Christian Dunker: "As escolas são condomínios murados" — Gama Revista
Como promover a saúde mental nas escolas?
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Conversas

Christian Dunker: "As escolas são condomínios murados, com circulação controlada por catraca"

Psicanalista aponta dificuldades para construir comunidades escolares num Brasil que demanda cada vez mais atenção à saúde mental de crianças e adolescentes

Leonardo Neiva 29 de Setembro de 2024

Christian Dunker: “As escolas são condomínios murados, com circulação controlada por catraca”

Leonardo Neiva 29 de Setembro de 2024
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Psicanalista aponta dificuldades para construir comunidades escolares num Brasil que demanda cada vez mais atenção à saúde mental de crianças e adolescentes

Em meio a uma crise global de saúde mental que impacta crianças e adolescentes, as escolas brasileiras ainda enfrentam um deficit de psicólogos e dificuldades para atuar em comunidade. Além disso, medos e desconfianças fazem com que pais e gestores escolares ergam muros de proteção contra os perigos externos e internos, dificultando um diálogo que poderia fazer avançar o debate sobre o tema dentro das instituições. Esses são apenas alguns dos principais pontos que o psicanalista Christian Dunker levanta quando o assunto é saúde mental no ambiente escolar.

“Organizar uma escola em termos de comunidade representa transformações reais. Significa incluir seus fornecedores, dar voz para o pessoal da limpeza e criar um aprendizado para todo mundo”, destaca o professor do Instituto de Psicologia da USP em entrevista a Gama. Uma das vozes mais retumbantes sobre psicanálise e saúde mental no Brasil hoje, Dunker fala para centenas de milhares de pessoas em seu canal no YouTube, Falando nIsso, e em suas redes sociais, num diálogo franco sobre questões como burnout e TDAH, que vêm fazendo cada vez mais parte do nosso dia a dia.

Pesquisas recentes trazem dados preocupantes sobre o impacto de transtornos psicológicos na vida de crianças e adolescentes, tendência que vem se fortalecendo desde a pandemia. Pela primeira vez, o Datafolha registrou mais casos de ansiedade entre jovens do que adultos no país, ao mesmo tempo em que as taxas de suicídio nessa faixa etária também vêm aumentando com frequência nos últimos anos.

Contrariando aquela velha ideia de que saúde mental é um problema que se aborda somente em casa, no seio familiar, Dunker endossa a visão de especialistas de que a atuação da comunidade escolar sobre o tema pode ser crucial para identificar e tratar desde cedo sintomas de transtornos como estresse, ansiedade e depressão. Por outro lado, o psicanalista também aponta tendências problemáticas como o excesso de medicalização, que impede um processo de investimento pedagógico mais longo e profundo, e a superficialidade de alguns diagnósticos atuais.

Integrando projetos em colégios de comunidades como o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, ele reforça a importância de uma escuta ativa e inteligente dentro da escola, que abra linhas de diálogo frequentes com esses jovens, muitas vezes alvos e também perpetuadores de diversos tipos de violências em seu cotidiano. “A atitude básica tem sido expulsar. Estamos regredindo, porque esse aluno demanda tempo e trabalho. Precisamos reunir todo mundo e falar sobre isso”, afirma o psicanalista e escritor, autor de livros como “A Arte de Amar” (Record, 2024) e “Uma Biografia da Depressão” (Paidós, 2021).

Na quarta-feira (2), Dunker debate o tema ao lado de outros especialistas no 6º Fórum de Políticas Públicas da Saúde na Infância, da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, que acontece no Centro de Convenções Frei Caneca, em São Paulo. Durante o papo com Gama, ele reflete ainda sobre o papel dos pais e os desafios para lidar com a saúde mental dos filhos, questões prementes como o cyberbullying e a crescente dificuldade do ser humano de funcionar em comunidade.

  • G |Os jovens estão enfrentando mais ansiedade que os adultos e há até um aumento na taxa de suicídios nessa faixa etária aqui no Brasil. Como a realidade em que vivemos contribui para esse quadro?

    Christian Dunker |

    A pandemia pegou alguns estratos etários de forma muito desleal. Crianças muito pequenas, no início do processo de socialização, onde você está constituindo o que é o espaço público, o que é sair da família. O atraso ali realmente traz efeitos. Uma segunda zona de impacto são adolescentes com 12 ou 13 anos, começando a mudar o patamar para a vida sexual e as preocupações com o corpo. A retração gerada pela covid impactou bastante esses jovens. Além disso, estamos falando de uma geração de nativos digitais, a geração Z, que nasce com oferta de telas, banda larga e redes sociais como prática trivial. E isso também tem impactos na saúde mental que estão ficando mais claros conforme o tempo vai passando. Um terceiro elemento são as alterações no modo de trabalhar, constituir famílias e transmitir desejos, que mudaram significativamente, marcando uma crise mundial de expectativas. Deixamos de ter a atitude que caracterizou a formação dos millennials, de que o mundo vai melhorar, a tecnologia veio para qualificar a vida humana e vamos diminuir a desigualdade. Isso se traduz em modos de educação mais protetivos, que enfatizam que a vida e o espaço público são perigosos. No caso brasileiro, isso se reforçou pelo processo político. Então, vários elementos confluem contra a saúde mental dessa geração.

