Os rituais de renovação do fim (e início) de ano — Gama Revista
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Semana

Por que precisamos de rituais para nos renovar

Sejam individuais ou coletivas, as cerimônias que abrem e fecham ciclos nos dão ânimo para seguir em frente. Explicamos a magia dos rituais e elencamos tradições de renovação em diferentes culturas pelo mundo

Mariana Payno 20 de Dezembro de 2020

Por que precisamos de rituais para nos renovar

Mariana Payno 20 de Dezembro de 2020

Sejam individuais ou coletivas, as cerimônias que abrem e fecham ciclos nos dão ânimo para seguir em frente. Explicamos a magia dos rituais e elencamos tradições de renovação em diferentes culturas pelo mundo

Uma das grandes manifestações do folclore brasileiro, as folias de reis ocupam as ruas de cidades do interior do país entre o final e o início do ano. Parte das celebrações natalinas católicas, as festas funcionam como uma espécie de cortejo: as chamadas “companhias” passam de casa em casa tocando canções tradicionais. Com origem na história bíblica dos Reis Magos, que viajaram até Belém para presentear o recém-nascido menino Jesus, as folias de reis representam também a chegada do novo ano.

“O nascimento na verdade é um renascimento: traz esperança, uma possibilidade de transformação”, explica Wagner Chaves, professor do departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador dessas festas. Mais do que a vinda de uma boa nova, a metáfora por trás da lenda dos Reis Magos evoca no imaginário uma ideia de movimento em direção ao futuro. “Algo os conduz para o desconhecido, uma noção de mover-se, de deslocar-se, de sair da zona de conforto.”

Essa ânsia por caminhar para um novo e promissor começo parece predominante em diferentes tradições ritualísticas, cristãs ou não, de virada de ano: fazer uma bela limpeza na casa, buscar as pazes com as desavenças, comer lentilhas ou usar amarelo para atrair boa fortuna, prometer ações para se tornar uma pessoa melhor, dar um mergulho no mar e emergir renovado.

Pode ser que tudo continue da mesmíssima forma na manhã do dia primeiro de janeiro — talvez a ressaca até nos lembre de que já estamos cometendo mais uma vez os excessos que juramos abolir na noite anterior —, mas não importa muito: embora a verdade concreta do mundo não se altere efetivamente, o que vale para essas cerimônias é a nossa percepção sobre o que pode ou não mudar.

Esses rituais vêm com os significados que queremos dar para as coisas, trazem um simbolismo, uma forma de se sentir e se comportar e, assim, nos produzem algo de diferente

“A forma de perceber as coisas pode se transformar, e isso nos influencia muito”, observa Gabriel Medeiros, doutorando no Instituto de Psicologia da USP e estudioso das ciências cognitivas da religião. “Esses rituais vêm com os significados que queremos dar para as coisas, trazem um simbolismo, uma forma de se sentir e se comportar e, assim, nos produzem algo de diferente.”

Quer dizer, se as simpatias e superstições funcionam ou não, não vem ao caso. Assim como acontece com as manifestações coletivas, a exemplo das folias de reis ou dos fogos de artifício na praia de Copacabana, a força dos rituais reside na sua capacidade simbólica: eles criam sentidos. “Não existe sentido intrínseco para a vida, nós é que os criamos. Boa parte dos rituais têm a ver com os sentidos que florescem para que valha estar vivo”, explica Medeiros.

Entre a incerteza e os novos ciclos

É por isso que, em tempos de instabilidade e incerteza — 2020 que o diga —, nos apegamos mais às crenças e às atividades ritualísticas. “É muito mais simples pensar que o mundo foi feito com algum propósito. Um sistema de crenças muitas vezes nos diz o que vai acontecer, nos ampara, e em um momento de dificuldade a gente busca mais sentidos, uma certa justificativa de por que estamos passando por aquilo”, afirma o pesquisador da USP.

Em períodos conturbados, então, os rituais podem despontar tanto como uma espécie de catarse da tensão quanto como uma resposta esperançosa. “O que é tenso nas relações sociais é justamente o que se dramatiza nos rituais. Não à toa, muitos marcam passagens, iniciações”, avalia Chaves, da UFRJ. “São os momentos críticos da vida, em que há uma indefinição muito grande.”

Em períodos conturbados, os rituais podem despontar tanto como uma espécie de catarse da tensão quanto como uma resposta esperançosa

Isso acontece, segundo Medeiros, não só por uma questão emocional, mas também cognitiva: os rituais, de certa forma, nos ajudam a organizar o caos da vida. “Temos muita informação para lidar o tempo todo e obviamente não lidamos com tudo. O cérebro gosta de ser econômico e resolver os problemas da melhor forma possível, e ritualizar as coisas faz com que elas sejam resolvidas mais facilmente”, explica o psicólogo.

