi o português com 17 anos. Com 25, estudei com ele dentro de casa, aprendi a ler e a escrever.

No começo eu não gostava de falar o português, sentia vergonha. Quando eu falava, eu até chorava. Minha menina mais velha, que tinha nove anos, perguntava “o que o papai fez contigo?” Hoje ela faz doutorado em antropologia.

Aqui, sou um passarinho na gaiola, cantando só para mim. Não estou cantando para o meu povo

Foi muita dificuldade, passei muito mal na cidade, eu adoecia e parecia que eu não ia ficar boa. A minha preocupação era com as crianças. Eu ficava chorando de noite e não ficava lembrando do meu marido, do incentivo, eu achava que não ia chegar onde eu cheguei. Eu não confiava em mim, ficava perdida, passava fome, não sabia nenhum lugar para comprar comida, não tinha dinheiro, com quem arrumar. Mas ainda assim resolvi fazer mestrado. Eu via muita história de Brasília e pensei “não quero ir lá não”. Mas passei e fui. Estudei bastante, dei aula na aldeia ajudando meu povo. Mas aí me colocaram na cidade e piorou.

Hoje tenho diabetes, não ando na rua, vou do trabalho para casa, não tenho amizade, não sou amiga dos vizinhos. Moro com três sobrinhos, crianças, os pais morreram, mas sinto muita falta da aldeia. Falo com as minhas filhas que estão lá e me dá uma saudade grande de estar lá com o meu povo: conversar, trabalhar, fazer reunião com as mulheres, com as crianças — gosto muito de participar o meu viver com elas.

Em 2018, o estado me tirou da aldeia e eu venho brigando todo ano, mandando documento, que eu quero ir embora para a minha vida. Eles me colocaram como coordenadora da biblioteca de uma escola estadual bem grande, a Haddad Assis Teixeira. Eu documento os livros, organizo o que entra e sai, mas eu não quero esse trabalho não. Eu quero dar aula para as minhas crianças. Aqui, sou um passarinho na gaiola, cantando só para mim. Não estou cantando para o meu povo. Eu não estou ensinando nada. Estou presa.

Os homens e as mulheres

Quando os antropólogos iam fazer pesquisa sobre a nossa cultura na aldeia, percebi que só falavam com os homens. Ainda que fossem as mulheres que sabiam dos cuidados e dos resguardos. Não importa se o antropólogo era homem ou mulher, só procuravam os homens krahô. Mas é a mulher — e as mulheres mais velhas — que sabe mais: conhece os matos, as madeiras, as raízes; ela que organiza as festas; ela faze os colares, as comidas. Mas quando o homem branco chega, ela sempre fica de fora.

Só procuravam os homens Krahô, mas é a mulher que sabe mais

Os homens não deixam as mulheres falarem, os mais velhos não deixam, querem aparecer. Os homens interrompem. Eu fui criticada quando comecei a participar das reuniões e correr atrás dessas coisas, os homens me discriminaram. Mas pensei que tínhamos que enfrentar nossos homens e debater com eles. Mas até hoje tem homem que não gosta que a mulher trabalhe.

E eu resolvi que ia ouvir as mulheres, então, quando eu estudava na Universidade Federal de Goiás. Elas sabem tudo sobre os resguardos, que são muito importantes.

Para nós, o resguardo não é só por causa de criança. Tem muitos resguardos. Vamos supor que eu fosse me preparar para ser uma cantora famosa. Minha mãe, meu pai e minha avó fariam um resguardo comigo. Eu não poderia beber água à noite, dormir muito pela manhã, teria que me banhar primeiro para pegar a água mais limpa sem a energia dos outros. A comida, eu só poderia comer assado, sem fritura ou caldo. Outro exemplo: se alguém quiser ser um caçador, a mãe precisa fazer um remédio, ele não pode namorar ou dormir com nenhuma mulher. Nem falar. só pode falar com homem. Esses cuidados são os resguardos, é uma sabedoria com o corpo, são cuidados com o corpo.

Hoje as pessoas têm feito menos os resguardos. Cada vez mas as mulheres tão indo ter as crianças na cidade. Quando já tem três filhos, faz cesariana. A mulher fica com medo que aquele corte na barriga prejudique outras coisas da saúde dela. O marido também não consegue fazer o resguardo e como ela fica? Quando nasce na cidade, pode pegar infecção também. Tem uma perda muito grande da cultura, dessa parte do resguardo.

Também tenho a pesquisa de sementes. Quando eu era mais menina, eu já catava a semente tiririca no mato com as minhas mulheres mais velhas. Eu aprendi e hoje eu ensino. Às vezes, no final de semana, quando eu vou para a aldeia, eu ensino às minhas meninas. Mas só vou quando tenho transporte, porque é caro, R$ 350, e ainda tem que pegar uma canoa.

Perda da cultura

Às vezes acho que não tem como consertar mais, parece que estamos perdendo nossa cultura, perdendo tudo. A bebida alcoólica está forte entre os jovens, homens e mulheres. A bebida e a droga, mas não a maconha, que para mim não é droga. Faz tempo que uso como chá e nunca fiquei doida. O problema é o crack. Eu quero voltar para a minha aldeia para tentar ajudar, quero que o povo pare com a droga e a bebedeira.

Eu gosto de contar essa história de antes do estudo, porque gosto de lembrar de quando eu vivia tranquila, despreocupada, alegre. Eu acordava e ia cantar no pátio, correr, não me preocupava com outra coisa, só com alegria. Era uma maravilha e, na velhice, quero ter isso de novo.

Parece que estamos perdendo nossa cultura

Antes, eu não sabia que o mundo era cheio de problemas, de massacre. Os indígenas foram massacrados, mataram as qualidades do povo, os conhecimentos, até a água. A natureza morre pelo homem branco. Depois do meu mestrado, falaram que eu devia fazer meu doutorado, mas só de ver isso eu já concluí meu doutorado. Foi muito importante eu ver tudo isso, conhecer, ouvir, não é fácil a vida fora da aldeia e a cidade não é lugar para nós indígenas. Eu queria que os brancos entendessem o quanto é difícil. O português é a nossa segunda língua, que aprendemos para nos comunicar e levar o respeito.

Eu penso em fazer um livro falando a verdade sobre por que o índio sofre e morre. Até os dias de hoje tem massacre, desde o começo tem. O governo mandou falarmos português, aprendermos a nos vestir, andarmos de chinelo e de salto. Mas ninguém muda perante a nossa vivência.”

Produto

  • Terra – Antologia afro-indígena
  • vários autores
  • Ubu e Piseagrama
  • 368 págs.

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