  • G |Muitos pais também estão sofrendo com transtornos psicológicos. É comum que eles passem essas angústias para os filhos?

    CD |

    As famílias são modelos de transmissão de neuroses, não começou agora. Temos uma crise global do modelo de saúde mental, que gira ao redor da medicalização massiva e do uso de substâncias psicotrópicas, tanto para compensar prejuízos quanto para — e essa é a novidade — ir além da correção de um sintoma. Tem de um lado uma pressão muito forte por desempenho e, do outro, substâncias que vão aumentar a performance. A preocupação dos pais vem da percepção de que nós temos um problema com a saúde mental, e ela define padrões de desempenho, sociabilidade, aprovação e adaptação social. Antigamente a saúde mental era uma questão para quem tinha sintoma. Hoje, estima-se que só 7% da população escape de um diagnóstico. Então a norma é a patologia. Por isso criticamos a facilidade com que se empresariam os sofrimentos mentais hoje, que se transformaram em negócios.

  • G |Qual o papel da comunidade escolar para identificar ou tratar esses transtornos? Hoje você vê as escolas assumindo esse posto?

    CD |

    Nos anos 80 e 90, o Brasil produziu uma justificável crítica da psicologização do transtorno escolar, que reduziu o número de psicólogos nas escolas. É um paradoxo curioso. O Brasil tem cerca de 500 mil psicólogos, somos o terceiro ou quarto país no mundo com mais psicólogos. Mas não produzimos psicólogos escolares. E isso foi pressionando as escolas a responder cada vez mais por dificuldades escolares que podem ser causadas por neurodivergências ou transtornos. Por um lado, representa um encaminhamento em massa para psicólogos, neurologistas e psicanalistas por dificuldades que nem sempre são patologias. Muitas são inadequações do estilo cognitivo da criança à escola, excesso de produtivismo, falta de acompanhamento, assistência social e escuta, que manifestam na dificuldade escolar uma dificuldade na vida. Como a presença da violência e as aulas intermitentes em lugares como a Maré, onde tenho um projeto. Agora, estamos numa epidemia de TDAH e autismo. É possível que haja um hiper inflacionamento, sem negar que essas crianças estão sofrendo e precisam de intervenção.

  • G |Parece que encontramos cada vez mais dificuldade para viver em comunidade. As comunidades escolares refletem isso?

    CD |

    Tivemos um aumento de casos de violência letal nas escolas de 1.000% a partir de 2022. É um dado sobre a perda do sentido comunitário, com um assoreamento dos laços sociais entre alunos pelo excesso do uso de telas. Existe uma pressão hoje sobre os professores por resultados e um acompanhamento muito minucioso das suas atividades, o que faz deles a segunda população que mais adoece de problemas mentais. E você tem, por outro lado, esse novo choque entre as famílias e as escolas. Os pais cada vez mais acompanham a vida digital dos filhos, o bullying digital, e opinam vigorosamente sobre conflitos que habitualmente estavam na escola, mas agora passam a ser judicializados ou familiarizados. As famílias tomam as dores e confrontam a escola na posição de consumidoras, clientes. Ou, nas escolas públicas, demandam a implementação de regras e leis. Então existe uma insatisfação das famílias com as escolas.

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  • G |Nesse contexto, fica mais complexo identificar e tratar transtornos entre os jovens?

    CD |

    Não é complicado identificar sinais, como pedidos de ajuda, levantar uma bandeira de que está acontecendo algo que ultrapassa os limites de subjetivação e simbolização. Significa necessariamente um diagnóstico? Não sei. Historicamente, a adolescência é um momento de sofrimento e crise. Ela envolve transformações, conflitos, pensamentos sobre afinidade e existência, capturáveis por esse sistema que traduz nossas formas de sofrimento em algum tipo de sintoma farmacológico, psicológico ou terapêutico. Parece que desautorizamos as pessoas que cuidam de pessoas, de enfermeiros a professores, a tratar o sofrimento. E os tais sinais podem virar uma transferência de trabalho. Se estou sobrecarregado com uma classe, o que vou fazer com tal aluno? Passo para outro. Do outro lado, nem sempre vai haver um processo de investimento pedagógico e escuta, porque a resposta farmacológica é mais rápida. Há uma consciência global de que isso está acontecendo, não é só no Brasil.