A começar pelo básico, como as noções de tempo e espaço. É por causa dessa necessidade humana de demarcar temporalidades e espacialidades, reunindo a energia necessária para enfrentar os acontecimentos inscritos nesse ínterim, que grande parte dos rituais tem um caráter cíclico. “Há uma dinâmica de renovação dentro da repetição: dentro do ciclo trabalhamos com a ideia de morte e de renascimento, de abertura e de fechamento”, diz Chaves.

Apesar da ordenação da vida por uma concepção moderna e sucessiva da temporalidade — isto é, um tempo que apenas avança para frente e nunca para trás —, o ser humano está cercado por dinâmicas naturais de eternos retornos: o dia e a noite, as estações do ano, as fases da lua. “Tudo está sempre se renovando e a gente vai construindo muitos sentidos a partir disso”, explica Medeiros.

Um dia que você define para fechar um ciclo é uma forma de se renovar: esgota aquilo, faz um balanço do que passou e não continua carregando esse saco de memórias

Os rituais de renovação, afinal, são a experiência de cortar o tempo em fatias, como uma vez escreveu o jornalista Roberto Pompeu de Toledo. Um jogo intermitente entre exaustão e esperança para que possamos seguir em frente: ao abrir mão de uma bagagem pesada, damos espaço à expectativa dos novos ares que estão por vir.

“Um dia que você define para fechar um ciclo é uma forma de se renovar: esgota aquilo, faz um balanço do que passou e não continua carregando esse saco de memórias pela vida toda”, avalia Medeiros. “É uma forma de adaptar os ciclos da natureza à nossa cultura para nos despertar algum tipo de vivacidade.”

Os rituais de renovação pelo mundo

Novos começos são marcados por diferentes tipos de cerimônias ao redor do globo. Algumas são coletivas, outras individuais, nem todas acontecem na época do ano novo do calendário gregoriano — mas a ideia de deixar o velho para trás e renovar os ânimos perpassa todas elas

  • Queimar as lembranças ruins

    Prática que remonta tradições andinas e ibéricas, a queima dos bonecos chamados “años viejos” é comum em diversos lugares da América Latina, mas especialmente popular no Equador. Na noite do dia 31 de dezembro, os equatorianos ateiam fogo às figuras feitas de palha, roupas velhas e papel machê para dar adeus ao que se quer esquecer do ano que passou. Já os povos nativos da América do Norte acreditam que queimar plantas como a sálvia é uma maneira de renovar a energia das pessoas e dos espaços.

  • O panelaço lusitano

    Se nos últimos anos os brasileiros passaram a acreditar que bater panela nas janelas pode destituir governantes, para os portugueses fazer um panelaço na varanda ou pelas ruas é a tradição de fim do ano para espantar o mau olhado dos 12 meses anteriores. O barulhento ritual é mais comum no sul de Portugal.

  • Os ritos de passagem

    Boa parte dos rituais dos povos indígenas do Brasil pode ser classificada como ritos de passagem — o que não deixa de ser uma forma de renovação: em geral, os protagonistas das cerimônias, como as crianças em ritos de iniciação, passam um tempo separados das outras pessoas antes de se transformarem socialmente. A festa Hetohoky do povo Karajá, por exemplo, marca a entrada dos meninos na vida adulta e a preparação inclui o isolamento por uma semana e lições de caça e pesca. As meninas da etnia Nambikwara, por sua vez, passam por um período de clausura antes da celebração Txawxãhaijausu, pela qual entram na vida adulta.

  • Mergulhos congelantes e para rejuvenescer

    Em países com invernos nada amenos, como a Rússia, o Canadá, a Alemanha e a Holanda, é comum nadar em lagos, rios ou no mar gelado no primeiro dia do ano para entrar no próximo ciclo do calendário com a energia renovada — ou simplesmente para curar a ressaca das festas do dia 31 de dezembro. Já na Tailândia (onde o clima é mais convidativo, diga-se de passagem), os mergulhos fazem parte das celebrações da deusa hindu Saraswati: chamada de Banyu Pinaruh, a cerimônia de se banhar em água corrente é feita com o objetivo de rejuvenescer física e espiritualmente.

  • Limpar a sujeira que passou

    Nada de empurrar para debaixo do tapete: em vários lugares do mundo, é preciso tirar a sujeira de casa antes de entrar no novo ano. O Nowruz, ano novo do calendário persa que acontece no final de março em países como o Irã, o Afeganistão, a Turquia e o Iraque, começa com uma grande “limpeza de primavera”. Os dias que precedem o Ano Novo Chinês, comemorado pelo calendário lunar, também são reservados para afastar os maus espíritos desinfetando a casa. Na Inglaterra, a faxina deve ser feita de preferência com uma vassoura nova e, no Japão, é praticada a tradição milenar do Oosouji, uma bela arrumação para renovar as energias do ambiente.

  • O perdão judaico

    Na cultura judaica, o ritual de fechar um ciclo e abrir outro no Rosh Hashaná, feriado de ano novo, tem a ver com o autoaperfeiçoamento. Nessa época, os judeus refletem sobre o ano que passou e sobre os comportamentos que precisam ser mudados e pedem perdão às pessoas que magoaram.