  • G |Existe uma maior consciência sobre saúde mental entre os jovens, que às vezes fazem autodiagnósticos pelo TikTok. Como lidar com isso?

    CD |

    Um caso muito famoso é o da amnésia de Hong Kong. Hong Kong era um protetorado britânico, e os médicos de lá iam para Londres estudar psiquiatria. Eles estudavam o cardápio de diagnósticos, que incluía anorexia, voltavam para Hong Kong e morriam de fome, porque lá ninguém tinha anorexia. Era um transtorno que só existia no resto do mundo. Até que a Lady Di faz uma entrevista dizendo que tinha anorexia, em que ela conta os sintomas, a necessidade de perder peso, os procedimentos de purgação e a bulimia. Dois anos depois, surge uma epidemia de anorexia em Hong Kong. É um caso que mostra que, quando uma forma de sofrer é reconhecida, vem junto uma massa de pessoas dizendo que tem isso também. Encontram naquele termo uma gramática de reconhecimento para o que acontece com elas. Às vezes de forma correta, às vezes incorreta. Mas a chave é que os diagnósticos psiquiátricos se tornam parte de processos identitários.

  • G |Alguns pais terceirizam tudo na vida dos filhos, porque têm condição financeira para isso ou não têm tempo para participar mais ativamente. Por que eles andam tão ausentes, apesar das diferentes realidades sociais?

    CD |

    É mais uma transformação do que uma ausência. Hoje tem um envolvimento muito maior da figura paterna na criação de filhos. E isso compensa, talvez não integralmente, as mulheres entrarem de forma mais decisiva no mundo do trabalho. Se esperaria que as escolas tivessem infraestrutura para acolher por mais tempo as crianças, com biblioteca, esportes, sistemas de alimentação e educação complementar, que trariam um aumento na qualidade e quantidade da experiência escolar. E reduziriam algo que sempre contribuiu para a desigualdade: a disputa por posições numéricas a partir de conteúdos muito fechados, que fazem ainda hoje com que o aluno médio tenha mil aulas de álgebra e nenhuma de história do cinema ou da música. Muitos interesses bloquearam a implantação dos percursos formativos, que deveriam se traduzir numa proliferação de áreas diferentes. As transformações necessárias no universo educacional e jurídico não ocorreram. A gente ainda tem um sistema de formação cujas raízes estão lá na década de 60, o que vale também para as universidades e pós. Daí tivemos um aumento expressivo de suicídios e queixas de sofrimento nas universidades.

  • G |A ideia de comunidade é importante para o exercício da parentalidade hoje?

    CD |

    Organizar uma escola em termos de comunidade representa transformações reais. Significa incluir seus fornecedores, dar voz para o pessoal da limpeza e criar um aprendizado para todo mundo. Ou seja, não admitir analfabetismo de forma nenhuma. Significa conectar, como faz a Finlândia, aquela escola com as imediações, o bairro. Nossas escolas são condomínios murados, defendidos a ferro e fogo, onde a circulação é controlada com catraca, porque lá fora é perigoso. A comunidade ainda não é um valor em curso, com raras e boas exceções.

  • G |Dentro dessas comunidades, é um desafio exercer um diálogo mais ativo com os alunos? Como criar um ambiente em que isso é incentivado?

    CD |

    A gente faz pesquisas, intervenções em inúmeras escolas, escreve livros para introduzir uma maior escuta e colaboração com os pais. Essa demanda de saber o que está acontecendo com o filho, se instala câmera ou faz relatório, é distorcida, mas ainda é uma demanda de participação. Então, vamos incluir os pais. A escola não precisa ser apenas dedicada aos alunos. Ela está se transformando numa escola também para adultos. Hoje, deveria ter um setor de acompanhamento comunitário, uma parte da escola gratuita para aumentar a diversidade de classe, raça etc. Não adianta replicar o erro que aconteceu com a inclusão. Inclusão sem mediação dá em conflito, em hipermedicalização. Você põe todo mundo junto, uma classe com duas ou três crianças autistas, uma com problema sensorial, e diz: professor, resolva com seus superpoderes. Vai dar ruim. Você precisa de leis para definir como funcionam os acompanhantes terapêuticos, como são pagos e que qualificação necessitam. Precisa de boas práticas para lidar com a diversidade numa classe. Nada disso foi feito. É aquela política bem brasileira, em que você decreta, mas ninguém paga a conta. Quem paga a conta são os alunos e professores, expostos a uma situação de anomia.

  • G |Como abordar o bullying e cyberbullying, tipos de violência aos quais esses jovens acabam expostos no ambiente escolar?

    CD |

    Os fatores transversais disso geram um sofrimento contínuo de natureza traumática. Racismo, assédio moral, assédio sexual e bullying não pode ter. Mas a atitude básica tem sido expulsar. Estamos regredindo, porque esse aluno demanda tempo e trabalho. Precisamos reunir todo mundo e falar sobre isso, fazer mediação, intervir. As escolas têm o pé atrás com isso. A ideia é que é assunto privado, não público. Não somos responsáveis pelo conflito mundial, mas pela educação e civilidade dentro da sala de aula. Fora dela, como acessar isso? Essa posição não pode ser mais aplicada nas escolas. A rede social é pública ou privada? Se uma conversa passa a envolver cem mil pessoas dizendo que alguém falou uma coisa indevida, ela virou pública. Então é preciso flexibilidade. As escolas devem intervir com uma escuta ativa e inteligente em casos de bullying.

  • G |Vem sendo discutido no Ministério da Educação o banimento do uso de celulares nas aulas. Proibir é um bom caminho?

    CD |

    Participo de vários fóruns escolares onde a questão é colocada. Quando a gente pensa nos espaços de socialização da escola, as telas são muito ruins. Especialmente para crianças pequenas e meninas de 16 a 24 anos, como apontam os dados. Um argumento é que o telefone é um computador. Se privá-los disso, você está recuando na integração cultural e informativa. É também função da escola ensinar boas práticas, o uso das telas para enviar perguntas e fazer conexões dentro de uma aula. Tem usos legais, mas muita gente, em vez de assistir à aula, está viajando no celular. Como fazer para ter acesso a essa zona tão privada, de usar o celular como eu quiser? Enquanto não conseguirmos mexer nisso, tendo à regulação do espaço digital. E, ainda que sirva só como alerta, não vamos distribuir as telas assim na bacia das almas, sabe?

  • G |Há uma resistência da sociedade em tratar certos temas na escola. Considera importante falar de assuntos como luto e transtornos psicológicos com crianças e adolescentes?

    CD |

    Acho muito importante, sim. Ao dar noções sobre isso, você consegue articular um discurso do cuidado de si. Um discurso que exigiu muita luta para se instalar foi o do cuidado com a saúde física. Levou duas ou três gerações. Nada semelhante foi feito com a saúde mental. As pessoas imaginam que cada um deve cuidar do seu psicológico. É privar todo mundo da educação básica de como funciona a vida psíquica, os modos de lidar com conflitos e os sinais de que a coisa não está boa. Há todo um universo que precede o patológico, o universo da escuta. Quando começa a cuidar de si, você escuta a si mesmo, o que diz nos seus abusos e pesadelos, nas suas crises de pânico e no sofrimento. Muita gente leva logo esse sofrimento para alguém cuidar. Essa é uma atitude infantil, entregar para o outro algo que deveria ser sua responsabilidade. Se tentou e não encontrou saída, aí vale procurar ajuda fora. Mas primeiro, você deve fazer a lição de casa. E isso não está acontecendo.

  • G |Estudos mostram que boa parte dos transtornos mentais dos adultos surgem na infância. É importante dar mais atenção à saúde mental nessa etapa?

    CD |

    Um dos ramos mais bem-sucedidos da psicanálise é com crianças. A criança reage muito bem. Se tem recursos, ela supera e larga um sintoma com facilidade. Aliás, é comum que isso leve os pais a retirarem a criança do tratamento, gerando outro sintoma. Mas, sim, a maior parte, senão todos os grandes quadros clínicos têm um anúncio na infância. Às vezes é simples. Se procurar, vai descobrir que já tinha um sinal. Não quer dizer que precisamos tratar esse sintoma primário sempre. Às vezes, a própria criança supera e integra aquilo. Mas é preciso escuta, atenção, cuidado e uma rede para acompanhar isso. Até pouco tempo atrás, a gente não sabia que existiam adultos autistas, porque o autismo era mais diagnosticado em crianças. Há casos de crianças em depressão, com ansiedade, pânico ou sintomas psicológicos que os pais relutam em perceber. Se ela está sofrendo, é porque eu não estou educando direito ou tenho que dar mais amor e disciplina. Tendem a moralizar o sofrimento da criança, medidas que descaracterizam aquilo como algo psíquico.

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Este conteúdo é parte de uma série especial sobre saúde mental e as comunidades escolares, produzida com apoio da Fundação José Luiz Egydio Setúbal, instituição que atua em iniciativas sociais dedicadas à melhoria da qualidade de vida na infância, ao conhecimento científico sobre a saúde infantil e à assistência médica infanto-juvenil.